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sábado, 13 de setembro de 2025

Miguel Torga - Sísifo

 


SÍSIFO  

Recomeça…
Se puderes,
Sem angústia e sem pressa.
E os passos que deres,
Nesse caminho duro
Do futuro,
Dá-os em liberdade.
Enquanto não alcances
Não descanses.
De nenhum fruto queiras só metade.

E, nunca saciado,
Vai colhendo
Ilusões sucessivas no pomar
E vendo
Acordado,
O logro da aventura.
És homem, não te esqueças!
Só é tua a loucura
Onde, com lucidez, te reconheças.

Miguel Torga


Diário XIII  [1977-1982], Coimbra Editora, 1983



(Tiziano, Sísifo, 1548/49)

terça-feira, 16 de maio de 2023

Miguel Torga - Súplica



SÚPLICA

Agora que o silêncio é um mar sem ondas,
E que nele posso navegar sem rumo,
Não respondas
Às urgentes perguntas
Que te fiz.
Deixa-me ser feliz
Assim,
Já tão longe de ti, como de mim.

Perde-se a vida, a desejá-la tanto.
Só soubemos sofrer, enquanto
O nosso amor
Durou.
Mas o tempo passou,
Há calmaria…
Não perturbes a paz que me foi dada.
Ouvir de novo a tua voz seria
Matar a sede com água salgada.

Miguel Torga




(Fotografia de Kavya Hajra)



segunda-feira, 9 de janeiro de 2023

Miguel Torga - Poema




POEMA

O destino plantou-me aqui
e arrancou-me daqui.
E nunca mais as raízes me seguraram
bem em nenhuma terra.

Ter um destino
é não caber no berço onde o corpo nasceu,
e transpor as fronteiras uma a uma
e morrer sem nenhuma.

Miguel Torga



(Fotografia de Robert Grant - Outuno na Serra, Lousã)


segunda-feira, 21 de novembro de 2022

Pepetela - Mandioca de Feitiço



MANDIOCA DE FEITIÇO

                                                                                                   Para Miguel Torga


FAUSTINO E FIRMO, personagens saídos dos «Contos da Montanha», foram por artes mágicas parar a Angola, na década de quarenta. Por artes de magia ou da literatura, o que vai dar tudo no mesmo, pois se sabe que a palavra leva consigo muitos feitiços.

Quanto a Firmo, andarilho compulsivo, não seria de admirar, embora o seu terreno de eleição fosse o Brasil, a Argentina e outras vizinhanças da América hispânica. Todos sabiam, sobretudo na sua aldeia de Vilarinho, que ele desconseguia de ficar parado muito tempo e o mundo o atraia como música de sereia. Por uma única vez trocou de lado no Atlântico e foi encalhar em Luanda. Anos depois de se ter deliciado com a terra e as gentes, reconheceu o patrício Faustino, acabadinho de chegar de Abaças, uma aldeia vizinha nas fragas de Trás-os-Montes. A principio manteve certas reservas, pois sobre Faustino corriam estórias não muito abonatórias de furtos menores praticados nas redondezas das suas aldeias. Já quanto a Faustino, poderia causar alguma estranheza tão comprido percurso para fugir ao destino. Mas nem tanto assim, se pensarmos na miséria em que vivia na montanha, condenado a roubar ninhos de passarinhos, pois pouco mais havia de que suas mãos ávidas e ágeis se pudessem locupletar. A decisão de Faustino veio depois da terrível aventura de, numa noite de tempestade, ter assaltado a desvalida capela da Senhora da Saúde, de onde só retirou uma broncopneumonia que o ia levando desta para melhor. Disse para a mulher quando estava mais recomposto, aqui não fico, é uma vergonha termos uma capela onde nada há para nosso orgulho, apenas uma caixa de esmolas permanentemente vazia e nem um cruci-fixo de prata ou um cálice, nada de jeito, assim também é demais, vou masé roubar para outras freguesias. Um parente afastado mandou-lhe uma providencial carta de chamada e lá embarcou para Luanda na terceira classe do paquete «S. Tomé».

Firmo e Faustino costumavam se encontrar na Pensão Flaviense, para beber um copo e matar saudades da terra. Sobretudo para compararem Vilarinho e Abaças, chegando sempre ao consenso de que se igualavam na miséria e na falta de perspectivas. No entanto, Firmo já morria de saudades e mostrava muita inquietação com a sua permanência parada em Luanda, embora tivesse um bom emprego, do qual ia amealhando uma razoável maquia. Na altura em que Faustino lhe confidenciou que tinha finalmente arranjado trabalho numa roça de café no Uíje, onde certamente ia enriquecer pois o café era o futuro, Firmo revelou que comprara passagem num barco zarpando daí a dias, voltando à terra por tempo incerto mas o suficiente para fazer mais um filho na mulher. Deixava em Luanda os dois mulatitos que entretanto gerara na Rosa, sua lavadeira. Estes dois filhos de Firmo cresceriam nas ruas, um pouco ao abandono, embora tivessem todo o carinho da mãe, que os criou sozinha e sem nunca mais rever o transmontano. Cresceram revoltados contra a sua condição de filhos de pai incógnito, como era de esperar, e foram um dia engrossar o exército que libertaria o pais.

Quanto a Faustino, a estória foi outra.

Partiu para o Uíje, terra de montanhas também, mas sendo as urzes substituídas por densas florestas, onde, na sombra das grandes árvores, crescia o arbusto do café, riqueza para uns poucos colonos, maldição escrava para muitos. Começou como capataz na roça, mas em breve ficou uma espécie de gerente, pois o anterior foi evacuado para Luanda por causa de um paludismo fulminante e o patrão não tinha mais ninguém em quem confiar. Confiar no Faustino? O problema foi mesmo esse. O homem não podia ver dinheiro à sua frente. Aprendeu rapidamente o que tinha a fazer e era suficientemente activo para contentar o patrão, também ele um pouco desleixado, mais preocupado emir jogar às cartas na cidade do que em permanecer na roça para controlar as coisas. E o Faustino acabou por ter acesso ao dinheiro das compras de comida para os trabalhadores ou para material urgente. E foi desviando umas migalhas. Temos de compreender, era demais para quem tinha sempre convivido com a fome mais absoluta e sem saber o que lhe iria acontecer no dia seguinte. Foi escondendo aqueles trocados na mala de folha que tinha trazido da Metrópole, era o seu seguro de vida, a sua pensão reforma.

Faustino ainda não tinha aprendido com os outros colonos que em Portugal se habituavam a só ter gente acima deles e, de repente, caídos em África, descobriam ter muita gente abaixo deles afinal. E exerciam até à exaustão sobre esses deserdados da vida o pequenino poder com que de repente se maravilhavam. Faustino só tivera tempo de aprender as tarefas exigidas no serviço e a guardar de lado alguma pequena fortuna para o que desse e viesse. Por isso ainda tratava os trabalhadores da roça como seres humanos. E arranjou uma relação mais chegada, senão amizade, com o ajudante do cozinheiro da casa grande, um jovem esperto que se chamava Ndozi.

Estava a sua vida correndo pelo melhor, apesar do calor a que não estava habituado e dos mosquitos que lhe furavam a pele. Mas num repente lhe desabou o mundo em cima da cabeça. Falta de habilidade nas contas, demasiada confiança, não sabemos ao certo qual o erro, mas o facto é que o patrão foi alertado pelo Costa, seu ajudante na contabilidade e secretaria, da provável existência de algum desvio nos dinheiros destinados à comida dos trabalhadores. Investigaram os dois, no segredo que deve envolver essas coisas, até chegarem ao Faustino. E daí até à mala de folha, onde estava uma quantia que ultrapassava os salários entretanto recebidos pelo capataz-quase-gerente. Patrão e Costa a revistarem a mala e o Ndozi a avisar o Faustino, é melhor fugir, ouvi tudo, o patrão vai chamar a polícia da cidade.

Faustino nem teve muito tempo para pensar, ainda por cima com Ndozi a pressionar, é melhor fugir, é melhor fugir. De facto, nunca se tinha confrontado com a polícia. Os peque-nos delitos em Portugal foram resolvidos entre as suas mãos e a sua consciência, com a excepção da tentativa na capela da Senhora da Saúde, que dessa vez se resolveu entre o seu corpo e os poderes da santa, que lhe pregaram aquela valente broncopneumonia para não mais esquecer. Mas tinha sempre ficado longe da polícia. Por isso o terror de Ndozi, que esse apesar da juventude sabia bem como era brutal a polícia colonial, encontrou terreno fértil no seu temor. E também devemos referir que Faustino tinha uma ponta de vergonha em relação ao patrão, que nele confiara. Mas fugir para onde? Para o mato, claro, onde havia de ser, lhe explicou Ndozi, todo nervoso, como se de liberdade própria se tratasse. Faustino se viu naquele mato do Uíje, florestas atrás de florestas, refúgio de todas as cobras, desde a terrível surucucu à pequena mas fulminante buta, cuja picada matava num minuto. Os trabalhadores do café já lhe tinham mostrado cotos decepados, pois quando na colheita a buta, escondida entre as folhas e parecendo um raminho seco vulgar, mordia a mão que procurava os bagos da fortuna, o homem só tinha tempo de cortar o braço com a catana mais próxima, antes que o veneno começasse a circular no sangue e paralisasse o coração. Hesitava no seu medo e Ndozi teve de o empurrar para o mato, o esconder numa casota abandonada ainda dentro dos limites da roça, fique aqui por um tempo, que eu vou à casa grande falar com o patrão, arranjar uma desculpa para ficar uns dias fora, depois levo-o para algum lado. Faustino nem teve acesso ao seu quarto, ficou assim sem o dinheiro, a mala e toda a roupa. Horas depois veio Ndozi explicar que o patrão lhe tinha concedido três dias para visitar os parentes. Para isso lhe contou que acabava de receber a notícia da morte de um tio e tinha de ir assistir ao óbito. Relatou ainda Ndozi que a polícia tinha chegado à roça para constatar o roubo mas sobretudo o desaparecimento do Faustino, prova mais do que suficiente da sua culpabilidade. Teria pois de ir para outra província, que certa¬mente as buscas se limitariam à cidade, não chegariam ao Kuanza-Norte ou ao Zaire, províncias vizinhas. Leva-me então até lá, não importa qual, olha, a que ficar mais perto de Luanda, a qual era o Kuanza-Norte mas Ndozi não o levaria até lá, apenas até uma estrada onde ele pudesse apanhar uma boleia de algum camião.

Assim combinados, meteram pelo mato e se afastaram da roça, evitando os caminhos e sobretudo as picadas. Levavam apenas uma cabaça cheia de água, que o rapaz trouxera da roça. Segundo este, bastaria dormirem uma noite na caminhada, pois no dia seguinte já Faustino poderia apanhar alguma boleia, quem ia negar levar um branco em estado de necessidade? E como mandava a tradição, até teria direito a ir na cabina, que a carroçaria e a poeira eram destinadas aos negros. Ndozi voltaria logo para a roça, que não lhe convinha ter três dias descontados no ordenado, se o pudesse evitar.

À tarde a fome apertava, porém. Tinham saído cedo da roça, só com algum café tomado. E Faustino não parava de se lamentar, agora que comia três refeições por dia, uma delas sempre de carne, do que nos seus tempos de Portugal nem o cheiro lhe chegava, é que tinha tido o azar de ser apanhado com a massa na mala. Gomo podia o desgraçado do Costa ter descoberto tudo, eram quantias insignificantes de cada vez, mas todos os dias, ou quase todos, é certo, esse Gosta era um coca-bichinhos, umas míseras diferenças lhe chamaram a atenção, estupor. E antes que fosse ele o acusado, tratou de o acusar, só podia ser isso. O Ndozi tinha razão, o patrão ia deixar o caso por ali, nem se ia queixar para Luanda, e ele podia ir viver para outra terra. O problema seria arranjar um emprego tão bom e num sitio tão bonito como é uma montanha de café, com os nevoeiros matinais que são afastados pelo Sol nascente, espalhando luz pelos verdes de todas as cores.

Andaram pelo mato até ao fim da tarde e nessa altura meteram por um caminho que os conduziu a umas lavras de mandioca. Havia aldeia por perto. Ndozi não queria arriscar, pois o branco ia embora, mas ele ficava. Podia acontecer por um azar que algum dos habitantes da aldeia mais tarde soubesse do desaparecimento do Faustino e ligasse os factos. Se fosse contar ao patrão que Ndozi servira de guia, ainda acabava por ser acusado de cúmplice, quando só fazia isto por pena de alguém que sempre o tratara bem, caso raro com os brancos. Tinha pois de evitar ser visto com Faustino. E só havia uma alternativa, dormir com fome.

Mas o outro reconheceu as lavras de mandioca e a barriga roncou mais alto. — Essa mandioca é da que se come?

De facto era a qualidade que não tem veneno e por isso não precisa de ficar em água durante uns dias. Podia ser imediata¬mente consumida e assim Ndozi explicou. Mas logo a seguir apontou para os fiapos de pano vermelho que estavam amarrados nalgumas hastes.

— Tem feitiço. Quem come morre.

E afastou Faustino da lavra, avançando de novo para o mato. Parou pouco depois para descansar.
— É melhor dormirmos aqui. De manhã lhe levo até à estrada, já não fica longe.

E sentou no chão, encostado a um tronco de árvore, descansando. Faustino, apesar de muito fatigado, permaneceu de pé, olhando para o caminho que tinham abandonado. Não conseguia despegar a vista dos troncos finos mas convidativos das mandioqueiras jovens. E a barriga roncava, roncava, mal habituada já àquelas fomes que noutros tempos eram a normalidade. Num repente pegou no facão que levava à cintura e investiu contra a lavra.

— Não faz isso, só Faustino, não faz isso.

Inútil gritar, inútil correr atrás dele, inútil demovê-lo. O português foi mesmo ao primeiro pé de mandioca, com o facão removeu o chão e desenterrou um tubérculo grosso como um braço. Desenterrou outro e voltou para onde estava Ndozi.

— Tens a certeza que esta mandioca não tem veneno?
— Não tem. Mas tem feitiço. E pior.
— Deixa-te disso.
— Esses panos vermelhos que se amarram em cima é para avisar. Essa lavra foi enfeitiçada. Só os donos podem tirar.
— Essas crenças são pagãs, nem devias dizer isso. É pecado.
Ndozi recusou o tubérculo que Faustino lhe estendeu. Este começou a descascar o seu, sentado agora junto de outra árvore.
— Não és católico, ó Ndozi? Não costumas ir à missa?
— Às vezes.
— Então como acreditas nestes feitiços? Disparate.
E meteu à boca um pedaço cortado da mandioca. Doce, suculento, uma delícia para a sua fome.
— Hum, maravilha.

Derrotou o tubérculo inteiro e descascou o outro. Ndozi só olhava, enquanto escurecia à volta deles. Para se entreter, o angolano juntou paus secos que havia à profusão ali perto e fez uma fogueira. Não estava frio, mas era mais aconchegante. E afastava os bichos. Faustino entretanto tinha comido a outra mandioca e bebido água da que Ndozi trouxera da casa grande. A fome tinha passado, se deitou perto da fogueira o mais comodamente que pôde.

A meio da noite, Ndozi foi acordado pelos gemidos do companheiro. Porra, porra, que dores. Faustino se agarrava à barriga, porra, que dores. Tinha vómitos, mas só ar saia. Bem que se torcia, e vomitava, nem saia nada, nem a dor passava.

— Faz alguma coisa, porra, pá.
— Fazer o quê? — disse Ndozi. — Não há nada a fazer. É o feitiço.
— Só a Senhora da Saúde me pode valer, ela é muito mais forte que qualquer feitiço — ainda disse Faustino no meio dos gemi¬dos. — Ai valei-me, Senhora da Saúde.

Não lhe valeu. Ndozi ficou ao lado dele, assistindo impotente e pesaroso à agonia. De manhã, usou o facão de Faustino para cavar uma sepultura no meio do mato. E lá ficou para sempre o ladrão de Abaças. No mais completo segredo.

Fevereiro de 2001

Pepetela


(in «Para Miguel Torga», Câmara Municipal de Sintra, 2001)


(Fonte: Blogue Contos de aula)


quinta-feira, 1 de setembro de 2022

Miguel Torga - Alvorada




ALVORADA

Foi tudo simples:aconteceu.
O dia amanhceu,
Acordei.
E reparei no milagre concreto de viver.
E cantei
Como um galo feliz.
O que esse canto diz
É que não sei.

Miguel Torga, Diário XII




(Alvorada, fotografia de João Caetano Dias)


domingo, 31 de julho de 2022

Miguel Torga - “Tens agora outro rosto, outra beleza...”

 


Tens agora outro rosto, outra beleza:
Um rosto que é preciso imaginar,
E uma beleza mais furtiva ainda...
Assim te modelaram caprichosas,
Mãos irreais que tornam irreal
O barro que nos foge da retina.
Barro que em ti passou de luz carnal
A bruma feminina...

Mas nesse novo encanto
Te conjuro
Que permaneças.
Distante e preservada na distância.
Olímpica recusa, disfarçada
De terrena promessa
Feita aos olhos tentados e descrentes.
Nenhum mito regressa....
Todas as deusas são mulheres ausentes…

Miguel Torga




(Fotografia de Miguel & Strogoff)


terça-feira, 6 de abril de 2021

Miguel Torga - Dies Irae

Fotografia de André Pipa

 

DIES IRAE

Apetece cantar, mas ninguém canta.
Apetece chorar, mas ninguém chora.
Um fantasma levanta
A mão do medo sobre a nossa hora.

Apetece gritar, mas ninguém grita.
Apetece fugir, mas ninguém foge.
Um fantasma limita
Todo o futuro a este dia de hoje.

Apetece morrer, mas ninguém morre.
Apetece matar, mas ninguém mata.
Um fantasma percorre
Os motins onde a alma se arrebata.

Miguel Torga 



terça-feira, 29 de dezembro de 2020

Miguel Torga - Prescrição

Fotografia de Alessandra Ribeiro


PRESCRIÇÃO

Deixa passar as horas
Sem as contar.
Alheia a cada instante,
Vive, a viver a vida, a eternidade.
Feliz é quem não sabe
A própria idade
E em nenhum ano pode envelhecer.
Dura encantada na realidade.
Negar o tempo é o modo de o vencer.


Coimbra, 30 de Junho de 1983

Miguel Torga





sexta-feira, 15 de maio de 2020

Miguel Torga - "A minha pátria cívica acaba...”

Fotografia de Robert Grant


A minha pátria cívica acaba em Barca de Alva; mas a minha pátria telúrica só finda nos Pirinéus. Há no meu peito angústias que necessitam da aridez de Castela, da tenacidade vasca, dos perfumes do Levante e do luar andaluz. Sou, pela graça da vida, peninsular. Ardo no fogo desta fé que nos devora, exalto-me nas ambições desmedidas dos nossos maiores, e afundo-me dentro de uma invencível armada de quimera.

Miguel Torga

(Diário, Coimbra, 14 de Novembro de 1985).




(Lido aqui)


sexta-feira, 15 de novembro de 2019

"Chego, acendo a lareira, aninho-me no sofá ..." (Miguel Torga)

Fotografía de Leandro Prudencio


Chego, acendo a lareira, aninho-me no sofá, e fico horas infinitas a olhar em silêncio as labaredas, imerso numa bruma de sentimentos a que não consigo dar voz. É aqui que eu sinto com mais pungência que nunca hei-de ter expressão à altura da minha alma.

Miguel Torga
Diário



sexta-feira, 29 de junho de 2018

"Pareço uma destas árvores que se transplantam..." (Miguel Torga)



Como a gente se perde! A linguagem que o meu sangue entende — é esta. A comida que o meu estômago deseja — é esta. O chão que os meus pés sabem pisar — é este. E, contudo, eu não sou já daqui. Pareço uma destas árvores que se transplantam, que têm má saúde no país novo, mas que morrem se voltam à terra natal.

Miguel Torga, Diário




segunda-feira, 27 de março de 2017

Êxtase (Miguel Torga)



ÊXTASE

Terra, minha medida!
Com que ternura te encontro
Sempre inteira nos sentidos,
Sempre redonda nos olhos,
Sempre segura nos pés,
Sempre a cheirar a fermento!
Terra amada!
Em qualquer sítio e momento,
Enrugada ou descampada,
Nunca te desconheci!
Berço do meu sofrimento,
Cabes em mim, e eu em ti!

Miguel Torga


segunda-feira, 19 de dezembro de 2016

Tempo (Miguel Torga)





TEMPO

Tempo — definição da angústia.
Pudesse ao menos eu agrilhoar-te
Ao coração pulsátil dum poema!
Era o devir eterno em harmonia.

Mas foges das vogais, como a frescura
Da tinta com que escrevo.
Fica apenas a tua negra sombra:
— O passado,
Amargura maior, fotografada.

Tempo...
E não haver nada,
Ninguém,
Uma alma penada
Que estrangule a ampulheta duma vez!

Que realize o crime e a perfeição
De cortar aquele fio movediço
De areia
Que nenhum tecelão
É capaz de tecer na sua teia!

Miguel Torga


Cântico do Homem (Coimbra, 1950)



sexta-feira, 16 de setembro de 2016

Ariane (Miguel Torga)




ARIANE

Ariane é um navio.
Tem mastros, velas e bandeira à proa,
E chegou num dia branco, frio,
A este rio Tejo de Lisboa.

Carregado de Sonho, fundeou
Dentro da claridade destas grades...
Cisne de todos, que se foi, voltou
Só para os olhos de quem tem saudades...

Foram duas fragatas ver quem era
Um tal milagre assim: era um navio
Que se balança ali à minha espera
Entre as gaivotas que se dão no rio.

Mas eu é que não pude ainda por meus passos
Sair desta prisão em corpo inteiro,
E levantar âncora, e cair nos braços
De Ariane, o veleiro.

Miguel Torga



Para ajudar na compreensão do poema: No dia 1 de janeiro de 2010 foi publicada esta mensagem no blogue De Rerum Nature, que incluía também o poema de hoje:


Ariane

No dia 1 de Janeiro de 1940, há 70 anos, Miguel Torga estava preso na cadeia do Aljube, esse “tombo de agonias”.

Logo após a apreensão, no final de Novembro de 1939, com exemplar eficácia em todas as livrarias do país, de O quarto dia da criação do mundo, veio a ordem de prisão do médico-escritor, onde constava a acusação de, nessa obra, “defender ideias subversivas”. Até ao dia em que saiu, a 2 de Fevereiro de 1940, Torga escreveu vários contos, que deram corpo a Bichos, e poemas: Exortação, Lembrança, Pietá, Canção, Claridade e Ariane, que estão entre as páginas 121 e 128 do Diário I.


Fotografias de Miguel Torga da ficha da Polícia de Vigilância e Defesa do Estado (PIDE)


quinta-feira, 31 de dezembro de 2015

Unamuno (Miguel Torga)


O escritor espanhol Miguel de Unamuno morreu a 31 de dezembro de 1936 em Salamanca. Recordamo-lo aqui com este poema de Miguel Torga


UNAMUNO

D. Miguel…
Fazia pombas brancas de papel
Que voavam da Ibéria ao fim do mundo…
Unamuno Terceiro!
(Foi o Cid o primeiro,
D. Quixote o segundo.)

Amante duma outra Dulcineia,
Ilusória, também
(Pátria, mãe,
Ideia
E namorada),
Era seu defensor quando ninguém
Lhe defendia a honra ameaçada!

Chamado pelo aceno da miragem,
Deixava o Escorial onde vivia,
E subia, subia,
A requestar na carne da paisagem
A alma que, zeloso, protegia.

Depois, correspondido,
Voltava à cela desse nosso lar
Por Filipe Segundo construído
Com granito da fé peninsular.

E falava com Deus em castelhano.
Contava-lhe a patética agonia
Dum espírito católico, romano,
Dentro dum corpo quente de heresia.

Até que a madrugada o acordava
Da noite tumular.
E lá ia de novo o cavaleiro andante
Desafiar
Cada torvo gigante
Que impedia o delírio de passar.

Unamuno Terceiro!
Morreu louco.
O seu amor, por ser demais, foi pouco
Para rasgar o ventre da Donzela.
D. Miguel…
Fazia pombas brancas de papel,
E guardava a mais pura na lapela.

Miguel Torga


Do seu livro Poemas Ibéricos (1ªedição em 1965)




quarta-feira, 11 de junho de 2014

Adeus (Miguel Torga)

Fotografia de Alessandro Calabrese



ADEUS

É um adeus...
Não vale a pena sofismar a hora!
É tarde nos meus olhos e nos teus...
Agora,
O remédio é partir discretamente,
Sem palavras,
Sem lágrimas,
Sem gestos.
De que servem lamentos e protestos
Contra o destino?
Cego assassino
A que nenhum poder
Limita a crueldade,
Só o pode vencer a humanidade
Da nossa lucidez desencantada.
Antes da iniquidade
Consumada,
Um poema de líquido pudor,
Um sorriso de amor,
E mais nada.

Miguel Torga






terça-feira, 6 de maio de 2014

Alentejo (Miguel Torga)

 Anoitecer em Arronches, Alentejo
(Fotografia de Emílio Moitas)



ALENTEJO

A luz que te ilumina,
Terra da cor dos olhos de quem olha!
A paz que se adivinha
Na tua solidão
Que nenhuma mesquinha
Condição
Pode compreender e povoar!
O mistério da tua imensidão
Onde o tempo caminha
Sem chegar!...

Miguel Torga



sexta-feira, 3 de setembro de 2010

Origem do pseudónimo de Miguel Torga

Memorial Miguel Torga (1907-2007), vizinho à ponte de Santa Clara, Coimbra

Vamos ver como a origem de parte do pseudónimo de Miguel Torga (1907 - 1995) está ligado à nossa literatura. A outra parte é o nome de uma planta que em espanhol se chama "brezo" ou "brezo portugués" (Erica lusitanica).


Em 1934, aos 27 anos, Adolfo Correia Rocha autodefine-se pelo pseudónimo que criou, Miguel e Torga. Miguel, em homenagem a dois grandes vultos da cultura ibérica: Miguel de Cervantes e Miguel de Unamuno. Já torga é uma planta brava da montanha, que deita raízes fortes sob a aridez da rocha, de flor branca, arroxeada ou cor de vinho, com um caule incrivelmente rectilíneo.

A sua campa rasa em São Martinho de Anta tem uma torga plantada a seu lado, em honra ao poeta.

(Fonte: Wikipédia)




quinta-feira, 2 de setembro de 2010

Pátria (Miguel Torga)


A URL do blogue, "nesgadeterra", veio também de uma obra de Miguel Torga, neste caso, um poema.

PÁTRIA

Soube a definição na minha infãncia.
Mas o tempo apagou
As linhas que no mapa da memória
A mestra palmatória
Desenhou.

Hoje sei apenas gostar
Duma nesga de terra
Debruada de mar.



Da palavra nesga diz-nos um dicionário: "Pequeno pedaço de terra entre terrenos extensos. P. ext. Pequena porção de qualquer espaço."

E palmatória, o que será?