segunda-feira, 30 de janeiro de 2023

Manoel de Barros - Tributo a J.G. Rosa

Corruíra-do-campo, fotografia de Bertrando Campos
 
 
TRIBUTO A J.G. ROSA

Passarinho parou de cantar.
Essa é apenas uma informação.
Passarinho desapareceu de cantar.
Esse é um verso de J. G. Rosa.
Desapareceu de cantar é uma graça verbal.
Poesia é uma graça verbal.

Manuel de Barros

Tratado das grandezas do ínfimo (2001)


João Guimarães Rosa 



segunda-feira, 23 de janeiro de 2023

Juião Bolseiro - “Estas noites tão longas que Deus fez em grave dia…”

 

Estas noites tão longas que Deus fez em grave dia
para mim, que não as durmo, por que não as fazia
                        no tempo em que meu amado
                        costumava estar comigo?

Porque Deus as fez tão grandes, não posso eu dormir, coitada,
e como são imensas, eu as quisera noutra vez,
                        no tempo em que meu amado
                        costumava estar comigo.

Porque Deus as fez tão grandes, sem medida desiguais,
e eu dormi-las não posso, por que não as fez
                         no tempo em que meu amado
                         costumava estar comigo?


Juião Bolseiro 

Poeta na corte portuguesa no século XIII.



segunda-feira, 16 de janeiro de 2023

Manuel Bandeira - Testamento

Manuel, Chico, Tom e Vinicius



TESTAMENTO

O que não tenho e desejo
É que melhor me enriquece.
Tive uns dinheiros — perdi-os...
Tive amores — esqueci-os.
Mas no maior desespero
Rezei: ganhei essa prece.

Vi terras da minha terra.
Por outras terras andei.
Mas o que ficou marcado
No meu olhar fatigado,
Foram terras que inventei.

Gosto muito de crianças:
Não tive um filho de meu.
Um filho!... Não foi de jeito...
Mas trago dentro do peito
Meu filho que não nasceu.

Criou-me, desde eu menino
Para arquiteto meu pai.
Foi-se-me um dia a saúde...
Fiz-me arquiteto? Não pude!
Sou poeta menor, perdoai!

Não faço versos de guerra.
Não faço porque não sei.
Mas num torpedo-suicida
Darei de bom grado a vida
Na luta em que não lutei!

Manuel Bandeira






segunda-feira, 9 de janeiro de 2023

Miguel Torga - Poema




POEMA

O destino plantou-me aqui
e arrancou-me daqui.
E nunca mais as raízes me seguraram
bem em nenhuma terra.

Ter um destino
é não caber no berço onde o corpo nasceu,
e transpor as fronteiras uma a uma
e morrer sem nenhuma.

Miguel Torga



(Fotografia de Robert Grant - Outuno na Serra, Lousã)


segunda-feira, 2 de janeiro de 2023

Andrea Paes - Tenho saudades




TENHO SAUDADES

Tenho saudades
do tempo em que
o mundo era pequeno.

Era só ali.

E eu cabia nos ramos
das acácias

e não sabia do longe que existia.

Só do perto
que sentia.

Andrea Paes



(Fotografia de zug55 - Cabaceira Grande, Moçambique)