sexta-feira, 29 de outubro de 2010

O assobiador (Ondjaki)

Uma igreja angolana (Fotografia de Vítor Pinho)

Chegou em Outubro, ao mesmo tempo que as chuvas compridas e silenciosas daquela aldeia. Os cabelos caíam-lhe pelos lados magros da cara, a roupa estava totalmente ensopada e pesada, os olhos mal se abriam de tanto espanto: era uma chuva tão molhadora como qualquer outra, mas sem o dom natural de fazer barulho ao cair. Acreditou estar no meio de um intenso nevoeiro, e abriu a boca. Provou a água, a sua realidade molhada, e sentou-se à porta da igreja. Nunca tinha vivido uma chuva assim.

Pousou o saco nas escadas. Olhou, ainda com esse olhar molhado, as pombas que circundavam a igreja. Avoavam à volta dela, aterravam nas janelas e voltavam ao avoo. Só elas faziam barulho; só se ouvia o barulho delas. Mais ao longe passeava uma récua de burros. É verdade, burros aglomerados: cinzentos, gordos, felizes e passeantes.

Entrou na igreja com um passo miúdo, sem fazer barulho. Era de manhãzinha e já tinha acontecido a primeira missa. Respirou o ar que lá estava, sentiu uma delicada religiosidade penetrar-lhe os pulmões e o coração. A beleza da arquitectura, a luz filtrada pelos vitrais, a manhã e o momento, a ausência do Padre, fizeram-no começar o assobio. Descobriu, ao fim da primeira música, que se tratava de um dos melhores sítios do mundo para assobiar melodias.

Num assobio tímido, fino, mas ecoado por todo o interior da pequena igreja, confirmou que a propagação do som era influenciada pela direcção para onde assobiasse, e detectou imediatamente sete corredores de assobio, cada qual com seu efeito distinto. Como ninguém aparecesse ou lhe dissesse algo, prosseguiu nos seus testes: um pouco mais alto, com belas trepidações no som, entoou uma melodia mais exaltada, digna, por si só, daquele espaço tão acolhedor quanto propício às musicalidades assobiadas. O som circulava como uma entidade autónoma cujos tentáculos precissassem de exercer um sensitivo reconhecimento do terreno.


Ondjaki

Excerto do livro O assobiador (2002)


Ndalu de Almeida, (Luanda, 1977) mais conhecido por seu pseudônimo Ondjaki, é um escritor angolano.





quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Dois blogues com café

Pormenor do Café Majestic, no Porto

COFFEE LOVERS

Hoje fui tomar o pequeno almoço ao café "de referência" aqui na rua do meu escritório. Duas senhoras aproximam-se do balcão e uma delas diz "É uma bica cheia e um abatanado por favor". Pensei para mim: Mas que raio é um abatanado? Chamem-me simplória mas quando quero um café digo simplesmente "É um café por favor". Este epísódio fez-me chegar à conclusão que nunca poderia tirar cafés! Dizem que há um sem número de tipos e formas de fazer um café. Como sou magnânime decidi partilhar convosco a minha parca sabedoria sobre o assunto. Então temos o café (que pode ser em chávena escaldada), a italiana, o café curto, o café cheio, o café pingado, o abatanado, o café duplo, o carioca e essa grande instituição nacional, a bica com um cheirinho (desconfio que se dizer café com um cheirinho não saberão o que é). Depois temos o café com leite. Que nunca lhe passe pela cabeça pedir numa pastelaria um café com leite a menos que queira ser olhado com desconfiança! Deixe isso para os hóteis. Deverá ser mais específico: o garoto, a meia de leite, de máquina ou directa, clara ou escura, o galão, claro ou escuro.

Bom, fiquei com uma súbita vontade de beber um café - o terceiro do dia!

Nota: De acordo com as minhas pesquisas abatanado é um café pouco concentrado, que tem geralmente o dobro da água de um café expresso, para a mesma quantidade de café, servido em chávena grande.

Retirado do blogue Incontinentes verbais



EU NÃO GOSTO DE CAFÉ

Porquê? Não sei!
Mas desconfio!

Estava no outro dia no café quando a babe me pede para pedir (bonita construção frásica esta "me pede para pedir") uma meia de leite. Como eu não bebo café aquilo para mim é tudo a mesma mistela de água com um pó manhoso castanho com mau aspecto, e por vezes um bocado de leite.

Quando cheguei ao balcão, pedi um galão. Quando lhe apareci com o galão... foi um ver se te avias...

- Então mas não tinhas pedido um galão?
- Não, tinha pedido uma meia de leite!
- E qual é a diferença?

Ainda hoje estou para saber... De qualquer maneira é aqui que entra a minha desconfiança com o café! É que com tanta variedade, eu não saberia o que pedir, se não vejamos:

Café
Bica
Meia de leite
Garoto
Curto
Longo
Cheio
Pingado
Com Cheirinho
Abatanado
Carioca
Curta
Cimbalino
Expresso
Café com leite
Capuccino
Italiana
Duplo
Pingo
Claro
Escuro

E estes foram os que eu me lembrei agora! Ainda faltam os outros… Porque os há!!! Por isso mais vale ficar com sono do que beber uma cena manhosa. Mas que cheira bem, isso cheira!

(...)


Retirado do blogue Por tudo ou por nada


segunda-feira, 25 de outubro de 2010

Porque (Sophia de Mello Breyner Andresen)


Sophia por Arpad Szenes



PORQUE

Porque os outros se mascaram e tu não
Porque os outros usam a virtude
Para comprar o que não tem perdão
Porque os outros têm medo mas tu não

Porque os outros são os túmulos calados
Onde germina calada a podridão
Porque os outros se calam mas tu não

Porque os outros se compram e se vendem
E os seus gestos dão sempre dividendo
Porque os outros são hábeis mas tu não

Porque os outros vão à sombra dos abrigos
E tu vais de mãos dados com os perigos
Porque os outros calculam mas tu não

Sophia de Mello Breyner Andresen

  

sexta-feira, 22 de outubro de 2010

Capitães da areia (Jorge Amado)



Já por várias vezes o nosso jornal, que é sem dúvida o órgão das mais legítimas aspirações da população baiana, tem trazido noticias sobre a atividade criminosa dos “Capitães da Areia”, nome pelo qual é conhecido o grupo de meninos assaltantes e ladrões que infestam a nossa urbe. Essas crianças que tão cedo se dedicaram à tenebrosa carreira do crime não têm moradia certa ou pelo menos a sua moradia ainda não foi localizada. Como também ainda não foi localizado o local onde escondem o produto dos seus assaltos, que se tornam diários, fazendo jus a uma imediata providência do Juiz de Menores e do doutor Chefe de Polícia.

Esse bando que vive da rapina se compõe, pelo que se sabe, de um número superior a 100 crianças das mais diversas idades, indo desde os 8 aos 16 anos. Crianças que, naturalmente devido ao desprezo dado à sua educação por pais pouco servidos de sentimentos cristãos, se entregaram no verdor dos anos a uma vida criminosa. São chamados de “Capitães da Areia” porque o cais é o seu quartel-general. E têm por comandante um mascote dos seus 14 anos, que é o mais terrível de todos, não só ladrão, como já autor de um crime de ferimentos graves, praticado na tarde de ontem. Infelizmente a Identidade deste chefe é desconhecida.

O que se faz necessário é uma urgente providência da policia e do juizado de menores no sentido da extinção desse bando e para que recolham esses precoces criminosos, que já não deixam a cidade dormir em paz o seu sono tão merecido, aos Institutos de reforma de crianças ou às prisões. Passemos agora a relatar o assalto deontem, do qual foi vítima um honrado comerciante da nossa praça, que teve sua residência furtada em mais de um conto de réis e um seu empregado ferido pelo desalmado chefe dessa malta de jovens bandidos.


Jorge Amado


Início do romance Capitães da areia (1937), uma das suas melhores obras.

Para saber de Jorge Amado



quinta-feira, 21 de outubro de 2010

25/11/1995 (Teresa Rita Lopes)

Fotografia de El ovo 2

Um dos poemas lidos hoje por Teresa Rita Lopes na Aula de Poesía Díez Canedo de Badajoz. O poema pertence ao seu livro Cicatriz (1996). A poeta portuguesa foi muito bem apresentada por Belén e por Juan Antonio, alunos de Português do 2º ano de Bachillerato.


25/11/1995

Começar o dia com os gestos
de minha Mãe:
aquecer a água e o leite
cortar o pão
contra o peito
lavar o prato a chávena o pires
limpar as migalhas da mesa
arrumar
o que está fora do lugar
E de nada disto ficar resto
de letra escrita
Fazer como ela
poemas com gestos
que nascem e morrem na mesma hora
Talvez por isso eternos

Ser modestamente vivo
Cumprir a vida sem porquês nem ambição
Palpitar sem pensar
como o próprio coração

Teresa Rita Lopes


quarta-feira, 20 de outubro de 2010

...De passarem aves (Jorge de Sena)

Aves no céu de Alter do Chão (Fotografia de PLCA)


...DE PASSAREM AVES

À memória de Sá de Miranda

Das aves passam as sombras,
um momento, no chão, perto de mim.
No tardo Verão que as trouxe e as demora,
por que beirais não sei
onde se abrigam piando
como ao passar chilreiam.

Um momento só. Rápidas voam!
E a vida em que regressam de outras terras
não é tão rápida: fiquei olhando
as sombras não, mas a memória delas,
das sombras não, mas de passarem aves.

Jorge de Sena


segunda-feira, 18 de outubro de 2010

O Delfim (José Cardoso Pires)

O escritor português José Cardoso Pires


O largo. (Aqui me apareceu pela primeira vez o Engenheiro, anunciado por dois cães.) O largo:

Visto da janela onde me encontro, é um terreno nu, todo valas e pó. Grande de mais para a aldeia - é facto, grande de mais. E inútil, dir-se-á. Pois, também isso. Inútil, sem sentido, porque raramente alguém o procura apesar de estar onde está, à beira da estrada e em pleno coração da comunidade. Tal como um prado de cardos, mostra-se agressivo, só domável ao tempo; e se não pica repele, servindo-se das covas, dos regos das chuvas ou da poeirada dos estios. Um largo, aquilo a que verdadeiramente se chama largo, terra batida, tem de ser calcado por alguma coisa, pés humanos, trânsito, o que for, ao passo que este aqui, salvo nas horas da missa, é percorrido unicamente pelo espectro do enorme paredão de granito que se levanta nas traseiras da sacristia. Diariamente, ano após ano, século após século, essa muralha, mal o sol se firma, envia a sua sombra para o terreiro, arrastrando uma outra, a da igreja. Leva-a envolvida, viaja com ela pelo deserto de buracos e de pó, cobre o chão, arrefece-o, e ao meio-dia recolhe-se, expulsa pelo sol a pino. Mas a tarde é dela. A tarde a sombra recomeça a invasão, crescendo à medida que a luz enfraquece. Tão escura, observe-se, tão carregada de hora para hora, que parece uma mensagem antecipada da noite; ou, se preferirem, uma insinuação de trevas posta a circular pela muralha em pleno dia para tornar o largo mais só, deixando-o entregue aos vermes que o minam.

José Cardoso Pires

Do seu livro O Delfim (1968), um dos melhores romances do século XX em Portugal.

Dados sobre José Cardos Pires (1925-1998)


sexta-feira, 15 de outubro de 2010

Meditação (Ruy Cinatti)

Fotografia de Ricardo Baia


MEDITAÇÃO

Tudo imaterial na praia rasa
Cheia de sol, ao fim da tarde.
Proa ao vento quebrada,
A vaga, entre rochedos, se ilumina.
É tudo imaterial, tudo neblina
Ténue que aos poucos arde,
Ao fim da tarde se desfaz, flutua;
Nave de outros tempos se insinua
E voo de ave desliza
Ao longe linha pura.
Tudo imaterial na praia rasa.

Ruy Cinatti


quarta-feira, 13 de outubro de 2010

Cinema na RTP2

Veredas, filme de João César Monteiro


Petição pelo regresso da exibição cinematográfica regular à RTP2

Exc. Sr Ministro dos Assuntos Parlamentares Dr. Jorge Lacão

Exc. Sr. Director da RTP2 Dr Jorge Wemans

Exc. Sra.Sub-directora da RTP2 Dra Paula Moura Pinheiro

A RTP2 passa, actualmente, dois filmes ao Sábado à noite e o magazine Onda-Curta na madrugada de segunda-feira. No início da década, passava um filme todos os dias da semana e mais outro ao sábado. Ao longo dos anos, tem-se assistido a um progressivo desinvestimento da estação na programação cinematográfica, consubstanciada não apenas na pequena quantidade de obras exibidas como na repetição regular dos filmes mostrados, alguns dos quais são novamente exibidos passado algum tempo, quer na mesma rubrica quer na madrugada da RTP1. Adicionalmente, os filmes são muitas vezes emparelhados de forma pouco criteriosa, sendo difícil discernir um macrotexto ou um “discurso”que atenda às necessidades e sensibilidades do público e que seja sólido, coerente e inteligível na sua formulação. Infelizmente, longe vão os tempos em que João Bénard da Costa introduzia clássicos do cinema ou Inês de Medeiros entrevistava diversas figuras em “Filme da Minha Vida”. Hoje, o segundo canal da estação de televisão pública não fornece quaisquer instrumentos para que o público seja levado a reflectir e a descodificar os objectos mostrados. O contexto presente no que concerne à exibição cinematográfica na RTP2 é, então, de desresponsabilização, não oferecendo aos seus espectadores oportunidades suficientes de visionamento de filmes nem lhes prestando quaisquer ferramentas de aproveitamento dos poucos filmes que ainda vão sendo exibidos.

Esta situação é grave por dois motivos. (...)

Cá podem ler o texto completo da mensagem, do blogue Breath Away.



sexta-feira, 8 de outubro de 2010

As grandes insubmissões (Ruy Belo)




AS GRANDES INSUBMISSÕES

As grandes insubmissões sempre foram para mim as pequenas. Na minha vida, lembro duas.
Começava um ano lectivo. Andaria no segundo ano do liceu. Era a época da feira da piedade. Cheguei de férias na minha terra e vi o vítor a andar de carrocel. Esperava que a volta acabasse para o abraçar. Fui esperando, ele nunca mais descia. Uma volta, mais outra, outra ainda. Fui contando: vinte. O vítor tinha vinte escudos. Eu já o respeitava, porque era muito alto. Passei a respeitá-lo mais. O vítor era capaz de gastar vinte escudos no carrocel.
Outra grande insubmissão foi a do maurício, também nos primeiros anos do liceu.
Um dia o maurício faltou à aula das nove. Até aí, nada de particular. Saímos para o pátio e o maurício estava no campo de basket, perfeitamente equipado, sozinho, a lançar a bola ao cesto.
- Ó maurício, faltaste à aula das nove.
E o maurício, sem responder, imperturbável, continuava a lançar a bola ao cesto.
Tocou para a aula das dez.
- Ó maurício, não vens à aula?
E o maurício não respondia. Continuava, imperturbável, a lançar a bola ao cesto.
Faltou à aula das dez, faltou toda a manhã. Nos intervalos saíamos e logo ouvíamos a bola contra a tabela. O maurício, sozinho, continuava a lançar a bola ao cesto.
Só se foi vestir quando tocou para a saída da última aula dessa manhã. Esperámos todos por ele. Não lhe perguntámos nada. E seguimo-lo cheios de admiração. O maurício, apesar dos professores, apesar dos contínuos, apesar da campainha, faltara a todas as aulas.
Toda a manhã jogara basket. Sozinho. Contra professores, contra contínuos, contra a campainha.

Ruy Belo

Do seu livro Homem de Palavras[s] (1969)


Ruy  Belo (1933 - 1978)  foi um poeta e ensaísta português.



segunda-feira, 4 de outubro de 2010

Aos amigos (Herberto Helder)



AOS AMIGOS

Amo devagar os amigos que são tristes com cinco dedos de cada lado.
Os amigos que enlouquecem e estão sentados, fechando os olhos,
com os livros atrás a arder para toda a eternidade.
Não os chamo, e eles voltam-se profundamente
dentro do fogo.
-Temos um talento doloroso e obscuro.
Construímos um lugar de silêncio.
De paixão.

Herberto Helder


sexta-feira, 1 de outubro de 2010

O Testamento do Sr. Napomuceno da Silva Araújo (Germano Almeida)


Já tivemos um autor angolano, Pepetela; outro moçambicano, Mia Couto; e agora é a vez de um autor cabo-verdiano, Germano Almeida.


A leitura do testamento cerrado do Sr. Napumoceno da Silva Araújo consumiu uma tarde inteira. Ao chegar à 150.a página o notário confessava‑se já cansado e interrompeu mesmo para pedir que lhe levassem um copo d’água. E enquanto bebia pequenos golinhos, desabafou que de facto o falecido, pensando que fazia um testamento, escrevera antes um livro de memórias. Então o Sr. Américo Fonseca, dizendo estar habituado a longas leituras em voz alta, ofereceu‑se para continuar a ler e o notário aceitou de bom grado porque a sua voz, de princípio forte e sonora a impor solenidade ao acto, fora enfraquecendo a pouco e pouco e tanto Carlos Araújocomo as próprias testemunhas já faziam um grande esforço de ouvido para perceberem os murmúrios que lhe saíam da garganta. Mas Carlos sorrindo olhava o notário. Logo de início, quando vira a enormidade do documentolacrado, sugerira não valer a pena perder tempo a ler todo aquele calhamaço, afinal estava‑sequase em família, de qualquer modo entre gente que merecia toda a confiança, propunha por isso dar‑se o testamento como conhecido, ele em casa faria calmamente uma leitura atenta e cuidada até porque era sua intenção respeitar escrupulosamente todas as vontades do defunto. Porém, o notário opusera‑se firmemente a esta facilidade, a lei é a lei, existe para ser cumprida e se ela manda ler tudo há que ler tudo do princípio ao fim na presença de testemunhas e só por esta razão estavam presentes os Srs. Américo Fonseca e Armando Lima que a final testificariam com as suas assinaturas terem acompanhado toda a leitura do documento. E aclarando a garganta iniciara a leitura às 14.45 mas pelas 16.10 confessava‑se cansado e já estava sem voz. O Sr. Fonseca leu até às 17.20, após o que o Sr. Lima, sorrindo com humildade, pediu que lhe deixassem também ler um bocadinho.

Germano Almeida


Começo do seu livro O Testamento do Sr. Napomuceno da Silva Araújo (1989)

Dados sobre Germano Almeida (ilha da Boavista, Cabo Verde, 1945)