segunda-feira, 28 de junho de 2021

"Maria atravessou o regato..."

Fotografia de Márcia Marton, Regato em Gonçalves, MG

 

Maria atravessou o regato,
molhou a barra do vestido.
Na água deixou o retrato
de tudo o que estava escondido.


 

Este poema popular foi "recolhido por Mário de Andrade em suas andanças pelo interior do Brasil nas primeiras décadas do século XX."

V. Antologia da Poesia Erótica Brasileira. Organização de Eliane Robert Moraes, Lisboa, Tinta da China, MMXVII


sexta-feira, 25 de junho de 2021

Ana Paula Tavares - Rapariga

Fotografia de Rui Romão


RAPARIGA

Cresce comigo o boi com que me vão trocar
Amarram-me já às costas, a tábua Eylekessa

Filha de Tembo
organizo o milho

Trago nas pernas as pulseiras pesadas
Dos dias que passaram...
Sou do clã do boi -

Dos meus ancestrais ficou-me a paciência
O sono profundo do deserto
A falta de limite...

Da mistura do boi e da árvore
a efervescência
o desejo
a intranquilidade
a proximidade
do mar

Filha de Huco
Com a sua primeira esposa
Uma vaca sagrada
concedeu-me
o favor das suas tetas úberes.

Ana Paula Tavares 


Ana Paula Tavares (Lubango, 1952) na Infopédia.



sábado, 12 de junho de 2021

Sophia de Mello Breyner Andresen - Soneto à maneira de Camões

 

Fotografia de Vasco Trancoso

 

SONETO À MANEIRA DE CAMÕES

Esperança e desespero de alimento
Me servem neste dia em que te espero
E já não sei se quero ou se não quero
Tão longe de razões é o meu tormento.

Mas como usar amor de entendimento?
Daquilo que te peço desespero
Ainda que mo dês - pois o que eu quero
Ninguém o dá senão por um momento.

Mas como és belo, amor, de não durares,
De ser tão breve e fundo o teu engano,
E de eu te possuir sem tu te dares.

Amor perfeito dado a um ser humano:
Também morre o florir de mil pomares
E se quebram as ondas no oceano.

Sophia de Mello Breyner Andresen



quinta-feira, 10 de junho de 2021

Luís de Camões - "Eu cantarei de amor tão docemente..."

 

Cia de Foto

 

Eu cantarei de amor tão docemente,
Por uns termos em si tão concertados,
Que dous mil acidentes namorados
Faça sentir ao peito que não sente.

Farei que o amor a todos avivente,
Pintando mil segredos delicados,
Brandas iras, suspiros magoados,
Temerosa ousadia e pena ausente.

Também, Senhora, do desprezo honesto
De vossa vista branda e rigorosa,
Contentar-me-ei dizendo a menor parte.

Porém, para cantar de vosso gesto
A composição alta e milagrosa,
Aqui falta saber, engenho e arte.

Luís de Camões 

 

 

quarta-feira, 9 de junho de 2021

António Osório - Camões

Fotografia de Maurizio Parola

 

CAMÕES

Lia-me Camões meu Pai.
A tristeza de ambos
se juntava, em mim crescia.
E a voz, a inalterável
mergulhia das palavras
procriavam sarmentosos liames.
(Basílico a Mãe depunha no lume,
a carne com alecrim perfumava).
O livro de carneira negra,
as letras juntas em oiro:
morros, alusões, muros
verdentos, o último da vida ouvia.
Mordaça invisível. Em lágrimas,
minhas, de meu Pai e de Camões, voava.

António Osório



segunda-feira, 7 de junho de 2021

Carlos Drummond de Andrade - "A grande dor das cousas que passaram..."

Trude Fleischmann, fotografia de Tilly Losch


A grande dor das cousas que passaram
transmutou-se em finíssimo prazer
quando, entre fotos mil que se esgarçavam,
tive a fortuna e graça de te ver.

Os beijos e amavios que se amavam,
descuidados de teu e meu querer,
outra vez reflorindo, esvoaçaram
em orvalhada luz de amanhecer.

Ó bendito passado que era atroz,
e gozoso hoje terno se apresenta
e faz vibrar de novo minha voz

para exaltar o redivivo amor
que de memória-imagem se alimenta
e em doçura converte o próprio horror!

Carlos Drummond de Andrade


Erros meus, má fortuna, amor ardente
Em minha perdição se conjuraram;
Os erros e a fortuna sobejaram,
Que para mim bastava amor somente.

Tudo passei; mas tenho tão presente
A grande dor das cousas que passaram,
Que as magoadas iras me ensinaram
A não querer já nunca ser contente.

Errei todo o discurso dos meus anos;
Dei causa a que a fortuna castigasse
As minhas mais fundadas esperanças.

De amor não vi senão breves enganos.
Oh! quem tanto pudesse, que fartasse
Este meu duro Gênio de vinganças!


Rubem Braga dizia que o verso "A grande dor das cousas que passaram" era um dos maiores de Camões, por sua beleza ser toda construída com palavras corriqueiras da nossa língua. (aqui)


terça-feira, 1 de junho de 2021

Mário Dionísio - Balada dos amigos separados

Fotografia de César Augusto V.R.


BALADA DOS AMIGOS SEPARADOS

Onde estais vós Alberto Henrique
João Maria Pedro Ana?
Onde anda agora a vossa voz?
Que ruas escutam vossos passos?
Ao norte? ao sul? aonde? aonde?
José António Branca Rui
E tu Joana de olhos claros
E tu Francisco E tu Carlota
E tu Joaquim?
Que estradas colhem vosso olhar?
Onde anda agora a vossa vida repartida?
A oeste? A leste? Aonde? aonde?
Olho prà frente prà cidade
e pràs outras cidades por trás dela
onde se agitam outras gentes
que nunca ouviram vosso nome
e vejo em tudo a vossa cara
e oiço em tudo o som amigo
a voz de um a voz de outro
e aquele fio de sol que se agitava
sempre
em todos nós
Dançam as casas nesta noite
ébrias de sombra nesta noite
que se prolonga em plena angústia
aos solavancos do destino
e não consegue estrangularmos
Sigo e pergunto ao vento à rua
e a esta ânsia inviolável
que embebe o ar de calafrios
Onde estais vós? onde estais vós?
E por detrás de cada esquina
e por detrás de cada vulto
o vento traz-me a vossa voz
a rua traz-me a vossa voz
a voz de um a voz de outro
toada amiga que me banha
tão confiante tão serena
Aqui aqui em toda a parte
Aqui aqui E tu? aonde?

Mário Dionísio


De As Solicítações e Emboscadas (1945)


(Centro Mário Dionísio)