segunda-feira, 29 de janeiro de 2024

Murilo Mendes - Mulher

 


MULHER  

Mulher, o mais terrível e vivo dos espectros,
Por que te alimentas de mim desde o princípio?
Em ti encontro as imagens da criação:
És pássaro, és flor, pedra e onda variável...
Mais que tudo, a nuvem que volta e se consome.
Dormir, sonhar - que adianta, se tu existes?
Se fostes forma somente! és idéia também.
Ah, quando descerá sobre mim a paz antiga.

Murilo Mendes
(1901-1975)




(Fotografia de Márcia Valle)


segunda-feira, 22 de janeiro de 2024

João Guimarães Rosa - Cantada

 


CANTADA

Caso contigo, Carmela,
caso cumpras condição.
Cobrarei casa, comida,
cama, cavalo, canção,
carinho, cobres, cachaça,
carnaval camaradão,
casino (com conta certa)
cerveja, coleira e cão,
chevrolé cinco cilindros,
canja e consideração,
calista, cabeleireiro,
cinema, calefação,
chá, café, confeitaria,
chocolate, chimarrão,
casemira - cinco cortes,
cada compra - comissão,
conforto, comodidades,
cachimbo, calma… caixão.
Convém-te, cara Carmela?
Cherubim!… Consolação!…
(Caso contrário, cabaças!,
casarei com Conceição.)

Caso contigo, Carmela,
correndo, com coração!…

—————————–

Chega. Caceteei? Consola-te:
Concluí.
Com cordial, comovido:
Colega, constante camarada,
a) J. Guimarães Rosa
(Cônsul, Capitão, Clínico conceituado.)


João Guimarães Rosa




(Caricatura de Mateus Barbosa)


segunda-feira, 15 de janeiro de 2024

Pedro Mexia - Pó






Nas estantes os livros ficam
(até se dispersarem ou desfazerem)
enquanto tudo
passa. O pó acumula-se
e depois de limpo
torna a acumular-se
no cimo das lombadas.
Quando a cidade está suja
(obras, carros, poeiras)
o pó é mais negro e por vezes
espesso. Os livros ficam,
valem mais que tudo,
mas apesar do amor
(amor das coisas mudas
que sussurram)
e do cuidado doméstico
fica sempre, em baixo,
do lado oposto à lombada,
uma pequena marca negra
do pó nas páginas.
A marca faz parte dos livros.
Estão marcados. Nós também.

Pedro Mexia
 

Duplo Império (1999)



(Fotografia: Isografia, S. Paulo)



segunda-feira, 8 de janeiro de 2024

Yvette K. Centeno - A Casa

 



A CASA

Distraídos não víamos
a casa a envelhecer connosco
e no entanto a casa envelhecia:
tinha dores
achaques
tropeções
incómodos pequenos
lâmpada que falhava
e uma ou outra coisa,
vertigem passageira.

Assim corria o tempo
em pequenos derrames
que a todos por dentro
corroíam: a casa e com ela
as portas que rangiam
e umas résteas de luz
já quase a apagar-se.

A casa não andava
a casa já não via,
e nós ainda achávamos
que era coisa ligeira.

Não tem mal, dizíamos,
quando chegasse a hora
umas velas acesas,
candeeiros de avó
sem perigo de incêndio:
a casa envelhecida
sempre estaria ali,
sempre resistiria.

Sem dar por isso
o nosso envelhecer
ali juntos, fechados,
embora já morrendo
seria a última prova
de um grande amor
vivido
o dessa casa antiga
às vezes ainda rindo,
outras vezes zangada,
mas dividindo connosco
o tempo que faltava

 Yvette K. Centeno

Lisboa, 2018

(Poema inédito, aqui)


Yvette K. Centeno: "Mesmo emocionada não tenho lugar para a lamechice" (Observador, 12 ago. 2018)



quinta-feira, 4 de janeiro de 2024

Alexandre O'Neill - Portugal



PORTUGAL

Ó Portugal, se fosses só três sílabas,
linda vista para o mar,
Minho verde, Algarve de cal,
jerico rapando o espinhaço da terra,
surdo e miudinho,
moinho a braços com um vento
testarudo, mas embolado e, afinal, amigo,
se fosses só o sal, o sol, o sul,
o ladino pardal,
o manso boi coloquial,
a rechinante sardinha,
a desancada varina,
o plumitivo ladrilhado de lindos adjectivos,
a muda queixa amendoada
duns olhos pestanítidos,
se fosses só a cegarrega do estio, dos estilos,
o ferrugento cão asmático das praias,
o grilo engaiolado, a grila no lábio,
o calendário na parede, o emblema na lapela,
ó Portugal, se fosses só três sílabas
de plástico, que era mais barato!

                              *

Doceiras de Amarante, barristas de Barcelos,
rendeiras de Viana, toureiros da Golegã,
não há “papo-de-anjo” que seja o meu derriço,
galo que cante a cores na minha prateleira,
alvura arrendada para o meu devaneio,
bandarilha que possa enfeitar-me o cachaço.

Portugal: questão que eu tenho comigo mesmo,
golpe até ao osso, fome sem entretém,
perdigueiro marrado e sem narizes, sem perdizes,
rocim engraxado,
feira cabisbaixa,
meu remorso,
meu remorso de todos nós . . .


Alexandre O’Neill