quinta-feira, 26 de fevereiro de 2015

De "Arquitectura do Silêncio" (Ruy Ventura)



Recordamos que o poeta português Ruy Ventura lê os seus versos na Aula de Poesía Díez Canedo, de Badajoz, na próxima terça-feira, dia 3 de março. Será apresentado na sessão da manhã para os alunos das diferentes escolas secundárias por duas das nossas alunas.


Entre a porta e a mão que bate à porta vai a distância da carne à madeira, a distância do corpo que toca esse pedaço de árvore à existência da própria árvore. Toca a mão na madeira (direi porta?) como se tocasse toda a substância da casa, o seu vento, as suas vozes, os seus cheiros, os seus objectos – a totalidade do espaço que se adivinha para além das janelas e das paredes.

Bate na tarde à porta a mão, na tarde ou talvez pela manhã, acompanhando a solidão que transforma o tempo. À porta a mão identifica todo o corpo que no exterior toca, bate, acorda. Tarde à porta bate a voz da montanha, não apenas pássaro ou árvore, pedra ou riacho, mas toda a terra repetida no interior da sombra e do som dos passos na escada, toda a terra concentrada na mão que bate à porta, acariciando o retrato na inquietação e no inverno.

Entre a porta e o interior da casa vai a distância de um corpo ao outro, vai a distância entre a boca e o vento, a distância que no interior da casa e dos livros reúne cor e ramagem, frio e alimento – viagem com naufrágios ou inscrições, registadas na habitação da tristeza.

*

Primeiro a árvore, devolvida à circunferência do mundo. Depois a terra, a luz, a pedra, separadas uma a uma. De seguida, a memória do lugar, a gestação do sol, o castanheiro atravessando o dia.

A mão delimita o espaço, a inclinação da voz. A porta dará passagem à latitude de um outro terreno onde a noite e o fogo irão plantar o frio da montanha. Não é possível determinar a iluminação de cada uma das janelas; apenas o rosto poderá modificar a planta do edifício.

Depende da transparência a hesitação da casa. A tarde ensaia dentro da linguagem o equilíbrio dos alicerces.

*

(...)



De Arquitectura do Silêncio (1997), primeiro livro do autor, que recebeu o Prémio Revelação de Poesia da Associação Portuguesa de Escritores. O júri estava constituído por Fiama Hasse Pais Brandão, Fernando Pinto do Amaral e Urbano Tavares Rodrigues





segunda-feira, 23 de fevereiro de 2015

Uma citação de Jorge Luis Borges

(Fotografia - Passarinho/Prefeitura de Olinda)




Não existe outro enigma senão o tempo, essa infinita urdidura do ontem, do hoje, do porvir, do sempre e do nunca.

Jorge Luis Borges





quarta-feira, 18 de fevereiro de 2015

Perdoando Deus (Clarice Lispector)

Clarice Lispector


PERDOANDO DEUS

Eu ia andando pela Avenida Copacabana e olhava distraída edifícios, nesga de mar, pessoas, sem pensar em nada. Ainda não percebera que na verdade não estava distraída, estava era de uma atenção sem esforço, estava sendo uma coisa muito rara: livre. Via tudo, e à toa. Pouco a pouco é que fui percebendo que estava percebendo as coisas. Minha liberdade então se intensificou um pouco mais, sem deixar de ser liberdade.

Tive então um sentimento de que nunca ouvi falar. Por puro carinho, eu me senti a mãe de Deus, que era a Terra, o mundo. Por puro carinho mesmo, sem nenhuma prepotência ou glória, sem o menor senso de superioridade ou igualdade, eu era por carinho a mãe do que existe. Soube também que se tudo isso "fosse mesmo" o que eu sentia - e não possivelmente um equívoco de sentimento - que Deus sem nenhum orgulho e nenhuma pequenez se deixaria acarinhar, e sem nenhum compromisso comigo. Ser-Lhe-ia aceitável a intimidade com que eu fazia carinho. O sentimento era novo para mim, mas muito certo, e não ocorrera antes apenas porque não tinha podido ser. Sei que se ama ao que é Deus. Com amor grave, amor solene, respeito, medo e reverência. Mas nunca tinham me falado de carinho maternal por Ele. E assim como meu carinho por um filho não o reduz, até o alarga, assim ser mãe do mundo era o meu amor apenas livre.

E foi quando quase pisei num enorme rato morto. Em menos de um segundo estava eu eriçada pelo terror de viver, em menos de um segundo estilhaçava-me toda em pânico, e controlava como podia o meu mais profundo grito. Quase correndo de medo, cega entre as pessoas, terminei no outro quarteirão encostada a um poste, cerrando violentamente os olhos, que não queriam mais ver. Mas a imagem colava-se às pálpebras: um grande rato ruivo, de cauda enorme, com os pés esmagados, e morto, quieto, ruivo. O meu medo desmesurado de ratos.

Toda trêmula, consegui continuar a viver. Toda perplexa continuei a andar, com a boca infantilizada pela surpresa. Tentei cortar a conexão entre os dois fatos: o que eu sentira minutos antes e o rato. Mas era inútil. Pelo menos a contigüidade ligava-os. Os dois fatos tinham ilogicamente um nexo. Espantava-me que um rato tivesse sido o meu contraponto. E a revolta de súbito me tomou: então não podia eu me entregar desprevenida ao amor? De que estava Deus querendo me lembrar? Não sou pessoa que precise ser lembrada de que dentro de tudo há o sangue. Não só não esqueço o sangue de dentro como eu o admiro e o quero, sou demais o sangue para esquecer o sangue, e para mim a palavra espiritual não tem sentido, e nem a palavra terrena tem sentido. Não era preciso ter jogado na minha cara tão nua um rato. Não naquele instante. Bem poderia ter sido levado em conta o pavor que desde pequena me alucina e persegue, os ratos já riram de mim, no passado do mundo os ratos já me devoraram com pressa e raiva. Então era assim?, eu andando pelo mundo sem pedir nada, sem precisar de nada, amando de puro amor inocente, e Deus a me mostrar o seu rato? A grosseria de Deus me feria e insultava-me. Deus era bruto. Andando com o coração fechado, minha decepção era tão inconsolável como só em criança fui decepcionada. Continuei andando, procurava esquecer. Mas só me ocorria a vingança. Mas que vingança poderia eu contra um Deus Todo-Poderoso, contra um Deus que até com um rato esmagado poderia me esmagar? Minha vulnerabilidade de criatura só. Na minha vontade de vingança nem ao menos eu podia encará-Lo, pois eu não sabia onde é que Ele mais estava, qual seria a coisa onde Ele mais estava e que eu, olhando com raiva essa coisa, eu O visse? no rato? janela? nas pedras do chão? Em mim é que Ele não estava mais. Em mim é que eu não O via mais.

Então a vingança dos fracos me ocorreu: ah, é assim? pois então não guardarei segredo, e vou contar. Sei que é ignóbil ter entrado na intimidade de Alguém, e depois contar os segredos, mas vou contar - não conte, só por carinho não conte, guarde para você mesma as vergonhas Dele - mas vou contar, sim, vou espalhar isso que me aconteceu, dessa vez não vai ficar por isso mesmo, vou contar o que Ele fez, vou estragar a Sua reputação.

... mas quem sabe, foi porque o mundo também é rato, e eu tinha pensado que já estava pronta para o rato também. Porque eu me imaginava mais forte. Porque eu fazia do amor um cálculo matemático errado: pensava que, somando as compreensões, eu amava. Não sabia que, somando as incompreensões, é que se ama verdadeiramente. Porque eu, só por ter tido carinho, pensei que amar é fácil. É porque eu não quis o amor solene, sem compreender que a solenidade ritualiza a incompreensão e a transforma em oferenda. E é também porque sempre fui de brigar muito, meu modo é brigando. É porque sempre tento chegar pelo meu modo. É porque ainda não sei ceder. É porque no fundo eu quero amar o que eu amaria - e não o que é. É porque ainda não sou eu mesma, e então o castigo é amar um mundo que não é ele. É também porque eu me ofendo à toa. É porque talvez eu precise que me digam com brutalidade, pois sou muito teimosa. É porque sou muito possessiva e então me foi perguntado com alguma ironia se eu também queria o rato para mim. É porque só poderei ser mãe das coisas quando puder pegar um rato na mão. Sei que nunca poderei pegar num rato sem morrer de minha pior morte. Então, pois, que eu use o magnificat que entoa às cegas sobre o que não se sabe nem vê. E que eu use o formalismo que me afasta. Porque o formalismo não tem ferido a minha simplicidade, e sim o meu orgulho, pois é pelo orgulho de ter nascido que me sinto tão íntima do mundo, mas este mundo que eu ainda extraí de mim de um grito mudo. Porque o rato existe tanto quanto eu, e talvez nem eu nem o rato sejamos para ser vistos por nós mesmos, a distância nos iguala. Talvez eu tenha que aceitar antes de mais nada esta minha natureza que quer a morte de um rato. Talvez eu me ache delicada demais apenas porque não cometi os meus crimes. Só porque contive os meus crimes, eu me acho de amor inocente. Talvez eu não possa olhar o rato enquanto não olhar sem lividez esta minha alma que é apenas contida. Talvez eu tenha que chamar de "mundo" esse meu modo de ser um pouco de tudo. Como posso amar a grandeza do mundo se não posso amar o tamanho de minha natureza? Enquanto eu imaginar que "Deus" é bom só porque eu sou ruim, não estarei amando a nada: será apenas o meu modo de me acusar. Eu, que sem nem ao menos ter me percorrido toda, já escolhi amar o meu contrário, e ao meu contrário quero chamar de Deus. Eu, que jamais me habituarei a mim, estava querendo que o mundo não me escandalizasse. Porque eu, que de mim só consegui foi me submeter a mim mesma, pois sou tão mais inexorável do que eu, eu estava querendo me compensar de mim mesma com uma terra menos violenta que eu. Porque enquanto eu amar a um Deus só porque não me quero, serei um dado marcado, e o jogo de minha vida maior não se fará. Enquanto eu inventar Deus, Ele não existe.

Clarice Lispector


Publicado no Jornal do Brasil em 19/9/1970 e depois no livro "A descoberta do mundo".Texto completo do conto.
(Fonte)



sexta-feira, 13 de fevereiro de 2015

Há palavras que nos beijam (Alexandre O'Neill)



Há palavras que nos beijam
Como se tivessem boca.
Palavras de amor, de esperança,
De imenso amor, de esperança louca.

Palavras nuas que beijas
Quando a noite perde o rosto;
Palavras que se recusam
Aos muros do teu desgosto.

De repente coloridas
Entre palavras sem cor,
Esperadas inesperadas
Como a poesia ou o amor.

(O nome de quem se ama
Letra a letra revelado
No mármore distraído
No papel abandonado)

Palavras que nos transportam
Aonde a noite é mais forte,
Ao silêncio dos amantes
Abraçados contra a morte.

Alexandre O'Neill




(Lá em cima: Alexandre O'Neill, numa caricatura do cartonista António nas paredes da extensão do metro do aeroporto de Lisboa)



quarta-feira, 11 de fevereiro de 2015

História de Verão (Eugénio de Andrade)

Fotografia de Victor Habib




HISTÓRIA DE VERÃO

Uma abelha, dessas que dizem ser italianas, entrou pela janela, obstinou-se em escolher-me, pousa-me no ombro, descansa dos seus trabalhos. Lisonjeado com aquela preferência, comecei a amá-la devagar, retendo a respiração, com receio de que não tardasse a dar pelo seu engano, que cedo viesse a descobrir que não era eu a haste de onde se avistam as dunas. Mas o seu olhar tranquilizava, era calma ondulação do trigo. Agora só uma interrogação perturbava a minha alegria - comigo, como é que faria o seu mel?

Eugénio de Andrade

Do seu livro Memória doutro Rio (1978).




segunda-feira, 9 de fevereiro de 2015

Cantiga pra não morrer (Ferreira Gullar)

Fotografia de Guto



CANTIGA PRA NÃO MORRER

Quando você for se embora,
moça branca como a neve,
me leve.

Se acaso você não possa
me carregar pela mão,
menina branca de neve,
me leve no coração.

Se no coração não possa
por acaso me levar,
moça de sonho e de neve,
me leve no seu lembrar.

E se aí também não possa
por tanta coisa que leve
já viva em seu pensamento,
menina branca de neve,
me leve no esquecimento.

Moça de sonho e de neve,
me leve no esquecimento,
me leve.

Ferreira Gullar


Ferreira Gullar, pseudônimo de José Ribamar Ferreira (São Luís, 10 de setembro de 1930) é um poeta, crítico de arte, biógrafo, tradutor, memorialista e ensaísta brasileiro e um dos fundadores do neoconcretismo.



quinta-feira, 5 de fevereiro de 2015

Ausência (Sophia de Mello Breyner)

Fotografia de Julia Moraes




AUSÊNCIA

Num deserto sem água
Numa noite sem lua
Num país sem nome
Ou numa terra nua

Por maior que seja o desespero
Nenhuma ausência é mais funda do que a tua.

Sophia de Mello Breyner Andresen




segunda-feira, 2 de fevereiro de 2015

Um poema de Fiama Hasse Pais Brandão




«Com o suor do teu rosto ganharás
o teu pão», escreveram no teu berço.
Dormiste, respiraste e, um dia,
escarneceram do suor do teu rosto.

É hoje, quando tu, filho de Europa,
expulso da seara do teu trigo,
em todos os muros vês escrito
que o suor é vão, e o teu rosto negado.

Fiama Hasse Pais Brandão

(1938 - 2007)


Do livro Cenas Vivas, Relógio d'Água, Abril de 2000