sábado, 1 de maio de 2021

Ruy Belo - A Margem da Alegria

Robert Grant - Tília, Jardim Botânico da Universidade de Coimbra



quando o mínimo gesto era um gesto criador
e as coisas começavam e o mundo sempre em simples sons se descobria
quando ninguém ainda se movia na periferia da necessidade ou da conveniência
e havia gigantescas tílias que nos davam sombra em troca do cansaço
e a formosura das mulheres se notava até na violência do silêncio
junto às folhas recentes das amigas amoreiras perto de ameixieiras encarnadas
quando as águas do mar eram ainda águas sem medida revolvidas
e não como hoje são domésticas e mansas
quando os homens viviam na intimidade da sensibilidad e dilatavam
as narinas para aspirar profundamente o cheiro do suor
das mulheres quando após o esforço principiava a arrefecer
e todas as palavras eram relativamente novas e caíam como pétalas
e não havia tantas miudas minudências rodeando os corpos

Quando as raparigas punham todo o peso da sua esmagadora juventude
no pé e o pé no pó das antigas estradas a caminho das fontes
onde a água corria pelos vagarosos dias desse tempo


Ruy Belo

Excerto de A margem da alegria (1974)