sexta-feira, 24 de dezembro de 2021

João Cabral de Melo Neto - Cartão de Natal



CARTÃO DE NATAL

Pois que reinaugurando essa criança
pensam os homens
reinaugurar a sua vida
e começar novo caderno,
fresco como o pão do dia;
pois que nestes dias a aventura
parece em ponto de voo, e parece
que vão enfim poder
explodir suas sementes:

que desta vez não perca esse caderno
sua atração núbil para o dente;
que o entusiasmo conserve vivas
suas molas,
e possa enfim o ferro
comer a ferrugem,
o sim comer o não.

(1952)

João Cabral de Melo Neto
 
Museu de tudo. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009.


sábado, 11 de dezembro de 2021

Alexandre O’Neill - Rosa

December roses, fotografia de Paul Jackson


ROSA

Rosa em verso, rosa em prosa:
Rosa rosa,

Verdadeira, recortada,
sempre votiva é a rosa.
Quem a dá, quem a ostenta,
quem a colhe, quem a inventa,
quem dela – a rosa – se lembra
faz o voto de quebrar
a pessoal solidão.

Se não troco o pão por rosas,
não troco a rosa por pão.

Rosa.
Rosa em verso, rosa em prosa:
rosa, rosa.

Rosa nome, rosa coisa,
rosa flor, rosa rosa,
rosa traço de união.

Rosa fugaz, recolhida
noutra rosa já nascida.
De rosa em rosa é a vida.

Ó rosa breve fulgor,
lampejo na escuridão.

Se não troco o pão por rosas,
não troco a rosa por pão.

Alexandre O’Neill


Coração Acordeão, Lisboa, O Independente, 2004


segunda-feira, 1 de novembro de 2021

"Corre o tempo velozmente..."

 Estremoz, o Gadanha, fotografia de Moitas Moitas


Aos pés da estátua lemos o primeiro verso desta quadra, que continua nos outros lados do pedestal:

Corre o tempo velozmente.
Nós também, da mesma sorte,
correndo vamos à morte
como as águas da corrente.



domingo, 31 de outubro de 2021

Carlos Drummond de Andrade - Também já fui brasileiro

 


TAMBÉM JÁ FUI BRASILEIRO

Eu também já fui brasileiro
Moreno como vocês.
Ponteei viola, guiei forde
e aprendi na mesa dos bares
que o nacionalismo é uma virtude.
Mas há uma hora em que os bares se fecham
e todas as virtudes se negam.

Eu também já fui poeta.
Bastava olhar para mulher,
pensava logo nas estrelas
e outros substantivos celestes.
Mas eram tantas, o céu tamanho,
minha poesia perturbou-se.

Eu também já tive meu ritmo.
Fazia isto, dizia aquilo.
E meus amigos me queriam,
meus inimigos me odiavam.
Eu irônico deslizava
satisfeito de ter meu ritmo.
Mas acabei confundindo tudo.
Hoje não deslizo mais não,
não sou irónico mais não,
não tenho ritmo mais não.

De Alguma poesia (1930)

Carlos Drummond de Andrade


quarta-feira, 27 de outubro de 2021

Jorge de Sena - Humanidade

 

HUMANIDADE

Na tarde calma e fria que circula
por entre os eucaliptos e a distância,
olhando as nuvens quase nada rubras
e a névoa consentida pelos montes,
névoa não subindo por não ser
fumo da vida que trabalha e teima,
e olhando uma verdura fugitiva
que a noite no céu queima tão depressa,
esqueço-me que há gente em cada parte,
gente que, de sempre, sofre e morre,
e agora morre mais ou sofre mais,
esqueço-me que a esperança abandonada,
a não ser de ninguém, é sempre minha,
esqueço-me que os homens a renovam,
que o fumo de seus lares sobe nos ares.
Esqueço-me de ouvir cheirar a Terra,
esqueço-me que vivo… E anoitece.

Jorge de Sena


domingo, 17 de outubro de 2021

Clarice Lispector - A criada



A CRIADA

Seu nome era Eremita. Tinha dezenove anos. Rosto confiante, algumas espinhas. Onde estava a sua beleza? Havia beleza nesse corpo que não era feio nem bonito, nesse rosto onde um doçura ansiosa de doçuras maiores era o sinal da vida. Beleza, não sei. Possivelmente não havia, se bem que os traços indecisos atraíssem como água atrai. Havia, sim, substância viva, unhas, carnes, dentes, mistura de resistências e fraquezas, constituindo vaga presença que se concretizava porém imediatamente numa cabeça interrogativa e já prestimosa, mal se pronunciava um nome: Eremita. Os olhos castanhos eram intraduzíveis, sem correspondência com o conjunto do rosto. Tão independentes como se fossem plantados na carne de um braço, e de lá nos olhassem - abertos, úmidos. Ela toda era de uma doçura próxima a lágrimas.

Às vezes respondia com má-criação de criada mesmo. Desde pequena fora assim, explicou. Sem que isso viesse de seu caráter. Pois não havia no seu espírito nenhum endurecimento, nenhuma lei perceptível. "Eu tive medo", dizia com naturalidade. "Me deu uma fome", dizia, e era sempre incontestável o que dizia, não se sabe por quê. "Ele me respeita muito", dizia do noivo e, apesar da expressão emprestada e convencional, a pessoa que ouvia entrava num mundo delicado de bichos e aves, onde todos se respeitam. "Eu tenho vergonha", dizia, e sorria enredada nas próprias sombras. Se a fome era de pão - que ela comia depressa como se pudessem tirá-lo - o medo era de trovoadas, a vergonha era de falar. Ela era gentil, honesta. "Deus me livre, não é?", dizia ausente.

Porque tinha suas ausências. O rosto se perdia numa tristeza impessoal e sem rugas. Um tristeza mais antiga que o seu espírito. Os olhos paravam vazios; diria mesmo um pouco ásperos. A pessoa que estivesse a seu lado sofria e nada podia fazer. Só esperar. Pois ela estava entregue a alguma coisa, a misteriosa infante. Ninguém ousaria tocá-la nesse momento. Esperava-se um pouco grave, de coração apertado, velando-a. Nada se podia fazer por ela senão desejar que o perigo passasse. Até que num movimento sem pressa, quase um suspiro, ela acordava como um cabrito recém-nascido se ergue sobre as pernas. Voltara de seu repouso na tristeza. Voltava, não se pode dizer mais rica, porém mais garantida depois de ter bebido em não se sabe que fonte. O que se sabe é que a fonte devia ser muito antiga e pura. Sim, havia profundeza nela. Mas ninguém encontraria nada se descesse nas suas profundezas - senão a própria profundeza, como na escuridão se acha a escuridão. É possível que, se alguém prosseguisse mais, encontrasse, depois de andar léguas nas trevas, um indício de caminho, guiado talvez por um bater de asas, por algum rastro de bicho. E - de repente - a floresta. Ah, então devia ser esse o seu mistério: ela descobrira um atalho para a floresta. Decerto nas suas ausências era para lá que ia. Regressando com os olhos cheios de brandura e ignorância, olhos completos. Ignorância tão vasta que nela caberia e se perderia toda a sabedoria do mundo.

Assim era Eremita. Que se subisse à tona com tudo o que encontrara na floresta seria queimada em fogueira. Mas o que vira - em que raízes mordera, com que espinhos sangrara, em que águas banhara os pés, que escuridão de ouro fora a luz que a envolvera - tudo isso ela não contava porque ignorava: fora percebido num só olhar, rápido demais para não ser senão um mistério.

Assim, quando emergia, era uma criada. A quem chamavam constantemente da escuridão de seu atalho para funções menores, para lavar roupa, enxugar o chão, servir a uns e outros.

Mas serviria mesmo? Pois se alguém prestasse atenção veria que ela lavava roupa - ao sol; que enxugava o chão - molhado pela chuva; que estendia lençóis - ao vento. Ela se arranjava para servir muito mais remotamente, e a outros deuses. Sempre com a inteireza de espírito que trouxera da floresta. Sem um pensamento: apenas corpo se movimentando calmo, rosto pleno de uma suave esperança que ninguém dá e ninguém tira.

A única marca do perigo por que passara era o seu modo fugitivo de comer pão. No resto era serena. Mesmo quando tirava o dinheiro que a patroa esquecera sobre a mesa, mesmo quando levava para o noivo em embrulho discreto alguns gêneros da despensa. A roubar de leve ela também aprendera em suas florestas.

Clarice Lispector


Felicidade Clandestina (1ª ed. 1971)


quinta-feira, 7 de outubro de 2021

Ana Luísa Amaral - Visitações, ou poema que se diz manso

Fotografia de Carølina Motta



VISITAÇÕES, OU POEMA QUE SE DIZ MANSO

De mansinho ela entrou, a minha filha.

A madrugada entrava como ela, mas não
tão de mansinho. Os pés descalços,
de ruído menor que o do meu lápis
e um riso bem maior que o dos meus versos.

Sentou-se no meu colo, de mansinho.

O poema invadia como ela, mas não
tão mansamente, não com esta exigência
tão mansinha. Como um ladrão furtivo,
a minha filha roubou-me a inspiração,
versos quase chegados, quase meus.

E mansamente aqui adormeceu,
feliz pelo seu crime.

Ana Luísa Amaral



segunda-feira, 4 de outubro de 2021

Vitorino Nemésio - A vida é tempo




A VIDA É TEMPO

Com alma, ideias, tempo, luta
Componho um homem, sou sujeito:
Penso-me livre numa gruta
Como pretérito imperfeito.

De era se faz o meu futuro,
Será será o meu passado
Como da hera se faz o muro
Mais que da pedra levantado.

Se horas a nada levam tudo,
Nada nasceu, tudo é que é,
Haja ou não haja Sartre e o mundo
Deus Tudo-Nada havido em fé.

Que ele é Deus mesmo no absoluto
Ser contestado, tão assente
Que se faz Deus na voz que escuto,
Mesmo que o negue, e me desmente.

Vitorino Nemésio

O Verbo e a Morte, Lisboa, Moraes Editora, 1959.


(Blogue Folha de Poesia)



segunda-feira, 27 de setembro de 2021

Manuel Bandeira - Profundamente

 


PROFUNDAMENTE

Quando ontem adormeci
Na noite de São João
Havia alegria e rumor
Estrondos de bombas luzes de Bengala
Vozes, cantigas e risos
Ao pé das fogueiras acesas.

No meio da noite despertei
Não ouvi mais vozes nem risos
Apenas balões
Passavam, errantes
Silenciosamente
Apenas de vez em quando
O ruído de um bonde
Cortava o silêncio
Como um túnel.
Onde estavam os que há pouco
Dançavam
Cantavam
E riam
Ao pé das fogueiras acesas?
— Estavam todos dormindo
Estavam todos deitados
Dormindo
Profundamente.

*

Quando eu tinha seis anos
Não pude ver o fim da festa de São João
Porque adormeci

Hoje não ouço mais as vozes daquele tempo
Minha avó
Meu avô
Totônio Rodrigues
Tomásia
Rosa
Onde estão todos eles?

— Estão todos dormindo
Estão todos deitados
Dormindo
Profundamente.

Manuel Bandeira




quarta-feira, 22 de setembro de 2021

Carlos Queirós - Amizade

Autorretrato de Julia Moraes com o amigo Eurico


AMIZADE

De mais ninguém, senão de ti preciso:
Do teu sereno olhar, do teu sorriso,
Da tua mão pousada no meu ombro.
Ouvir-te murmurar: – «Espera e confia!»
E sentir converter-se em harmonia,
O que era, dantes, confusão e assombro.

Carlos Queirós



Podemos ouvir o poema lido por Luís Gaspar em Estúdio Raposa.


sábado, 31 de julho de 2021

Rui Knopfli - Ilha dourada



ILHA DOURADA

A fortaleza mergulha no mar
os cansados flancos
e sonha com impossíveis
naves moiras
Tudo mais são ruas prisioneiras
e casas velhas a mirar o tédio
As gentes calam na
voz
uma vontade antiga de lágrimas
e um riquexó de sono
desce a Travessa da "Amizade"
Em pleno dia claro
vejo-te adormecer na distância,
Ilha de Moçambique,
e faço-te estes versos
de sal e esquecimento
 
Rui Knopfli


E para além dos versos, este brevo texto do próprio Knopfli:

Ter-se nascido ou vivido em Moçambique é uma doenca incurável, uma virose latente. Mesmo para os que se sentem genuínamente portugueses mascara-se a doenca, ignora-se, ou recalca-se e acreditamo-nos curados e imunizados. A mínima exposição a determinadas circunstâncias desencadeia, porém, inevitáveis recorrências e acabamos por arder na altíssima febre de uma recidiva sem regresso nem apelo.

 
(Fotografia de António Alfarroba: Um adeus português, Ilha de Moçambique)


segunda-feira, 19 de julho de 2021

João Simões Lopes Neto - Contos gauchescos

Fotografia de Eduardo Amorim 

 

Da digressão longa e demorada, feita em etapas de datas diferentes, estes olhos trazem ainda a impressão vivaz e maravilhosa da grandeza, da uberdade, da hospitalidade... Vi a colméia e o curral; vi o pomar e o rebanho, vi a seara e as manufaturas; vi a serra, os rios, a campina e as cidades; e dos rostos e das auroras, de pássaros e de crianças, dos sulcos do arado, das águas e de tudo, estes olhos, pobres olhos condenados à morte, ao desaparecimento, guardarão na retina até o último milésimo da luz, a impressão da visão sublimada e consoladora: e o coração, quando faltar ao ritmo, arfará num último esto para que a raça que se está formando, aquilate, ame e glorifique os lugares e os homens dos nossos tempos heróicos, pela integração da Pátria comum, agora abençoada na paz ...

Fragmento de "Contos Gauchescos", de João Simões Lopes Neto 

Lido aqui: Eduardo Amorim 


João Simões Lopes Neto (Pelotas, Rio Grande do Sul, 1865 — 1916), foi um escritor e empresário sul-rio-grandense e brasileiro. Segundo estudiosos e críticos de literatura, foi o maior autor regionalista do Rio Grande do Sul, pois procurou em sua produção literária valorizar a história do gaúcho e suas tradições.



segunda-feira, 12 de julho de 2021

Mário de Sá-Carneiro - Feminina




FEMININA

Eu queria ser mulher para poder me estender
Ao lado dos meus amigos, nas banquettes dos cafés.
Eu queria ser mulher para poder estender
Pó-de-arroz pelo meu rosto, diante de todos, nos cafés.

Eu queria ser mulher para não ter que pensar na vida
E conhecer muitos velhos a quem pedisse dinheiro –
Eu queria ser mulher para passar o dia inteiro
A falar de modas e a fazer potins – muito entretida.

Eu queria ser mulher para mexer nos meus seios
E aguçá-los ao espelho, antes de me deitar –
Eu queria ser mulher para que me fossem bem estes enleios
Que num homem, francamente, não se podem desculpar.

Eu queria ser mulher para ter muitos amantes
E enganá-los a todos – mesmo ao predileto –
Como eu gostava de enganar o meu amante loiro, o mais esbelto,
Com um rapaz gordo e feio, de modos extravagantes...

Eu queria ser mulher para excitar que me olhasse,
Eu queria ser mulher para me poder recusar...

........................................................................

Paris, fevereiro de 1916



"Este poema foi escrito cerca de dois meses antes de Mário de Sá-Carneiro se suicidar. Ficou, por muito tempo, esquecido na carta em que o enviou a Fernando Pessoa e onde perguntava: «Como você vê - isto promete, hein? Quando arranjar por completo o poema, enviar-lho-ei. Mas vá-me dizendo as suas impressões». O poema jamais foi concluído." por Cine Povero, canal de Youtube onde achámos este vídeopoema.




segunda-feira, 5 de julho de 2021

Marquesa de Alorna - Cantiga

Fotografia de Guillén Pérez



Sozinha no bosque
com meus pensamentos.
calei as saudades,
fiz trégua aos tormentos.

Olhei para a Lua,
que as sombras rasgava,
nas trémulas águas
seus raios soltava.

Naquela torrente
que vai despedida,
encontro, assustada,
a imagem da vida.

Do peito, em que as dores
já iam cessar,
revoa a tristeza,
e torno a pensar.

Marquesa de Alorna 

D. Leonor de Almeida Portugal Lorena e Lencastre, Marquesa de Alorna (Lisboa, 31/10/ 1750 – Lisboa, 11/10/ 1839)

Conhecida por “Alcipe”, nome que adoptou na Arcádia.

Poetisa, escreveu sobre literatura, sociedade e política, traduziu a Arte Poética de Horácio e o Ensaio sobre a Crítica de Pope.

V. Infopédia       



quinta-feira, 1 de julho de 2021

Carlos Drummond de Andrade - "A castidade com que abria as coxas..."

Fotografia de Cronópio


A castidade com que abria as coxas
e reluzia a sua flora brava.
Na mansuetude das ovelhas mochas,
e tão estrita, como se alargava.

Ah, coito, coito, morte de tão vida,
sepultura na grama, sem dizeres.
Em minha ardente substância esvaída,
eu não era ninguém e era mil seres

em mim ressuscitados. Era Adão,
primeiro gesto nu ante a primeira
negritude de corpo feminino.

Roupa e tempo jaziam pelo chão.
E nem restava mais o mundo, à beira
dessa moita orvalhada, nem destino.

Carlos Drummond de Andrade


Do seu livro O Amor Natural, publicado postumamente em 1982. Drummond tinha morrido em 1978.



segunda-feira, 28 de junho de 2021

"Maria atravessou o regato..."

Fotografia de Márcia Marton, Regato em Gonçalves, MG

 

Maria atravessou o regato,
molhou a barra do vestido.
Na água deixou o retrato
de tudo o que estava escondido.


 

Este poema popular foi "recolhido por Mário de Andrade em suas andanças pelo interior do Brasil nas primeiras décadas do século XX."

V. Antologia da Poesia Erótica Brasileira. Organização de Eliane Robert Moraes, Lisboa, Tinta da China, MMXVII


sexta-feira, 25 de junho de 2021

Ana Paula Tavares - Rapariga

Fotografia de Rui Romão


RAPARIGA

Cresce comigo o boi com que me vão trocar
Amarram-me já às costas, a tábua Eylekessa

Filha de Tembo
organizo o milho

Trago nas pernas as pulseiras pesadas
Dos dias que passaram...
Sou do clã do boi -

Dos meus ancestrais ficou-me a paciência
O sono profundo do deserto
A falta de limite...

Da mistura do boi e da árvore
a efervescência
o desejo
a intranquilidade
a proximidade
do mar

Filha de Huco
Com a sua primeira esposa
Uma vaca sagrada
concedeu-me
o favor das suas tetas úberes.

Ana Paula Tavares 


Ana Paula Tavares (Lubango, 1952) na Infopédia.



sábado, 12 de junho de 2021

Sophia de Mello Breyner Andresen - Soneto à maneira de Camões

 

Fotografia de Vasco Trancoso

 

SONETO À MANEIRA DE CAMÕES

Esperança e desespero de alimento
Me servem neste dia em que te espero
E já não sei se quero ou se não quero
Tão longe de razões é o meu tormento.

Mas como usar amor de entendimento?
Daquilo que te peço desespero
Ainda que mo dês - pois o que eu quero
Ninguém o dá senão por um momento.

Mas como és belo, amor, de não durares,
De ser tão breve e fundo o teu engano,
E de eu te possuir sem tu te dares.

Amor perfeito dado a um ser humano:
Também morre o florir de mil pomares
E se quebram as ondas no oceano.

Sophia de Mello Breyner Andresen



quinta-feira, 10 de junho de 2021

Luís de Camões - "Eu cantarei de amor tão docemente..."

 

Cia de Foto

 

Eu cantarei de amor tão docemente,
Por uns termos em si tão concertados,
Que dous mil acidentes namorados
Faça sentir ao peito que não sente.

Farei que o amor a todos avivente,
Pintando mil segredos delicados,
Brandas iras, suspiros magoados,
Temerosa ousadia e pena ausente.

Também, Senhora, do desprezo honesto
De vossa vista branda e rigorosa,
Contentar-me-ei dizendo a menor parte.

Porém, para cantar de vosso gesto
A composição alta e milagrosa,
Aqui falta saber, engenho e arte.

Luís de Camões 

 

 

quarta-feira, 9 de junho de 2021

António Osório - Camões

Fotografia de Maurizio Parola

 

CAMÕES

Lia-me Camões meu Pai.
A tristeza de ambos
se juntava, em mim crescia.
E a voz, a inalterável
mergulhia das palavras
procriavam sarmentosos liames.
(Basílico a Mãe depunha no lume,
a carne com alecrim perfumava).
O livro de carneira negra,
as letras juntas em oiro:
morros, alusões, muros
verdentos, o último da vida ouvia.
Mordaça invisível. Em lágrimas,
minhas, de meu Pai e de Camões, voava.

António Osório



segunda-feira, 7 de junho de 2021

Carlos Drummond de Andrade - "A grande dor das cousas que passaram..."

Trude Fleischmann, fotografia de Tilly Losch


A grande dor das cousas que passaram
transmutou-se em finíssimo prazer
quando, entre fotos mil que se esgarçavam,
tive a fortuna e graça de te ver.

Os beijos e amavios que se amavam,
descuidados de teu e meu querer,
outra vez reflorindo, esvoaçaram
em orvalhada luz de amanhecer.

Ó bendito passado que era atroz,
e gozoso hoje terno se apresenta
e faz vibrar de novo minha voz

para exaltar o redivivo amor
que de memória-imagem se alimenta
e em doçura converte o próprio horror!

Carlos Drummond de Andrade


Erros meus, má fortuna, amor ardente
Em minha perdição se conjuraram;
Os erros e a fortuna sobejaram,
Que para mim bastava amor somente.

Tudo passei; mas tenho tão presente
A grande dor das cousas que passaram,
Que as magoadas iras me ensinaram
A não querer já nunca ser contente.

Errei todo o discurso dos meus anos;
Dei causa a que a fortuna castigasse
As minhas mais fundadas esperanças.

De amor não vi senão breves enganos.
Oh! quem tanto pudesse, que fartasse
Este meu duro Gênio de vinganças!


Rubem Braga dizia que o verso "A grande dor das cousas que passaram" era um dos maiores de Camões, por sua beleza ser toda construída com palavras corriqueiras da nossa língua. (aqui)


terça-feira, 1 de junho de 2021

Mário Dionísio - Balada dos amigos separados

Fotografia de César Augusto V.R.


BALADA DOS AMIGOS SEPARADOS

Onde estais vós Alberto Henrique
João Maria Pedro Ana?
Onde anda agora a vossa voz?
Que ruas escutam vossos passos?
Ao norte? ao sul? aonde? aonde?
José António Branca Rui
E tu Joana de olhos claros
E tu Francisco E tu Carlota
E tu Joaquim?
Que estradas colhem vosso olhar?
Onde anda agora a vossa vida repartida?
A oeste? A leste? Aonde? aonde?
Olho prà frente prà cidade
e pràs outras cidades por trás dela
onde se agitam outras gentes
que nunca ouviram vosso nome
e vejo em tudo a vossa cara
e oiço em tudo o som amigo
a voz de um a voz de outro
e aquele fio de sol que se agitava
sempre
em todos nós
Dançam as casas nesta noite
ébrias de sombra nesta noite
que se prolonga em plena angústia
aos solavancos do destino
e não consegue estrangularmos
Sigo e pergunto ao vento à rua
e a esta ânsia inviolável
que embebe o ar de calafrios
Onde estais vós? onde estais vós?
E por detrás de cada esquina
e por detrás de cada vulto
o vento traz-me a vossa voz
a rua traz-me a vossa voz
a voz de um a voz de outro
toada amiga que me banha
tão confiante tão serena
Aqui aqui em toda a parte
Aqui aqui E tu? aonde?

Mário Dionísio


De As Solicítações e Emboscadas (1945)


(Centro Mário Dionísio)




segunda-feira, 24 de maio de 2021

Carlos Queirós - Teatro da Boneca

 

Fotografia de Luca Di Prisco

 

TEATRO DA BONECA

A menina tinha os cabelos louros.
A boneca também.
A menina tinha os olhos castanhos.
Os da boneca eram azuis.
A menina gostava loucamente da boneca
A boneca ninguém sabe se gostava da menina.
Mas a menina morreu.
A boneca ficou.
Agora já ninguém sabe se a menina gosta da boneca.

E a boneca não cabe em nenhuma gaveta.
A boneca abre as tampas de todas as malas.
A boneca é maior que a presença de todas as coisas.
A boneca está em toda a parte.
A boneca enche a casa toda.

É preciso esconder a boneca.
É preciso que a boneca desapareça para sempre.
É preciso matar, é preciso enterrar a boneca.
A boneca.

A boneca.


Carlos Queirós



segunda-feira, 17 de maio de 2021

Ruy Cinatti - À memória de António Nobre e de Cesário Verde



À MEMÓRIA DE ANTÓNIO NOBRE E DE CESÁRIO VERDE

Eu comi uma inglesa.
Foi em Sintra. Era feriado.
Com esparregado e essa tinta
mint-sauce. Em português,
molho de hortelã-pimenta
com vinagre. Uma beleza!
Alguma batata frita.
Mas eu quis fetos arbóreos,
musgo das fontes, avenca
e pétalas de camélia,
branca-rósea,
para enfeitar a travessa
e trincar, de quando em quando,
uma pétala na fímbria
das orelhas da inglesa,
dizendo: «O tempo está
tão lindo! Não achas, Daisy?»

«I like Shelley« - dizia ela,
cheirando a colégio d'Oxford.
«Swift Summer into the Autumn flowed...

tem tradição. Vem de Chaucer.»

«Eu também gosto» - eu disse,
paraninfo de Euricides -
«porém prefiro John Keats.
I stood tip-toe
Upon a little hill
tem mais naturalidade.
É como se estivesse aqui.
Quanto ao Byron, tu bem sabes
como ele soube viver Sintra:
A glorious Eden inhabited
by savage Lusitanians.
À sova não me refiro.
Tudo isso é história antiga».
«It's true! É verdade!»
(disseste-o, desmemoriada,
mas reticente...
e dobraste-me a parada)
«Mas não esqueça o que ele sofreu
quando dizer lhe vieram:
Shelley morreu.
- Atravessou o Helesponto
a nado!...
I weep for Adonais...»

«Não, não é.» - contestei eu.
«Isso é do Shelley, dedicado
a Keats.
I weep for Adonais
because he is dead.

Eu choro Adonais
porque morreu.

Não está mal... a tradução,
mas tem razão!
Eu sou português e não
falo com a boca cheia.
Esta mania lusíada
de cuspir no chão é feia.
Nós não vivemos na selva.»

E ela, tola-lograda:
- «Dont be silly. Há o fado!
I like fado. Não gostas!
Tu tens a melena cheia
de brilhantina. You look
almost like a fadista!»

Passei a mão pela testa
e desgrenhei a madeixa,
dizendo: - «Queres morangos,
figos, amoras ou beijos?...»

................................................

«Obrigado, obrigado, Daisy.
Não sei se estás a troçar
ou a brincar...
pulling my leg para ti.
Mas, enfim, vamos passear
até ali.»

(No fundo, o que eu desejava
era mordê-la na boca,
meter-lhe a mão entre os seios,
voar a cavalo nela.)

Foi uma tarde acabada
na relva, sob pinheiros,
chamaecyparis, ulmeiros,
sequóias, abetos, faias
e a cor azul das hortênsias.

Foi sobre a relva orvalhada
pelo frescor de um riacho,
quando o sol obliquava
e em volta era tudo selva,
que eu comi uma pantera
escura, feroz, inglesa,
com o cheiro de violetas
debaixo do meu nariz.

(Fulva, para quem quiser
modas pré-rafaelitas,
a pantera! Tanto faz!
Ou morena. Convenção
como convém a uma inglesa
convencional, de ocasião.)

E quando nos despedimos
- era noite, havia estrelas -
disseste com essa fleuma
que tão mal me fica a mim:
- «I'll see you latter. Do come.
Vem amanhã tomar chá.
Eu gostar muito de ti.»

Loira, era loira a inglesa
que eu comi...
Verde, devia dizer.
Branca-rósea, uma camélia,
que eu comi, ou que colhi.
Já nem sei...
A savage Lusitanian,
dei-lhe só o que ela quis.
Ou queria...
Com peitinhos de perdiz
e alguma poesia:

The air was cooling
And so very still.

Ruy Cinatti


Memória Descritiva, 1971



quinta-feira, 13 de maio de 2021

Marta Lança - neblina

 


neblina

a porta do café dá para a embaixada de frança quase no cruzamento com a rua da esperança.
uma neblina branca cobre os prédios com um potencial surrealista. Estar calor sem fazer sol tem qualquer coisa de tragicomédia. O telejornal da tarde fecha com uma peça do Sassetti que morreu há pouco na falésia. O piano induz a olhar a rua no seu crescendo de vida - aquele momento em que o fim (de cada um e de todas as coisas) é conscienciosamente anunciado. A velhota passa agarrada à sobrinha, o polícia olha para as botas melancólico, o homem levanta vagarosamente as chávenas das bicas, a rapariga lê o jornal, e nada disto é sereno.

Marta Lança

(No seu blogue Vida Escrita, 13 de maio de 2012)



sábado, 1 de maio de 2021

Ruy Belo - A Margem da Alegria

Robert Grant - Tília, Jardim Botânico da Universidade de Coimbra



quando o mínimo gesto era um gesto criador
e as coisas começavam e o mundo sempre em simples sons se descobria
quando ninguém ainda se movia na periferia da necessidade ou da conveniência
e havia gigantescas tílias que nos davam sombra em troca do cansaço
e a formosura das mulheres se notava até na violência do silêncio
junto às folhas recentes das amigas amoreiras perto de ameixieiras encarnadas
quando as águas do mar eram ainda águas sem medida revolvidas
e não como hoje são domésticas e mansas
quando os homens viviam na intimidade da sensibilidad e dilatavam
as narinas para aspirar profundamente o cheiro do suor
das mulheres quando após o esforço principiava a arrefecer
e todas as palavras eram relativamente novas e caíam como pétalas
e não havia tantas miudas minudências rodeando os corpos

Qando as raparigas punham todo o peso da sua esmagadora juventude
no pé e o pé no pó das antigas estradas a caminho das fontes
onde a água corria pelos vagarosos dias desse tempo


Ruy Belo

Excerto de A margem da alegria (1974)


terça-feira, 27 de abril de 2021

Paulo Henriques Britto - Geração Paissandu




GERAÇÃO PAISSANDU

Vim, como todo mundo,
do quarto escuro da infância,
mundo de coisas e ânsias indecifráveis,
de só desejo e repulsa.
Cresci com a pressa de sempre.

Fui jovem, com a sede de todos,
em tempo de seco fascismo.
Por isso não tive pátria, só discos.
Amei, como todos pensam.
Troquei carícias cegas nos cinemas,
li todos os livros, acreditei
em quase tudo por ao menos um minuto,
provei do que pintou, adolesci.

Vi tudo que vi, entendi como pude.
Depois, como de direito,
endureci. Agora a minha boca
não arde tanto de sede.
As minhas mãos é que coçam -
vontade de destilar
depressa, antes que esfrie,
esse caldo morno da vida.

Paulo Henriques Britto

Paulo Henriques Britto (Rio de Janeiro, 1951) é um poeta, professor e tradutor brasileiro.


"A geração Paissandu" em Digestivo Cultural e em Setaro's Blog.



quinta-feira, 15 de abril de 2021

Sá de Miranda - Comigo me desavim

Sá de Miranda, por Elvira Palma. Évora. Foto de Jaime Silva


Comigo me desavim,
Sou posto em todo perigo,
Não posso viver comigo,
Não posso fugir de mim.

Com dor, de gente fugia,
Antes que esta assim crescesse:
Agora já fugiria
De mim, se de mim pudesse.

Que meio espero ou que fim
Do vão trabalho que sigo,
Pois que trago a mim comigo,
Tamanho imigo de mim?

Sá de Miranda



Meio: Mais 

Imigo: Inimigo.


segunda-feira, 12 de abril de 2021

Filipa Leal - "Talvez por causa da Luísa..."

Filipa Leal


Talvez por causa da Luísa,
não guardei do colégio amigos de infância.
Cresci entre as minhas primas,
na quinta dos avós.
Um dia fizemos o nosso esconderijo
na pocilga já vazia de animais.
Numa parede pintámos o sol,
na outra a lua,
e fechávamo-nos naquele cubículo,
a fumar cigarros roubados aos pais,
como quem começa a preferir a arte
à natureza.

Filipa Leal


 


sexta-feira, 9 de abril de 2021

Mário de Andrade - "Na rua Aurora eu nasci..."

Casa em que M. de Andrade nasceu, em São Paulo, rua Aurora nº320* 


Na rua Aurora eu nasci
Na aurora da minha vida
E numa aurora cresci.

No largo do Paissandu
Sonhei, foi luta renhida,
Fiquei pobre e me vi nu.

Nesta rua Lopes Chaves
Envelheço, e envergonhado
Nem sei quem foi Lopes Chaves.

Mamãe! me dá essa lua,
Ser esquecido e ignorado
Como esses nomes da rua.

Mário de Andrade

Lira Paulistana (1945)

https://www.culturagenial.com/poemas-de-mario-de-andrade/



terça-feira, 6 de abril de 2021

Miguel Torga - Dies Irae

Fotografia de André Pipa

 

DIES IRAE

Apetece cantar, mas ninguém canta.
Apetece chorar, mas ninguém chora.
Um fantasma levanta
A mão do medo sobre a nossa hora.

Apetece gritar, mas ninguém grita.
Apetece fugir, mas ninguém foge.
Um fantasma limita
Todo o futuro a este dia de hoje.

Apetece morrer, mas ninguém morre.
Apetece matar, mas ninguém mata.
Um fantasma percorre
Os motins onde a alma se arrebata.

Miguel Torga 



domingo, 4 de abril de 2021

António Reis - "É domingo hoje..."

Fotografía de Gonçalo Filipe
 


É domingo hoje
mas nós não saímos

é o único dia
que não repetimos

e que dura menos

Mas põe o teu rouge
que eu mudo a camisa

não como quem
de ilusão
precisa

Tomaremos chá
leremos um pouco

e iremos à varanda
absortos

António Reis

quinta-feira, 1 de abril de 2021

Manoel de Barros - A boca

© Monica Silveira

 

A BOCA

"Por mim passavas
- a água mais pura -
e eu sofri sede.

Agora penso
nessa abertura
com que por anos
me envenenaste,
com que por anos
a minha infância
tornaste impura,
tornaste indigna
de andar ao lado
de outras infâncias...
Agora penso
deixar na fenda
de tua boca,
dissimulada,
todo o veneno
de que me inundas.
Porém és morta
resignada,
ó boca amarga
de namorada
nunca atingida,
sempre ane
boca perdida
para as saudades,
jamais beijada.

Dorme entre flores.

(Será dos anjos?)

Vai para os anjos
vai para os pássaros
do firmamento,
ó boca amarga,
que me enganavas
com aquele riso
posto no canto!

Por mim passavas
- a água mais pura -
e eu sofri quanto.

Estás no seio
da morte, quente
como na terra;
me conturbavas
como na rua
tu exibias
teus belos dentes...

Vai, grota rasa!

Flor obscura
na minha infância
desabrochada,
continuada
na adolescência
perto de casa,
na vizinhança,
solta na rua
como uma fruta
covil aberto
de mil acenos,
cobra na rua
que me mordia,
que me injetava
sutis venenos...

Vai, pesadelo,
noites de insônia,
pura miragem
de minha sede;
vai para o diabo
que te carregue,
não me persiga:
sai, boca morta!"

Manoel de Barros


segunda-feira, 29 de março de 2021

Cristóvão Falcão - Como dormirão meus olhos?


Como dormirão meus olhos?
Não sei como dormirão,
Pois que vela o coração.

«Toda esta noite passada,
Que eu passei em sentir,
Nunca a pude dormir,
De ser muito acordada.
Dos meus olhos fui velada;
Mas como não velarão
Pois que vela o coração?

«As horas dela, cuidei
Dormi-las, foram veladas,
Pois tão bem as empreguei,
Dou-as por bem empregadas.
Todas as noites passadas
Neste pensamento vão,
Pois que vela o coração.

«Pássaros que namorados
Pareceis no que cantais,
Não ameis, que, se amais,
De vós sereis desamados.
Em meus olhos agravados
Vereis se tenho razão,
Pois que vela o coração

Cristóvão Falcão 

 (c.1515-1553/57) 

Wikipédia

(Pintura: Jovem adormecido, 1931, de Eugene Berman, russo (ativo em França), 1899–1972. Boston MFA)


quinta-feira, 25 de março de 2021

Luís Amaro - Fuga

Luís Amaro, por Luís Manuel Gaspar


FUGA

Numa nuvem de esquecimento
passar a vida,
sem mágoas, sem um lamento,
água correndo, impelida
pelo vento.

Ouvir a música do instante que passa
e recolhê-la no coração,
olhos fechados à dor e à desgraça,
os ouvidos atentos à canção
do instante que passa.

Beber a luz doirada que irradia
dos vastos horizontes,
e ver escoar-se o dia
entre pinhais e montes...
Doce melancolia.

Esquecer todas as agruras
que lá vão
e este negro mar de desventuras
em que voga ao sabor de torvas
ondas meu coração.

Luís Amaro


"Luís Amaro (1923-2018): um homem que era a memória viva da literatura portuguesa contemporânea", (Público, 24 de agosto de 2018) 
 
Luís Amaro, poeta, editor, bibliófilo e investigador português, na Wikipédia



segunda-feira, 22 de março de 2021

António Osório - As adolescentes

Fotografia de Sven L


AS ADOLESCENTES

A pele mosqueada da maçã reineta,
um ar vago e doce, feliz.
Subitamente correm como rapazes,
são a corda do arco
que se dilata e a seta do corpo
chega aos quinze anos,
quando abrem as ancas
e amam como se fossem mães.

António Osório

A Raiz Afectuosa (1972)


A Raiz Afectuosa na Infopédia



quinta-feira, 18 de março de 2021

Vitorino Nemésio - “Tenho uma saudade tão braba..."

Ilha Terceira, Acores - © Viaje-Comigo


Tenho uma saudade tão braba
Da ilha onde já não moro,
Que em velho só bebo a baba
Do pouco pranto que choro.

Os meus parentes, com dó,
Bem que me querem levar,
Mas talvez que nem meu pó
Mereça a Deus lá ficar.

Enfim, só Nosso Senhor
Há-de decidir se posso
Morrer lá com esta dor,
A meio de um Padre Nosso.

Quando se diz «Seja feita»
Eu sentirei na garganta
A mão da Morte, direita
A este peito, que ainda canta.

Vitorino Nemésio


Caderno de Caligraphia e outros Poemas a Marga (2003) - Póstumo


A palavra brabo no dicionário Priberam

"Bravo ou brabo" (Dúvidas de Português)




segunda-feira, 15 de março de 2021

Mário de Sá-Carneiro - Quasi




QUÁSI

Um pouco mais de sol - eu era brasa,
Um pouco mais de azul - eu era além.
Para atingir, faltou-me um golpe d'asa...
Se ao menos eu permanecesse àquem...

Assombro ou paz? Em vão... Tudo esvaído
Num baixo mar enganador de espuma;
E o grande sonho despertado em bruma,
O grande sonho - ó dôr! - quási vivido...

Quási o amor, quási o triunfo e a chama,
Quási o princípio e o fim - quási a expansão...
Mas na minh'alma tudo se derrama...
Entanto nada foi só ilusão!

De tudo houve um começo... e tudo errou...
- Ai a dôr de ser-quási, dor sem fim... -
Eu falhei-me entre os mais, falhei em mim,
Asa que se elançou mas não voou...

Momentos d'alma que desbaratei...
Templos aonde nunca pus um altar...
Rios que perdi sem os levar ao mar...
Ansias que foram mas que não fixei...

Se me vagueio, encontro só indicios...
Ogivas para o sol - vejo-as cerradas;
E mãos de herói, sem fé, acobardadas,
Puseram grades sôbre os precipícios...

Num impeto difuso de quebranto,
Tudo encetei e nada possuí...
Hoje, de mim, só resta o desencanto
Das coisas que beijei mas não vivi...

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

Um pouco mais de sol - e fôra brasa,
Um pouco mais de azul - e fôra além.
Para atingir, faltou-me um golpe de aza...
Se ao menos eu permanecesse àquem...

Mário de Sá-Carneiro



sexta-feira, 12 de março de 2021

Raul de Carvalho - A cidade

Lon&Queta - Dos amigas; Jinotega, Nicaragua

 

A CIDADE

A luminosidade
desta gente.
Por toda a parte
gente bonita.

Atirando
ramos de flores
nos olhares.

Tão velha a vida.

Raul de Carvalho
(1920 - 1984)


Lido em Rua das Pretas 


Raul de Carvalho na Infopédia.


segunda-feira, 8 de março de 2021

Ruy Belo - Vat 69

Fotografia de Joseph Sudek



VAT 69

Era depois da morte herberto helder
Ia fazer três anos que morrêramos
três anos dia a dia descontados no relógio
da torre que de sombra nos cobriu a infância:
rodas no adro - gira a borboleta que se atira ao ar
o jogo do berlinde o trinta e um pedradas
nas cabeças nos ninhos nas vidraças
Foi quando verdadeiramente começou
a conspiração dos líquenes cabelos e avencas
na mina onde molhámos nossos jovens pés
e tirámos retratos pra morrer mais uma vez
Os nossos filhos - nós outra vez crianças -
comiam e gostavam das laranjas essas mesmas laranjas
que mordemos em tempos ao chegar nas férias de natal
no quintal que as máximas mãos deixaram já depois abandonado
Era a seguir à morte meu poeta
era na meninice havia festa e na sala da entrada
pensávamos na morte - nunca mais - pela primeira vez
Trincávamos cheirávamos maças no muro sobre a praia
roubávamos o balde ou íamos atrás do homem dos robertos
Era nas férias havia o mar e íamos à missa
ouvíamos a campainha e o padre voltava-se pra nós
-orate frates - ou íamos ao cemitério apesar do catitinha
Era depois da morte sobre a plana infância
o primeiro natal o cheiro do jornal
lido na adega ou na casa do forno
sentados pensativos sobre a terra húmida
Era na infância o sol caía enquanto água corria
entre os pés de feijão e os buracos de toupeiras
calcados prontamente pelas botas
soprava o vento e vinha a moinha da eira
o cão comia o bolo e morria debaixo da figueira
e teria sepultura com enterro e cruz e muitas flores
Havia casamentos o meu pai falava
e os noivos deitavam-nos confeitos das carroças
E os registos mistério tempo da prenhez
Era talvez no outono havia asma
havia a festa da azeitona havia os fritos
ao domingo havia os bêbados estendidos pelas ruas
havia tanta coisa no outono havia o cristovam pavia
Era a primavera o rio rápido subia
os barcos navegavam entre a vinha
e alastrava a sombra e a tarde adensava-se
num espesso e branco nevoeiro de algodão
noite dos candeeiros sombras nas paredes
e minha mãe pegava na espingarda ia à janela
e ouvia-se o chumbo no telhado lá ao longe
O leovigildo o marcolino o sítio do miguel
a sesta a monda das mulheres
a queda do bizarro exposto na igreja
isso e o almoço a saber mal
quando vinham da escola pra saber significados
Eram as despedidas de coelhos e galinhas antes das viagens
Eram as festas era o roubo dos melões
era a menstruação oculta da criada
Era talvez em tempos de tormenta
havia ferros entre a palha por baixo da galinha
que chocava os ovos dentro de um velho cesto
eram as nossas casa em adobe
e era o carnaval os bailes os cortejos
Íamos para a praia e eu lia camilo
ouvia o mar bater sem conseguir compreender
como podia estar ali se tinha estado noutro sítio
Era o tempo dos primeiros amores
eu via o pavão adoecia e só muito mais tarde lia
o trecho que me competia entre as amadas raparigas
A casa não ficava muito longe dos montes
não havia a cidade nem os outros
punham ainda em causa o meu reino de deus
senhor de tudo o que depois não tive
Era depois da morte ou era antes da morte?
Mas haveria a morte verdadeiramente?
Lia o paulo e virgínia chorava e perguntava
se tudo aquilo tinha acontecido
Era o meu pai era esse sonhador incorrigível
sem nunca mais saber que havia de fazer dos dias
Eram as folhas novas eram os perdigotos
saídos não há muito ainda da casca
Era era tanta coisa
Seria realmente após a morte herberto helder

Ruy Belo

 Homem de Palavra[s] (1970)



sexta-feira, 5 de março de 2021

Baltasar Estaço - Do tempo


Fotografia de Mário Soure


DO TEMPO

De tempo em tempo tudo vai andando,
O tempo sem pôr tempo vai correndo,
Sem tempo não se vão os tempos vendo,
Por tempo o tempo vai profetizando.

Do tempo o tempo só pode ir falando,
A tempo se pode ir o tempo erguendo,
C'o tempo se vão tempos entendendo,
Que o tempo vários tempos vai mostrando.

Nunca o tempo perdido é mais cobrado,
Que se o tempo nos tira o que é presente,
Mal pode dar o tempo o que é passado.

O tempo gaste bem todo o prudente,
Que se o tempo que passa é bem gastado,
Todo o tempo passado tem presente.

Baltasar Estaço

 

Padre Baltasar Estaço (1570-16--?) nasceu em Évora e foi cónego da Sé de Viseu. Dedicou-se à poesia e à filosofia escolástica. Por motivos desconhecidos, foi processado pela Inquisição e preso em Julho de 1614. Sabe-se que esteve preso em Coimbra em 1616, onde se tentou suicidar, sendo transferido para Lisboa no ano seguinte. Em 1620 é condenado a prisão perpétua, mas é libertado em 1621 com a condição de não voltar a Viseu. Publicou, a pedido de D. João de Bragança, bispo de Viseu, a obra Sonetos, Éclogas e Outras Rimas (Coimbra, 1604), onde glorifica vários santos e condena as vaidades do mundo num estilo em que ele próprio se propõe dar o exemplo de humildade, mas que é sobretudo feito da exploração teológica dos paradoxos e da coincidentia oppositorum no amor a Deus. Deixou diversas obras manuscritas.

(Projecto Vercial)


segunda-feira, 1 de março de 2021

Pepetela - Os Donos da Língua



OS DONOS DA LÍNGUA

A estória que vos vou contar aconteceu no tempo em que os animais falavam, ou melhor, em que falavam todos o mesmo idioma.

O Senhor Cão, o animal mais velho da floresta, era uma espécie de guardião do verbo. Na verdade via-se a si próprio como o legítimo proprietário da fala.

- A palavra foi criada pelos cães, os quais, por gentileza, a emprestaram aos outros animais - explicava aos filhos. - O vosso avô, o Velho Cão, andou por toda esta floresta, descobrindo e nomeando as coisas: rios, lagos, rochedos, montes e vales, árvores, ervas, flores, frutos, os pequenos insectos, nevoeiros, chuvas,o lodo e a lama. Enfim, tudo. O que nós, cães, não conhecemos, não existe; o que não tem nome, não existe. Assim, a existência da floresta deve-se a nós. Este é um Mundo Cão.

A Senhora Sucuri não gostava de ouvir aquele discurso. Era o animal maior da floresta, falava tão bem como o Senhor Cão, e, como ele, usava chapéu. "A língua pertence a todos", dizia, "da mesma forma que um rio constrói o seu caminho e depois é ele esse caminho, assim nós fazemos uma lingua e a seguir ela nos refaz". A Senhora Palanca achava o mesmo, mas era mais dramática: "A língua sou eu!"; e o Senhor Papagaio repetia: "A língua sou eu, a língua sou eu!". Tímida, a Corça propunha uma outra formulação: "A minha Pátria é a minha língua"; e o Senhor Papagaio repetia: "A minha Pátria é a minha língua, a minha Pátria é a minha lingua".

Um dia o Senhor Cão foi passear para a zona mais remota da floresta, como costumava fazer, empurrado pelo desejo de descobrir coisas novas às quais pudesse dar nome (e existência). A luz era escassa, húmida e verde, naqueles deslimites. Uma lama espessa escondia o chão. As próprias árvores pareciam perigosas.

Algumas tinham os troncos cobertos de picos, outras de resina ácida, flores de uma melancolia crepuscular devoravam tudo em seu redor.

Ali, meio imerso na lama, o Senhor Cão descobriu o esqueleto de um animal desconhecido. Aproximou-se para o estudar melhor, ansioso por lhe dar um nome, agregando-o dessa forma à floresta, ao universo, à imensidão das coisas existentes, mas não lhe ocorreu nada. Ficou assim muito tempo, rondando aquela morte que lhe desorganizava o pensamento. "Como te chamas?", perguntou, já desesperado, e então, para seu grande espanto, o esqueleto ergueu-se e respondeu: "O meu nome? Nunca tive nome.

O Senhor Cão assustou-se:

- O nome é um resumo da alma - disse -, tudo o que existe ou existiu, ou até que se acredita que possa vir a existir, tem de ter um nome.

O esqueleto chocalhou os ossos, indiferente à perplexidade do outro:

- Eu nunca tive. Vivi e morri sem que ninguém me nomeasse.

Naquela tarde os outros animais viram o Senhor Cão regressar a casa de cabeça baixa. Achava-se um falhado. Descobrira algo de novo na Floresta e não fora capaz de lhe dar um nome. Adoeceu de desgosto. Alguns dias depois, preocupada, a Senhora Corça foi saber o que se passava e encontrou o Cão às portas da morte.

"Morro", disse-lhe este, "sem ter cumprido o meu papel nesta Floresta". E morreu.

Durante uma semana os animais choraram, dançaram e beberam o morto, conforme a tradição, e depois lançaram o seu cadáver ao rio, e o rio arrastou-o até à zona mais remota da floresta.

Anos depois, ou séculos, não importa, o cão foi parar junto às ossadas do animal desconhecido.

- Estou a conhecer-te - disse o esqueleto. - Tu és o cão. Aquele que se julgava o dono da língua. Mas morreste e a língua continua. Os outros animais servem-se dela, agora, como se fosse um perpétuo Domingo.

- Já alguém te deu um nome? - quis saber o cão - Só isso me interessa.

O outro riu-se:

- Sim - disse -, chamam-me Escuridão.


Pepetela


(Texto publicado com licença da Fundação Gulbenkian, a quem agradecemos)



sexta-feira, 26 de fevereiro de 2021

Gilka Machado - “A que buscas em mim, que vive em meio...”

 

A que buscas em mim, que vive em meio
de nós, e nos unindo nos separa,
não sei bem aonde vai, de onde me veio,
trago-a no sangue assim como uma tara.

Dou-te a carne que sou… mas teu anseio
fora possuí-la – a espiritual, a rara,
essa que tem o olhar ao mundo alheio,
essa que tão somente astros encara.

Por que não sou como as demais mulheres?
Sinto que, me possuindo, em mim preferes
aquela que é o meu íntimo avantesma…

E, ó meu amor, que ciúme dessa estranha,
dessa rival que os dias me acompanha,
para ruína gloriosa de mim mesma!

Gilka Machado

Meu glorioso pecado (1928)

Gilka da Costa de Melo Machado, conhecida como Gilka Machado, (Rio de Janeiro, 12 de março de 1893 - Rio de Janeiro, 11 de dezembro de 1980) foi uma poeta brasileira. Seu trabalho geralmente é classificado como simbolista. Machado ficou conhecida como uma das primeiras mulheres a escrever poesia erótica no Brasil; também foi uma das fundadoras do Partido Republicano Feminino (em 1910), que defendia o direito das mulheres ao voto, atuando no mesmo também como tesoureira.


Mais poemas em Escritas.org 

(Fotografia: Revista O Malho, nº 1578, de março de 1933. Fonte: Biblioteca Nacional Digital, Hemeroteca Digital)


segunda-feira, 22 de fevereiro de 2021

Luíza Neto Jorge - Minibiografia


"No texto poético encontrou Luíza Neto Jorge um espaço de resistência e insubordinação contra a repressão do Estado Novo. Com as palavras recusava o modelo vigente e provocava: «Diferente me concebo e só do avesso/ O formato mulher se me acomoda». É o poema que faz este episódio do programa "Voz", dito pela atriz Joana Seixas. Para ver, ouvir e ler aqui."

Ensina RTP


Minibiografia

Não me quero com o tempo nem com a moda
Olho como um deus para tudo de alto
Mas zás! do motor corpo o mau ressalto
Me faz a todo o passo errar a coda.

Porque envelheço, adoeço, esqueço
Quanto a vida é gesto e amor é foda;
Diferente me concebo e só do avesso
O formato mulher se me acomoda

E se nave vier do fundo espaço
Cedo raptar-me, assassinar-me, cedo:
Logo me leve, subirei sem medo
À cena do mais árduo e do mais escasso.

Um poema deixo, ao retardador:
Meia palavra a bom entendedor.

Luíza Neto Jorge

in A Lume (1989)




Luiza Neto Jorge, tradutora e poetisa portuguesa, nasceu em Lisboa, no dia 10 de maio de 1939.

Foi fundadora do Grupo de Teatro de Letras, na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Desistiu do curso para ir viver para Paris (1962-1970).

Integrou o grupo de poetas que se reuniu em torno do movimento Poesia 61, antologia poética, organizada em fascículos, que reúne textos de Casimiro de Brito, Fiama Hasse Pais Brandão, Gastão Cruz e Maria Teresa Horte, no âmbito do qual publicou Quarta Dimensão. O seu primeiro livro foi Noite Vertebrada, publicado em 1960.

Traduziu obra, nos domínios da poesia, da ficção e do teatro, de autores como Céline, Sade, Marguerite Yourcenar, Garcia Lorca, Boris Vian, entre outros. Recebeu, em 1987, o Grande Prémio de Tradução Literária pela tradução da Obra “Mort à Crédit” de Lous-Ferdinand Céline.

Fez adaptações de textos para teatro e colaborou com alguns cineastas.

Encontra-se representada em quase todas as antologias de poesia portuguesa contemporânea (editadas em Portugal e no estrangeiro) e tem grande parte dos poemas traduzidos para diversos idiomas.

Morreu em Lisboa, no dia 23 de Fevereiro de 1989, vítima de doença pulmonar.

A Editora Assírio & Alvim lançou, em 1993, ‘Poesia’, uma edição que reúne toda a poesia de Luiza Neto Jorge.

(escritores.online)




quinta-feira, 18 de fevereiro de 2021

Mário Cesariny - Homenagem a Cesário Verde

 

Fotografía en escritas.org

HOMENAGEM A CESÁRIO VERDE

Aos pés do burro que olhava para o mar
depois do bolo-rei comeram-se sardinhas
com as sardinhas um pouco de goiabada
e depois do pudim, para um último cigarro
um feijão branco em sangue e rolas cozidas

Pouco depois cada qual procurou
com cada um o poente que convinha.
Chegou a noite e foram todos para casa ler Cesário Verde
que ainda há passeios ainda há poetas cá no país!

Mário Cesariny

Aqui, De tarde, de Cesário Verde.


segunda-feira, 15 de fevereiro de 2021

Carlos Drummond de Andrade - Um Homem e o seu Carnaval




UM HOMEM E O SEU CARNAVAL

Deus me abandonou
no meio da orgia
entre uma baiana e uma egípcia.
Estou perdido.
Sem olhos, sem boca
sem dimensão.
As fitas, as cores, os barulhos
passam por mim de raspão.
Pobre poesia.
O pandeiro bate
É dentro do peito
mas ninguém percebe.
Estou lívido, gago.
Eternas namoradas
riem para mim
demonstrando os corpos,
os dentes.
Impossível perdoá-las,
sequer esquecê-las.
Deus me abandonou
no meio do rio.
Estou me afogando
peixes sulfúreos
ondas de éter
curvas curvas curvas
bandeiras de préstitos
pneus silenciosos
grandes abraços largos espaços
eternamente.

Carlos Drummond de Andrade


Do seu livro Brejo das Almas (1934)


Fotografia: Foliões brincando o carnaval de rua, no Rio de Janeiro, s.d. Fundo Correio da Manhã.



domingo, 14 de fevereiro de 2021

Alexandre O’Neill - “Não o amor não tem asas..."

Coisas do amor! (Fotografia de Luzinete Martinez)


Não o amor não tem asas
se tem asas são as mãos
que se enlaçam para a festa
maravilhosa do corpo
e entre elas o coração

coração acordeão

Alexandre O'Neill

Coração Acordeão. Edição de Vasco Rosa. Lisboa, O Independente, 2004. p.13



quarta-feira, 10 de fevereiro de 2021

Alexandre O'Neill - Desaprender



DESAPRENDER

Há uma altura em que, depois de se saber tudo, tem de se desaprender. Sucede assim com o escrever. Com o escrever do escritor, entenda-se. Eu, provavelmente poeta, estou a aprender a... desaprender. E para quê e como se desaprende? Para deixar de ronronar, para que o leitor, quando o nosso produto lhe chega às mãos, não exclame, satisfeito ou enfastiado: «- Cá está ele!».

Na verdura dos seus anos, a preocupação do escritor parece ser a da originalidade. Ser-se original é mostrar-se que se é diferente. E as pessoas gostam das primeiras piruetas que um sujeito dá. E o sujeito gosta de que as pessoas vejam nele um talento.

Atenção, vêm aí as receitas, as ideias feitas, os passes de mão, os clichés, os lugares selectos ou, mais comezinhamente, os lugares comuns. O escritor está instalado. Revê-se na sua obra. Começa a abalançar-se a voos mais altos, a mergulhos mais fundos. É a intelectualidade que o chama ao seu seio, o público que o põe, vertical, nas suas prateleiras. Arrumado. Quase sem dar por isso, o escritor acomodou-se e tornou-se cómodo, quando propendia, nos seus verdes anos, a incomodar-se e a tornar-se incómodo. Organiza «dossiers» com os recortes das críticas que lhe fizeram ao longo da sua carreira (nome, já de si, chamuscante), vai a colóquios, celebrações, congressos. Ganha prémios.

É traduzido e publicado no estrangeiro. Por desfastio (e por que não?, algum dinheiro) aceita colaborar em conspícuas revistas ou em jornais efémeros como o dia a dia em que vão sendo publicados. Está de tal modo visível que já ninguém dá por ele. É o escritor.

Se as coisas continuarem indefinidamente assim, o escritor pode ser alcandorado a gloríola nacional, com todos os direitos inerentes a uma situação dessas: academia, nome de rua, estatueta ou estátua, tudo isso em devido tempo, quer dizer, já velho ou já morto o escritor. Pedra campal sobre o assunto.

Alexandre O'Neill

Uma Coisa em Forma de Assim (1980)