segunda-feira, 25 de junho de 2012

Poema das coisas belas (António Gedeão)

 Fotografia de Gogliardo Maragno


Pela beleza do mundo, pela beleza das palavras, estes versos do poeta português António Gedeão, pseudónimo de Rómulo de Carvalho.

Um reino maravilhoso despede-se até setembro.


POEMA DAS COISAS BELAS

As coisas belas,
as que deixam cicatrizes na memória dos homens,
por que motivos serão belas?
E belas, para quê?

Põe-se o Sol porque o seu movimento é relativo.
Derrama cores porque os meus olhos veem.
Mas por que será belo o pôr do sol?
E belo, para quê?

Se acaso as coisas não são coisas em si mesmas,
mas só são coisas quando percebidas,
por que direi das coisas que são belas?
E belas, para quê?

Se acaso as coisas forem coisas em si mesmas
sem precisarem de ser coisas percebidas,
para quem serão belas essas coisas?
E belas, para quê?




quinta-feira, 21 de junho de 2012

Banco de trás - Bianda

 Fotografia de mazinhobh

Banco de trás

As crianças estão no banco de trás, adivinhando jogos com as matrículas dos carros que passam, tal qual nós, uma vez crianças, fazíamos, no carro do meu pai. Banco de trás é o lugar reservado às crianças, de onde o mundo passa muito depressa. Estamos na cidade, depois já nas montanhas, de seguida chegamos à praia, calávamos subitamente quando passávamos por um lugar novo, ou uma estrada na montanha, as vezes o carro tinha de ir devagar quando havia perigo, as vezes umas pessoas olhavam para dentro do carro e não sorriam, mas nós estávamos no banco de trás, o lugar que nos pertencia para sempre, onde nada nos podia acontecer. Do banco de trás descobrimos enigmas inimagináveis, como por exemplo que havia mais carros de matrícula par que ímpar, que havia mais carros brancos que azuis e reparamos que tinha um carro sempre parado no mesmo sítio, as janelas já todas cobertas de poeira, talvez o seu dono tivesse tivesse sido raptado. Guardamos os segredos, talvez até pudessem ser precisos, mas eram exclusivamente nossos. 

Sigo lentamente, muito interessado nas coisas que os meninos vêem lá fora e os seus jogos de adivinhação. Dão saltos quando descobrem algo novo. Sigo lentamente. Aos poucos os pensamentos quotidianos me voltam à cabeça. Faço contas, calculo o dia de amanhã, passo em revistas os acontecimentos marcantes do dia. Paro numa bomba de gasolina para reabastecer o carro.

Do blogue Bianda 


segunda-feira, 18 de junho de 2012

Aparição (Vergílio Ferreira)

 Évora (Ilustração de J.P.Nogueira)

Pelas nove da manhã desse dia de Setembro cheguei enfim à estação de Évora. Nos meus membros espessos, no crâneo embrutecido, trago ainda o peso de uma noite de viagem. Um moço de fretes abeirou-se de mim, ergue a pala do boné:

– É preciso alguma coisa, senhor engenheiro?

Dou-lhe as malas, digo-lhe que há ainda um caixote de livros a desembarcar.

– Então é dar-me a senhazinha, senhor engenheiro.

– Mas não me trate por engenheiro. Sou professor do Liceu.

Com passinhos curtos, anda dobrado, como se tivesse dores de bexiga. A cara e os olhos, são vermelhos, ensopados em sangue. Carrega tudo aos ombros com uma complicação de cordéis, prometeme-me uma pensão muito boa, mesmo na Praça, "que é já ali", e convida-me a segui-lo com os seus olhos lastimosos de aguardente. Está uma manhã bonita, com um sol íntimo dourando o ar, um vento leve da planície, fresco de orvalhos. À minha frente, o moço de fretes, agachado sobre si, vai dançando um estranho ritmo de arame, com os seus passos saltitados. Mal o olho. Trago em mim um pesadelo de ideias, um cansaço profundo que me halaga, me submerge. A Praça ainda é longe, e não "já ali", como me garantira o moço. Mas a angústia que me habita, a violenta redescoberta da morte, que eu acabo de fazer, tornam-me estranho nesta cidade branca, separaram-ma dos meus olhos vazios. Venho de luto. O meu pai morreu. Que têm que fazer, em face da minha dor, da minha alucinação, estas árvores matinais da avenida que percorro, a branca aparição desta cidade-ermida?

– Estamos quase, senhor engenheiro.

Vergílio Ferreira 


Assim é que começa o capítulo I do seu romance Aparição (1959)


segunda-feira, 11 de junho de 2012

Na colina do instante (Ruy Belo)




NA COLINA DO INSTANTE

Há um cheiro de absinto quando os capricórnios
da casca apodrecida dos carvalhos velhos
iniciam seu voo pelo mês de junho
Colhemos avelãs ao longo do jardim
onde as tílias ao vento espalham o aroma
A frescura da fruta vence o sol rasante
Somos quem fomos caminhamos tão de leve
temos tamanha dignidade de crianças
que nem a morte aqui de nós se lembraria
nem mesmo a monstruosa flor de outros destinos
nem qualquer outra das repúblicas do ódio
encresparia o calmo mar do fim da tarde
É à celebração sagrada do acaso
à festa da essência mineral do mundo
que o sol procede no segredo deste templo
A tarde é tudo e tudo são caminhos
Somos eleitos cúmplices da hora
Aqui não chega o desatino do verão
esqueço a aversão dos meus antepassados
e levanto-me sobre a derradeira luz
Por instantes sou eu ninguém morreu aqui
ó minha vida esse processo que perdi

Ruy Belo


Do seu livro Transporte no Tempo (1973)



segunda-feira, 4 de junho de 2012

Já ninguém te pisa o dedo do pé que não tens (Luís Leal Pinto)


Um meu amigo perdeu alguém muito querido da sua família ("embarcou no derradeiro cruzeiro")  e escreveu os versos seguintes. Lá vai um abraço para ele.



Já ninguém te pisa o dedo do pé que não tens.
Sim, lembras-te? Aquele que se esfumou como um cigarro numa dessas caçadas às rolas…
Sim, as rolas? Essas que tanto gostas.
E a pedra de fazer maionese?
Tens de me dar tempo para ver se ta levo com cuidado, não vá cair até que nos vejamos outra vez. Prometo que ta levo inteira, só para te ouvir o riso rouco enquanto fazes pouco de mim.
Queres que abra o bar para bebermos a última mini da Harmonia?
Preferes um whisky elegante? O que quiseres tio. Sou o teu sobrinho.
Sim, o azul dos meus olhos é a prova evidente que sou filho dum alemão da base de Beja.
Podes acordar-me com um copo de água gelada ou dar-me aquelas sovas de cócegas. Eu prometo que acordo e não te vomito o carro como quando os quilómetros infantis até ao Algarve me enjoavam e deixavam resíduos na caixa de velocidades.
Sabes como me impressionas a falar todas as línguas possíveis e imaginárias? Ainda hoje te imito mas faltam-me as tuas vogais fechadas, fruto da fonética do bigode que cortaste ficando sobre o lábio eternamente.
Com sorte ainda vês o Sporting a perder. Não é difícil e eu fico feliz. Descansa, hás-de ser sempre o meu lagarto favorito.
Queres que chame a “Luzia por um buraco” e o “Manel cu-de-pincel”, que hoje não está a cagar no mato? (Não sejas judeu e não atires pedras!)
Talvez possamos ir aos ninhos antes de a noite cair. Enquanto for dia manter-nos-emos todos Leais.
Embarcarás outra vez.
Este cruzeiro é uma categoria, sei que vou fazer esta rota turística.
Teremos escalas em comum,
Aí direi que sou o sobrinho do Gomes, num inglês de vogais fechadas como o teu.

Luís Leal Pinto


(Fonte: o seu blogue Senderos da Mão Esquerda)