segunda-feira, 28 de novembro de 2016

Divertimento com sinais ortográficos (Alexandre O'Neill)



Pequena apresentação com "Divertimento com sinais ortográficos", do livro Poesias Completas 1951/1983, de Alexandre O'Neil.








segunda-feira, 21 de novembro de 2016

Tomamos a vila depois de um intenso bombardeamento (Fernando Pessoa)



TOMAMOS A VILA DEPOIS DE UM INTENSO BOMBARDEAMENTO

A criança loura
Jaz no meio da rua.
Tem as tripas de fora
E por uma corda sua
Um comboio que ignora.

A cara está um feixe
De sangue e de nada.
Luz um pequeno peixe
— Dos que bóiam nas banheiras —
À beira da estrada.

Cai sobre a estrada o escuro.
Longe, ainda uma luz doura
A criação do futuro...

E o da criança loura?

Fernando Pessoa 



sexta-feira, 18 de novembro de 2016

Cantiga (Manuel Bandeira)




CANTIGA

Nas ondas da praia
Nas ondas do mar
Quero ser feliz
Quero me afogar.

Nas ondas da praia
Quem vem me beijar?
Quero a estrela-d'alva
Rainha do mar.

Quero ser feliz
Nas ondas do mar
Quero esquecer tudo
Quero descansar.

Manuel Bandeira



Ilustração de Heitor Isoda


segunda-feira, 14 de novembro de 2016

O que dizem os abraços (José Luís Peixoto)



Juntar as pontas dos ombros e dar algumas palmadinhas nas costas não é um abraço. Escrever "abraço" no fim de um e-mail também não é um abraço. Indiferente ao desenvolvimento social e tecnológico, um abraço continua a ser duas pessoas que se juntam e se apertam uma de encontro à outra.

Esses rapazes que aparecem com cartazes a oferecerem abraços nos festivais de verão têm graça e talvez sejam bem-intencionados, mas fazem publicidade enganosa. Não são os abraços que provocam as ligações, são as ligações que provocam os abraços. Um abraço não é apenas duas pessoas que se juntam e se apertam uma de encontro à outra.

Um abraço tem muita importância.

Quando eu era uma criança, teria talvez uns nove ou dez anos, o meu pai deu-me um abraço na cozinha da nossa casa. Era de madrugada porque essa era a hora em que, naquele tempo, se saía da minha terra quando se ia para Lisboa. O meu pai tinha uma operação marcada no hospital, estava vestido com as roupas novas e tinha medo. Enquanto me abraçava, o meu pai chorou porque, durante um momento, acreditou que podia nunca mais me ver. Os braços do meu pai passavam-me pelos ombros, a minha cabeça assentava-lhe na barriga, sobre o pullover. A lâmpada que tínhamos acesa por cima da cabeça espalhava uma luz que amarelecia tudo o que tocava: a mesa onde jantávamos todos os dias, o ar que ali respirámos em tantas horas anteriores àquela, em tantas horas ignorantes daquela. O meu pai usava um aftershave muito enjoativo, barato, que alguém lhe tinha oferecido no Natal. Agora mesmo, consigo ainda sentir esse cheiro com nitidez absoluta.

A operação correu bem. Depois do susto, depois da convalescença, o meu pai voltou para casa com uma cicatriz grossa e roxa na barriga, ficava à vista quando a camisa lhe saía para fora das calças ou na praia, apesar de usar os calções exageradamente puxados para cima. Depois disso, tivemos direito a nove anos em que não voltámos a pensar em despedidas.s

Durante muito tempo procurei em toda a minha memória: as lembranças de quando regressou da operação ou, depois, quando tínhamos a mesma altura ou, mesmo depois, quando ficou doente pela última vez. Mas abandonei as buscas, não consigo recordar outra ocasião em que nos tenhamos voltado a abraçar. Essa madrugada na cozinha, a luz amarela, o aftershave, foi a única vez em que nos abraçámos na vida.

Não afirmo com leveza que um abraço tem muita importância. Há quinze anos que escrevo livros apenas sobre esse abraço.


José Luís Peixoto, in Notícias Magazine, 22 de novembro de 2015


segunda-feira, 7 de novembro de 2016

José Eduardo Agualusa, "Angolano, cidadão do mundo"



Em 21 de outubro de 2011 foi publicada na revista brasileira Forum uma entrevista com o escritor angolano José Eduardo Agualusa. Encontrei-a por acaso e cá está.



Angolano, cidadão do mundo

O romancista José Eduardo Agualusa ataca o nacionalismo literário e defende o seu direito de escrever sobre qualquer lugar do planet.

(...)

O escritor ficou mais conhecido no Brasil depois de participar do II Festival Literário Internacional de Paraty (em julho de 2004) ao lado de Caetano Veloso na mesa-redonda “África e Brasil: Verdades Tropicais”. Agualusa foi o escritor mais vendido na livraria oficial do evento durante os seus cinco dias de duração. Sua obra evidencia a miscigenação não apenas étnica mas principalmente cultural, que continua ocorrendo nos países de colonização portuguesa, porém não fica restrita a esse tema. “Antes de ser cidadão angolano, sou cidadão do mundo e tenho o direito de escrever sobre o mundo inteiro”, diz, nesta entrevista à Fórum, o autor de doze livros já traduzidos em oito línguas.

Descendente de brasileiros e portugueses, Agualusa mudou-se para o Brasil em 1998 e viveu em Olinda e no Rio de Janeiro. Hoje, com 50 anos, se divide entre Luanda e Lisboa, onde é correspondente do jornal Público e da RDP-África (estação de rádio estatal portuguesa).

Sua família é portuguesa do lado materno e brasileira do lado paterno. Você nasceu na África, mas não tem ascendência angolana? Não. Eu tenho é descendência angolana. Sou um afro-ascendente. Tenho família de muitas cores, graças a Deus. Odeio a uniformidade [Agualusa é casado e tem dois filhos nascidos em Angola]. Vivi toda a minha infância e boa parte da minha adolescência na cidade de Huambo, no planalto central de Angola. Depois fui estudar Agronomia e Silvicultura em Lisboa.

A independência de Angola aconteceu durante a sua adolescência (1975). Que lembranças você guarda dos conflitos? Teve algum contato com o Movimento Popular para Libertação de Angola (MPLA)? Com o MPLA, não. Tive contatos com grupos ligados à esquerda angolana, designadamente a Organização Comunista de Angola, muito próxima do partido comunista brasileiro, cujos elementos foram na sua maioria presos, e alguns sujeitos à tortura, imediatamente após a independência — quando o MPLA tomou o poder. Se você ler Estação das Chuvas (romance publicado por Agualusa em 1997) compreenderá melhor todo esse processo. Os militantes de esquerda só foram soltos após a morte de Agostinho Neto e depois que o presidente José Eduardo dos Santos conseguiu consolidar o seu poder, ou seja, em 1980.

Suas narrativas têm cenários como Angola, Portugal, Brasil, Goa e Argentina. Na sua opinião, o ponto de partida da ficção é a realidade ou a criação prescinde da experiência prática? Normalmente parto da realidade. Alguns dos meus romances estão muito próximos do jornalismo, ou, pelo menos, exigiram de mim uma pesquisa sobre a atualidade, à maneira de um jornalista. Contudo, o meu último romance, O Vendedor de Passados, é pura ficção.

Alejo Carpentier falou da dificuldade dos artistas latino-americanos assumirem a própria cultura, o que os faz importar padrões estéticos europeus em vez de valorizar a linguagem de seus países. Como é isso com os escritores africanos? Acontece. Mas também acontece o inverso — um excessivo nacionalismo literário que pode empobrecer nossas literaturas. Não gosto de nacionalismo. O nacionalismo conduz quase sempre ao fascismo. Antes de ser cidadão angolano, sou cidadão do mundo e tenho o direito de escrever sobre o mundo inteiro e de ler e ser influenciado pelos grandes escritores. Há uma armadilha racista que pressupõe que o escritor africano só pode escrever sobre o seu quintal; caso contrário é alienado, enquanto que um escritor europeu pode escrever sobre África e até lhe fica bem — demonstra abertura pela cultura do outro. Isso pode ser resumido assim: aos brancos, o mundo inteiro; aos negros, o quintal.

É feita alguma modificação na linguagem ou na ortografia de seus livros para o lançamento no Brasil devido às diferenças entre o chamado “português brasileiro” e o de Angola? Os livros são publicados com a ortografia brasileira. Isso não tem rigorosamente nada que ver com a linguagem. Neste último livro, Manual Prático de Levitação, uma edição especial para o Brasil, eu mesmo fiz algumas ligeiras adaptações para o português brasileiro.

E o que poderia ser feito para aumentar o reconhecimento da cultura lusófona, prejudicada pelo fato de a língua portuguesa ser pouco falada no mundo se comparada ao francês, o inglês e o espanhol, por exemplo? Sim, é um constrangimento. Deveria haver mais apoios às traduções. Acho inconcebível que um país com a dimensão do Brasil não possua nenhuma instituição equivalente ao Instituto Camões, ao Instituto Goethe, à Aliança Francesa etc.

A Comunidade dos Países de Língua Portuguesa cumpre esse papel, já que, entre seus objetivos, está o de estimular a cooperação cultural e a promoção da língua portuguesa? Não. A Comunidade dos Países de Língua Portuguesa está adormecida. Infelizmente é um excelente projeto, criado por um brasileiro, o embaixador José Aparecido de Oliveira, que começou muito mal.

Você é a favor de se criarem padrões únicos para as variantes da língua portuguesa faladas nos diferentes países lusófonos? Acho importante unificar a ortografia como forma de promover e afirmar a língua portuguesa internacionalmente. Enquanto existirem duas ortografias, será sempre difícil a língua portuguesa ser aceita como organismo de trabalho em organizações internacionais. Além disso, uma ortografia unificada facilitaria a circulação dos livros no espaço lusófono.





quinta-feira, 3 de novembro de 2016

Criminosos de fraldas (Manuel António Pina)




CRIMINOSOS DE FRALDAS

Por algum motivo, uma das coisas que recordo das tardes de catequese do padre Janela é o “Acto de Contrição”. Apesar disso, e do admirável sucesso que por aí têm os arrependidos disto e daquilo, nunca fui dado ao arrependimento. Nem quando, aos 4 anos de idade, destravei o carro do pintor Túlio Vitorino, estacionado à porta de nossa casa e ele se espatifou contra a cerca do hospital, ou quando, pouco depois, destruí o relógio de meu pai para ver como funcionava. Talvez por ser fraco de pulmões, doía-me bater com a mão no peito, além de que me parecia inútil prometer “firmemente emendar-me” quando não tinha intenção alguma de o fazer. Descubro agora, por uma notícia do “Daily Mail”, que a minha sorte foi não ter nascido inglês: “A polícia da Grã-Bretanha investiga um menino de 3 anos por desordem e vandalismo (…). Um relatório da Polícia da Escócia revela outro caso envolvendo um menino de 3 anos, suspeito de vandalismo e comportamento indecente”. No que me toca, sem a atenuante do arrependimento, a história do carro e a do relógio (mais todas as que minha mãe contava) davam as galés pela certa.

Manuel António Pina


Publicado no Jornal de Notícias, 22 Sep 2009


Crónica, saudade da literatura. 1984-2012 (Manuel António Pina), Assírio & Alvim, 1ª edição, 2013.