quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

Duas crónicas de José Saramago

Fotografía de josesaramago.org

Hoje temos não o José Saramago romancista, mas o escritor de crónicas para jornal. Estas duas foram publicadas em  A Capital  em finais dos anos 60 e nelas retrata com muito amor os seus avós.

CARTA A JOSEFA, MINHA AVÓ

Tens noventa anos. És velha, dolorida. Dizes-me que foste a mais bela rapariga do teu tempo — e eu acredito. Não sabes ler. Tens as mãos grossas e deformadas, os pés encortiçados. Carregaste à cabeça toneladas de restolho e lenha, albufeiras de água. Viste nascer o sol todos os dias. De todo o pão que amassaste se faria um banquete universal. Criaste pessoas e gado, meteste os bácoros na tua própria cama quando o frio ameaçava gelá-los. Contaste-me histórias de aparições e lobisomens, velhas questões de família, um crime de morte. Trave da tua casa, lume da tua lareira — sete vezes engravidaste, sete vezes deste à luz.

Não sabes nada do mundo. Não entendes de política, nem de economia, nem de literatura, nem de filosofia, nem de religião. Herdaste umas centenas de palavras práticas, um vocabulário elementar. Com isto viveste e vais vivendo. És sensível às catástrofes e também aos casos de rua, aos casamentos de princesas e ao roubo dos coelhos da vizinha. Tens grandes ódios por motivos de que já perdeste lembrança, grandes dedicações que assentam em coisa nenhuma. Vives. Para ti, a palavra Vietname é apenas um som bárbaro que não condiz com o teu círculo de légua e meia de raio. Da fome sabes alguma coisa: já viste uma bandeira negra içada na torre da igreja. (Contaste-mo tu, ou terei sonhado que o contavas?) Transportas contigo o teu pequeno casulo de interesses. E, no entanto, tens os olhos claros e és alegre. O teu riso é como um foguete de cores. Como tu, não vi rir ninguém.

Estou diante de ti, e não entendo. Sou da tua carne e do teu sangue, mas não entendo. Vieste a este mundo e não curaste de saber o que é o mundo. Chegas ao fim da vida, e o mundo ainda é, para ti, o que era quando nasceste: uma interrogação, um mistério inacessível, uma coisa que não faz parte da tua herança: quinhentas palavras, um quintal a que em cinco minutos se dá a volta, uma casa de telha-vã e chão de barro. Aperto a tua mão calosa, passo a minha mão pela tua face enrugada e pelos teus cabelos brancos, partidos pelo peso dos carregos — e continuo a não entender. Foste bela, dizes, e bem vejo que és inteligente. Por que foi então que te roubaram o mundo? Quem to roubou? Mas disto talvez entenda eu, e dir-te-ia como, o porquê e o quando se soubesse escolher das minhas inumeráveis palavras as que tu pudesses compreender. Já não vale a pena. O mundo continuará sem ti — e sem mim. Não teremos dito um ao outro o que mais importava.

Não teremos, realmente? Eu não te terei dado, porque as minhas palavras não são as tuas, o mundo que te era devido. Fico com esta culpa de que me não acusas - e isso ainda é pior. Mas porquê, avó, por que te sentas tu na soleira da tua porta, aberta para a noite estrelada e imensa, para o céu de que nada sabes e por onde nunca viajarás, para o silêncio dos campos e das árvores assombradas, e dizes, com a tranquila serenidade dos teus noventa anos e o fogo da tua adolescência nunca perdida: «O mundo é tão bonito, e eu tenho tanta pena de morrer!»

É isto que eu não entendo — mas a culpa não é tua.



E O MEU AVÔ, TAMBÉM

Talvez o dia chuvoso seja o responsável desta melancolia. Somos uma máquina complicada, em que os fios do presente activo se enredam na teia do passado morto, e tudo isto se cruza e entrecruza de tal maneira, em laçadas e apertos, que há momentos em que a vida cai toda sobre nós e nos deixa perplexos, confusos, e subitamente amputados do futuro. Cai a chuva, o vento desmancha a compostura árida das árvores desfolhadas — e dos tempos passados vem uma imagem perdida, um homem alto e magro, velho, agora que se aproxima, por um carreiro alagado. Traz um cajado na mão, um capote enlameado e antigo, e por ele escorrem todas as águas do céu. À frente, caminham animais fatigados, de cabeça baixa, rasando o chão com o focinho. Homem e bichos avançam sob a chuva. É uma imagem comum, sem beleza, terrivelmente anónima.

Mas o homem que assim se aproxima, vago, entre cordas de chuva que parecem diluir o que na memória não se perdeu, é meu avô. Vem cansado, o velho. Arrasta consigo setenta anos de vida difícil, de desconforto, de ignorância. E, contudo, é um homem sábio, calado e metido consigo, que só abre a boca para dizer as palavras importantes, aquelas que importam. Fala tão pouco (são poucas as palavras realmente importantes) que todos nos calamos para o ouvir quando no rosto se lhe acende qualquer coisa como uma luz de aviso. Fora isso, tem um modo de estar sentado, olhando para longe, mesmo que esse longe seja apenas a parede mais próxima, que chega a ser intimidade. Não sei que diálogo mudo o mantém alheado de nós. O seu rosto é talhado a enxó, fixo mas expressivo, e os olhos, pequenos e agudos, têm de vez em quando um brilho claro como se nesse momento alguma coisa tivesse sido definitivamente compreendida. Parece uma esfinge, direi eu mais tarde, quando as leituras eruditas me ajudarem nestas comparações tão abonatórias de uma fácil cultura. Hoje digo que parecia um homem.

E era um homem. Um homem igual a muitos desta terra, deste mundo, um homem sem oportunidades, talvez um Einstein perdido sob uma camada espessa de impossíveis, um filósofo (quem sabe?), um grande escritor analfabeto. Alguma coisa seria, que não pôde ser nunca. Recordo agora aquela noite morna de verão, que dormimos, nós dois, debaixo da figueira — ouço-o ainda falar da vida que tivera, da Estrada de Santiago que sobre as nossas cabeças resplandecia (as coisas que ele sabia do céu e das estrelas), do gado que o conhecia, das histórias e lendas que eram o seu cabedal da infância remota. Adormecemos tarde, enrolados na manta lobeira, que a madrugada refrescaria com certeza e o orvalho não caía só sobre as plantas.

Mas a imagem que me não larga é a do velho que caminha sob a chuva, obstinado e silencioso, como quem cumpre um destino que nada pode modificar. A não ser a morte. Mas, nesta altura, este velho, que é meu avô, ainda não sabe como vai morrer. Ainda não sabe que poucos dias antes do seu último dia vai ter a premonição (perdoa a palavra, Jerónimo) de que o fim chegou, e irá, de árvore em árvore do seu quintal, abraçar os troncos, despedir-se deles, dos frutos que não voltará a comer, das sombras amigas. Porque terá chegado a grande sombra, enquanto a memória o não fizer ressurgir no caminho alagado ou sob o côncavo do céu e a interrogacão das estrelas. Só isto — e também o gesto que de repente me põe de pé e a urgência da ordem que enche o quarto aquecido onde escrevo.


Deste Mundo e do Outro. Crónicas, Caminho, Lisboa, 1998, 5ª edição.




segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

"Para apalpar as intimidades do mundo..." (Manoel de Barros)



O poeta brasileiro Manoel de Barros faz hoje 95 anos. Este poema é do seu O Livro das Ignorãças:


Para apalpar as intimidades do mundo é preciso
saber:
a) Que o esplendor da manhã não se abre com
faca
b) O modo como as violetas preparam o dia
para morrer
c) Por que é que as borboletas de tarjas
vermelhas têm devoção por túmulos
d) Se o homem que toca de tarde sua existência
num fagote, tem salvação
e) Que um rio que flui entre 2 jacintos carrega
mais ternura que um rio que flui entre 2
lagartos
f) Como pegar na voz de um peixe
g) Qual o lado da noite que umedece primeiro.
etc.
etc.
etc.
Desaprender 8 horas por dia ensina os princípios.



segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

A conjura (José Eduardo Agualusa)


1

Difícil dizer quando tudo começou. Mas tudo começou, é claro, muito antes desse dia dezasseis de Junho de mil novecentos e onze. Vavó Uála das Ingombotas diria que tudo começou no princípio dos tempos e que desde o princípio estava previsto que seria assim. Os acontecimentos se amarrariam uns aos outros – uns puxando os outros – através do confuso turbilhão das noites e dos dias. Infalivelmente, irremediavelmente, tudo haveria de desaguar naquela tarde vertiginosa e absurda.

É preciso, contudo, marcar data menos remota. Para o humilde autor deste relato, os casos tiveram o seu berço foi mesmo nesse ano esquecido de mil oitocentos e oitenta, aquando da chegada a Luanda de um moço benguelense, de sua graça Jerónimo Caninguili.

Vamos pois começar desde o princípio.


2

Muitos houve que estranharam aquele nome de Fraternidade posto por Caninguili à sua loja de barbeiro. Alguns reprovaram-no abertamente, e entre estes estão não só os realistas mas mesmo certos republicanos a quem assustava o atrevimento desse moço, negro e pequenino, ainda agora chegada à capital e já afrontando as regras, atraindo os desamores da autoridade.

Outros teve que acharam graça, aproveitaram com ruído a ousadia; logo se fizeram clientes e amigos certos. A simplicidade do barbeiro, a sua candura e alegria, depressa cativaram, contudo, mesmo os mais recalcitrantes, e assim é que, quatro meses após a sua chegada, já a Loja de Barbeiro e Pomadas Fraternidade se tinha transformado num pequeno clube de ideias.

Fisicamente, Caninguili devia poucas graças ao Criador. Ezequiel gostava de se referir a ele chamando-o de «o nosso sapinho capenga»; e assim resumia a feiura do designado, o seu escasso metro e sessenta e o facto de mancar da perna esquerda. Quando falava, porém, com aquele seu jeito manso de acariciar as palavras, operava-se em Caninguili uma transformação sensível e tudo seria nessa altura, menos certamente um sapo. Capenga! Razão por que, fatigado já da velha pilhéria, Alfredo Trony repreendera certa vez Ezequiel observando-lhe que sempre houvera no mundo príncipes disfarçados de sapos e sapos disfarçados de príncipes.

- É no falar que se revelam os príncipes e no coaxar que os sapos se denunciam – dissera Trony, para logo acrescentar -, pelo que ao meu amigo lhe aconselho a mais severa abstinência verbal. Não abra a boca que não seja para engolir as moscas. 

José Eduardo Agualusa

(Assim é que começa este romance do escritor angolano, publicado em  1989. Podem ler mais um pouco em Hoje Lusofonia)



quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

"Sábio é o que se contenta..." (Reis / Pessoa)



Sábio é o que se contenta com o espetáculo do mundo,
                   E ao beber nem recorda
                   Que já bebeu na vida,
                   Para quem tudo é novo
                   E imarcescível sempre.

Coroem-no pâmpanos, ou heras, ou rosas volúteis,
                   Ele sabe que a vida
                   Passa por ele e tanto
                   Corta à flor como a ele
                   De Átropos a tesoura.

Mas ele sabe fazer que a cor do vinho esconda isto,
                   Que o seu sabor orgíaco
                   Apague o gosto às horas,
                   Como a uma voz chorando
                   O passar das bacantes.

E ele espera, contente quase e bebedor tranquilo,
                   E apenas desejando
                   Num desejo mal tido
                   Que a abominável onda
                   O não molhe tão cedo.

19/06/1914

Ricardo Reis, heterónimo de Fernando Pessoa



O que são os heterónimos?



sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

Por não estarem distraídos (Clarice Lispector)

 Fotografia de Я  £

POR NÃO ESTAREM DISTRAÍDOS

Havia a levíssima embriaguez de andarem juntos, a alegria como quando se sente a garganta um pouco seca e se vê que por admiração se estava de boca entreaberta: eles respiravam de antemão o ar que estava à frente, e ter esta sede era a própria água deles. 

Andavam por ruas e ruas falando e rindo, falavam e riam para dar matéria peso à levíssima embriaguez que era a alegria da sede deles. Por causa de carros e pessoas, às vezes eles se tocavam, e ao toque - a sede é a graça, mas as águas são uma beleza de escuras - e ao toque brilhava o brilho da água deles, a boca ficando um pouco mais seca de admiração. 

Como eles admiravam estarem juntos! Até que tudo se transformou em não. Tudo se transformou em não quando eles quiseram essa mesma alegria deles. Então a grande dança dos erros. O cerimonial das palavras desacertadas. Ele procurava e não via, ela não via que ele não vira, ela que, estava ali, no entanto. 

No entanto ele que estava ali. Tudo errou, e havia a grande poeira das ruas, e quanto mais erravam, mais com aspereza queriam, sem um sorriso. Tudo só porque tinham prestado atenção, só porque não estavam bastante distraídos. Só porque, de súbito exigentes e duros, quiseram ter o que já tinham. Tudo porque quiseram dar um nome; porque quiseram ser, eles que eram. 

Foram então aprender que, não se estando distraído, o telefone não toca, e é preciso sair de casa para que a carta chegue, e quando o telefone finalmente toca, o deserto da espera já cortou os fios. 

Tudo, tudo por não estarem mais distraídos.

Clarice Lispector







segunda-feira, 28 de novembro de 2011

"Eis-me acordado" (Al Berto)


Clip Voz da RTP - "Eis-me acordado", poema de Al Berto
lido por Paulo Pires.


Eis-me acordado
Com o pouco que me sobejou da juventude nas mãos
Estas fotografias onde cruzei os dias sem me deter
E por detrás de cada máscara desperta
A morte de quem partiu e se mantém vivo...

A luz secou na orla desértica da cidade
Escrevo para sobreviver
Como quem necessita de partilhar um segredo...

Este corpo em que me escondi... gastou-se...

Quantas noites permanecerão intactas no fundo do mar?
O rosto ainda jovem
Foi o tesouro de seivas que me entonteceu
Pelo corpo condeno-me à vida
De susto em susto à inutilidade da escrita...

Mas eis-me acordado
muito tempo depois de mim
Esperando por alguma fulguração do corpo esquecido
À porta do meu próprio inferno...

Al Berto


Al Berto é o  pseudónimo de Alberto Raposo Pidwell Tavares (Coimbra, 1948 - 1997), poeta, pintor, editor e animador cultural português.



sexta-feira, 25 de novembro de 2011

A língua portuguesa é de borracha (Isabela Figueiredo)



A LÍNGUA PORTUGUESA É DE BORRACHA

Os portugueses, e se calhar os povos de outros idiomas, usam a sua língua como certos provincianos: ao comprar um sofá de pele nunca lhe tiram o plástico protetor, para não se estragar. O resultado é que passam a sentar-se num sofá de plástico, e, quando finalmente removem a proteção, porque entretanto lhes cheirou a mofo, a pele que tanto protegeram, apodreceu.

Todos são donos da língua e a usam e modificam a cada dia das suas vidas. As línguas não se alteram quanto à grafia, léxico, semântica ou sintaxe por mero decreto. Quando chega o decreto já elas mudaram há muito, e somos nós os responsáveis. Sentámo-nos nela, gastámo-la, remendámo-la, arranjámos formas de tornar o assento da língua mais confortável. A lei de Lavoisier aplica-se a quase tudo, mas à língua, que nem ginjas. Nela, nada se perde, e mesmo o que se ganha, transforma-se. Ninguém se preocupa com a evolução sofrida pelos diversos falares do Latim em contato com as línguas dos territórios para onde foram levados pela expansão do Império Romano, mas se uma palavra do Português europeu perde uma consoante muda, o nosso país indigna-se como não se indignaria se tivéssemos um primeiro-ministro mentiroso ou um presidente lerdo das ideias. Que estamos a imitar os brasileiros. Que nós não falamos brasileiro. E, sobretudo, que a nossa língua é melhor que a deles. Não levo as mãos à cabeça porque não posso perder tempo com dramatizações, embora goste.

Os meus alunos, que ainda há um ano davam erros ortográficos que deixarão de o ser a partir do momento em que o acordo vigore nas escolas - no próximo ano letivo, embora nos exames nacionais já tenhamos sido avisados para aceitar as duas grafias - insurgem-se contra ele. Escrevo-lhes, no quadro, redacção, e peço que leiam. Leem redação. Segundo passo: escrevo redação, e leem redação. Qual a diferença, pergunto. Bem, a diferença, é que sem a consoante muda está errado. Porquê? Porque altera. Mas a alteração prejudica a mensagem? Na leitura, não, mas na escrita fica estranho. Explico: a aquisição das regras gráficas de uma língua leva anos a fazer-se, e confere um estatuto cultural. Quem escreve de acordo com as regras pertence automaticamente a uma élite bem escrevente, com os privilégios sociais que daí advêm.. Nunca se sabe tudo, mas convém estimar o que se aprendeu, porque não foi fácil adquiri-lo, e porque mudar hábitos custa; no caso dos meus alunos, também porque a aprendizagem é recente, e estão inchados com ela: vêm agora dizer-lhes que têm de desaprender?! E, para mais, a extraordinária arrogância dos 17 anos, diferente da dos 20, dos 30 e dos 40...

Recusam-se a ler livros em Português do Brasil. Não é Português, alegam. Dou o meu melhor explicando-lhes tudo o que aprendi sobre dialetologia, regionalismos, história da língua. Provam-me que é uma língua diferente porque os brasileiros dizem que usam terno e deixam crescer a grama nos jardins. Explico que os dois vocábulos têm origem latina, e que embora constituam, hoje, para nós, arcaísmos, foram os portugueses que os levaram para o Brasil, e que ainda se encontram em todos os dicionários. Reforço que ainda há poucos dias, em Páre, Escute e Olhe, documentário de Jorge Pelicano, ouvi um velhote de Trás-os-Montes dizer que não tinha grana. Ah, que isso é porque nas aldeias são muitos atrasados, não falam bem, argumentam! Tento fazer-lhes ver que nas zonas mais isoladas os vocábulos de uso antigo se mantiveram. Mas o Brasil não é isolado. Não é agora, mas foi. Enfim, uma luta diária.

Passam a palavra, e há alunos de turmas que não me pertencem a interpelarem-me sobre como é possível eu ser professora de Português e defender o acordo ortográfico e a alteração da língua. Olham-me como se fosse uma professora sacrílega.

Entretanto, os brasileiros riem-se. Os brasileiros e todos os africanos e timorenses que usam a nossa língua, que é deles, quotidianamente, como lhes serve melhor. A língua portuguesa, felizmente, é de borracha. Eu admiro sinceramente o que fazem com ela. Parece uma grande manta de crochet que vai crescendo com malhas e desenhos diferentes, partindo de uma mesma técnica.

As alterações no léxico e na grafia de uma língua são peixe miúdo. Como é que se diz refogado no norte de Portugal e batata na Madeira? O que pode realmente afastar o português europeu do que se fala no Brasil e em África é a fonética ou a sintaxe ou ambas. E contra isso, nada a fazer. Não é impossível que o Português, no futuro, venha a divergir conforme o continente onde é falado, formando novas línguas. Por questões políticas e económicas isso é assunto que não interessa aos falantes da variante europeia. Embora a evolução linguística tenha um profundo desprezo pela política e pela economia, por enquanto, não há que temer. O Português ainda se mantém uno - embora o documentário de Jorge Pelicano, gravado em Trás-os-Montes, estivesse legendado; e se ajudava!

Isabela Figueiredo


No seu blogue Novo Mundo




segunda-feira, 21 de novembro de 2011

O senhor Brecht (Gonçalo M. Tavares)



O desempregado com filhos

Disseram-lhe: só te oferecemos emprego se te cortarmos a mão.
Ele estava desempregado há muito tempo; tinha filhos, aceitou.
Mais tarde foi despedido e de novo procurou emprego.
Disseram-lhe: só te oferecemos emprego se te cortarmos a mão que te resta.
Ele estava desempregado há muito tempo; tinha filhos, aceitou.
Mais tarde foi despedido e de novo procurou emprego.
Disseram-lhe: só te oferecemos emprego se te cortarmos a cabeça.
Ele estava desempregado há muito tempo; tinha filhos, aceitou.


O homem mal-educado

O mal-educado não tirava o chapéu em nenhuma situação. Nem às senhoras quando passavam, nem em reuniões importantes, nem quando entrava na igreja.
Aos poucos a população começou a ganhar repulsa pela indelicadeza desse homem, e com os anos esta agressividade cresceu até chegar ao extremo: o homem foi condenado à guilhotina.
No dia em questão colocou a cabeça no cepo, sempre, e orgulhosamente, com o chapéu.
Todos aguardavam.
A lâmina da guilhotina caiu e a cabeça rolou.
O chapéu, mesmo assim, permaneceu na cabeça.
Aproximaram-se, então, para finalmente arrancarem o chapéu àquele mal-educado. Mas não conseguiram.
Não era um chapéu, era a própria cabeça que tinha um formato estranho.


Avaria

Por um curto-circuito eléctrico incompreensível o electrocutado foi o funcionário que baixou a alavanca e não o criminoso que se encontrava sentado na cadeira.
Como não se conseguiu resolver a avaria, nas vezes seguintes o funcionário do governo sentava-se na cadeira eléctrica e era o criminoso que ficava encarregue de baixar a alavanca mortal.


O labirinto

A cidade investiu tudo na construção de uma imponente catedral. Ouro, pedras trabalhadas, tectos pintados pelos grandes pintores do século.
Para a valorizar ainda mais decidiu-se dificultar o acesso. O que se atinge com facilidade deixa de ter valor, filosofava com esforço um determinado político.
Construiu-se então um labirinto que era o único meio de chegar à catedral. O labirinto foi tão bem feito que nunca ninguém conseguiu encontrar a passagem para a catedral.
O labirinto transformou-se na grande atracção da cidade.


O mestre

O mestre mais importante da cidade queria desenhar uma circunferência, mas errou e acabou por desenhar um quadrado.
Pediu aos alunos para copiarem o seu desenho.
Eles copiaram, mas por erro, desenharam uma circunferência.


Os sábios

Uma galinha, finalmente, descobriu a maneira de resolver os principais problemas da cidade dos homens. Apresentou a sua teoria aos maiores sábios e não havia dúvidas: ela tinha descoberto o segredo para todas as pessoas poderem viver tranquilamente e bem.
Depois de a ouvirem com atenção, os sete sábios da cidade pediram uma hora para reflectir sobre as consequências da descoberta da galinha, enquanto esta esperava numa sala à parte, ansiosa por ouvir a opinião destes homens ilustres.
Na reunião, os sete sábios por unanimidade, e antes que fosse tarde demais, decidiram comer a galinha.

Gonçalo M. Tavares

Do seu livro O senhor Brecht.

(Fonte: Contos de aula)


Sinopse: «O Senhor Brecht é um contador de histórias. Senta-se numa sala praticamente vazia e vai contando pequenas histórias entre o absurdo e o humor negro. A sala vai enchendo aos poucos, o que lhe trará no final um novo problema: o público tapa a porta de saída – e o senhor Brecht fica assim encurralado com o seu próprio sucesso.»

Aqui, uma recensão crítica



Gonçalo M. Tavares é um escritor português. Nasceu em agosto de 1970 em Luanda, Angola, e em 2001 publicou a sua primeira obra.



segunda-feira, 14 de novembro de 2011

"Não deixem morrer as palavras!" (José Gomes Ferreira)

 José Gomes Ferreira (1900-1985)


- O Senhor já reparou bem num dicionário? Num dicionário qualquer... Tanto faz... Já reparou? Pois a mim faz-me lembrar sabe o quê?

Um jazigo de família, ou melhor, um jazigo da nação. Uma espécie de mausoléu de papel, onde gerações empilharam séculos e séculos de palavras. Algumas já definitivamente mortas, cobertas de bichos, outras quase a morrer... E muitas, apenas adormecidas, à espera de um toque de dedos para regressarem à vida diária... onde utilizamos ao todo quantas palavras vivas - diga-me lá quantas? Quinhentas? Mil? Nem tantas talvez!

Garanto-lhe que (...) quando ouço de manhã até à noite os mesmos termos... as eternas expressões... os substantivos inevitáveis... os adjectivos fatais... e o verbo ser, o verbo haver, e o verbo fazer... sabe o que me apetece? (...) Gritar aos homens: não deixem morrer as palavras! 

 José Gomes Ferreira, escritor, poeta e ficcionista nascido no Porto.

Biografia e obras de Gomes Ferreira em As tormentas e na Wikipédia



quinta-feira, 10 de novembro de 2011

Canção do Mestiço (Francisco José Tenreiro)

Mestiço (1934) pintura de Cândido Portinari


CANÇAO DO MESTIÇO

Mestiço!

Nasci do negro e do branco
e quem olhar para mim
é como se olhasse
para um tabuleiro de xadrez:
a vista passando depressa
fica baralhando cor
no olho alumbrado de quem me vê.

Mestiço!

E tenho no peito uma alma grande
uma alma feita de adição
como l e l são 2.
Foi por isso que um dia
o branco cheio de raiva
contou os dedos das mãos
fez uma tabuada e falou grosso:
— mestiço!
a tua conta está errada.
Teu lugar é ao pé do negro.

Ah!
Mas eu não me danei ...
E muito calminho
arrepanhei o meu cabelo para trás
fiz saltar fumo do meu cigarro
cantei do alto
a minha gargalhada livre
que encheu o branco de calor! ...

Mestiço!

Quando amo a branca
sou branco...
Quando amo a negra
sou negro.
Pois é...

Francisco José Tenreiro

Francisco José Tenreiro nasceu em São Tomé e Príncipe em 1921 e faleceu em 1963, numa altura em que se intensificava a Guerra Colonial. Geógrafo por formação, usou a poesia para exprimir a nova África, já não a dos postais ilustrados e dos povos, plantas e animais exóticos, mas a de um novo tempo, marcado pela fusão de culturas nativas.

Mais dados e poemas em Lusofonia.


sexta-feira, 4 de novembro de 2011

José (Carlos Drummond de Andrade)

 Desenho de Kleber Sales

Ficou atrás o dia 31 de outubro, mas não faz mal. Esse é o Dia  D, de Drummond, no Brasil. No dia 31 de outubro de 1902 nasceu em Itabira, estado de Minas Gerais, o poeta Carlos Drummond de Andrade.

Porque Drummond é um dos poetas preferidos de Um reino maravilhoso, festejamos esse dia com um dos melhores poemas do autor brasileiro, que podemos, aliás, escutar recitado por Paulo José.


JOSÉ

E agora, José?
A festa acabou,
a luz apagou,
o povo sumiu,
a noite esfriou,
e agora, José?
e agora, você?
você que é sem nome,
que zomba dos outros,
você que faz versos,
que ama, protesta?
e agora, José?

Está sem mulher,
está sem discurso,
está sem carinho,
já não pode beber,
já não pode fumar,
cuspir já não pode,
a noite esfriou,
o dia não veio,
o bonde não veio,
o riso não veio,
não veio a utopia
e tudo acabou
e tudo fugiu
e tudo mofou,
e agora, José?

E agora, José?
Sua doce palavra,
seu instante de febre,
sua gula e jejum,
sua biblioteca,
sua lavra de ouro,
seu terno de vidro,
sua incoerência,
seu ódio - e agora?

Com a chave na mão
quer abrir a porta,
não existe porta;
quer morrer no mar,
mas o mar secou;
quer ir para Minas,
Minas não há mais.
José, e agora?

Se você gritasse,
se você gemesse,
se você tocasse
a valsa vienense,
se você dormisse,
se você cansasse,
se você morresse...
Mas você não morre,
você é duro, José!

Sozinho no escuro
qual bicho-do-mato,
sem teogonia,
sem parede nua
para se encostar,
sem cavalo preto
que fuja a galope,
você marcha, José!
José, para onde?





terça-feira, 1 de novembro de 2011

O monólogo de Orfeu (Vinícius de Moraes)



Orfeu da Conceição é uma peça teatral escrita por Vinicius de Moraes em 1954, baseada no drama da mitologia grega de Orfeu e Eurídice.


Orfeu:

Ai, que agonia que você me deu
Meu amor! que impressão, que pesadelo!
Como se eu te estivesse vendo morta
Longe como uma morta...

Eurídice:

Morta eu estou.
Morta de amor, eu estou; morta e enterrada
Com cruz por cima e tudo!

Orfeu (sorrindo):

Namorada!
Vai bem depressa. Deus te leve. Aquí
Ficam os meus restos a esperar por ti
Que dás vida!

(Eurídice atira-lhe um beijo e sai).


Mulher mais adorada!
Agora que não estás, deixa que rompa
O meu peito em soluços! Te enrustiste
Em minha vida; e cada hora que passa
É mais porque te amar, a hora derrama
O seu óleo de amor, em mim, amada...
E sabes de uma coisa? cada vez
Que o sofrimento vem, essa saudade
De estar perto, se longe, ou estar mais perto
Se perto, - que é que eu sei! essa agonia
De viver fraco, o peito extravasado
O mel correndo; essa incapacidade
De me sentir mais eu, Orfeu; tudo isso
Que é bem capaz de confundir o espírito
De um homem - nada disso tem importancia
Quando tu chegas com essa charla antiga
Esse contentamento, essa harmonia
Esse corpo! e me dizes essas coisas
Que me dão essa fôrça, essa coragem
Esse orgulho de rei. Ah, minha Eurídice
Meu verso, meu silêncio, minha música!
Nunca fujas de mim! sem ti sou nada
Sou coisa sem razão, jogada, sou
Pedra rolada. Orfeu menos Eurídice...
Coisa incompreensível! A existencia
Sem ti é como olhar para um relógio
Só com o ponteiro dos minutos. Tu
És a hora, és o que dá sentido
E direção ao tempo, minha amiga
Mais querida! Qual mãe, qual pai, qual nada!
A beleza da vida és tu, amada
Milhões amada! Ah! criatura! Quem
Poderia pensar que Orfeu: Orfeu
Cujo violão é a vida da cidade
E cuja fala, como o vento à flor
Despetala as mulheres - que êle, Orfeu
Ficasse assim rendido aos teus encantos!
Mulata, pele escura, dente branco
Vai teu caminho que eu vou te seguindo
No pensamento e aqui me deixo rente
Quando voltares, pela lua cheia
Para os braços sem fim do teu amigo!
Vai tua vida, pássaro contente
Vai tua vida que eu estarei contigo!






segunda-feira, 24 de outubro de 2011

A paixão (Almeida Faria)



De madrugada ainda levantar-se, descer para a cozinha e enregar o trabalho reacendendo lume no fogão, lavar a louça que ficou da véspera, com sobejos de comida, em monte sobre a pia (durante o inverno a água gela, corta os osso da gente, faz doer às vezes até pelo braço acima – deve ser reumático – mesmo ao cotovelo) e só depois sair para o quintal em que os pardais já cantam sobre o carrapateiro, filhar da vassoura e, com ela, varrer a capoeira e aos bichos dar farelos e mais reção avondo (de manhã as capoeiras têm sempre um certo cheiro azedo como alguns quartos de homem) e também ao pintassilgo mudar a água para beber, pôr a tina do banho, dar-lhe ou alpista ou uma folha de alface ou atão ambas, retirar o papel que, ao fundo da gaiola, se enche de cagadelas dia a dia e de casca de alpista, voltar depois ao quarto, lá em cima, a fim de pentear-se, pintar-se se ele a espera, pôr arrelicas e se aparelhar do casaco comprido, cinzento e desbotado, meter a carteira na algibeira, descer de novo a escada em caracol para a cozinha

Almeida Faria

A paixão (1976)



quinta-feira, 20 de outubro de 2011

"O rio que fazia uma volta..." (Manoel de Barros)



O primeiro poema lido pelo autor, Manoel de Barros, é este em baixo. Depois, há mais...

O rio que fazia uma volta atrás de nossa casa
era a imagem de um vidro mole que fazia uma
volta atrás de casa.
Passou um homem depois e disse: Essa volta
que o rio faz por trás de sua casa se chama
enseada.
Não era mais a imagem de uma cobra de vidro
que fazia uma volta atrás de casa.
Era uma enseada.
Acho que o nome empobreceu a imagem.

Manoel de Barros


Fotografia de Goga



segunda-feira, 17 de outubro de 2011

Sobre 'doutores e engenheiros'

Desenho de Luís Afonso (cliquem para ler o texto)

Maria das Dores Maia é uma portuguesa que escreveu à revista Visão em 2004 sobre esse assunto de que vocês já ouviram falar muitas vezes: em Portugal, as pessoas com estudos universitários, são tratadas como doutores, engenheiros, etc.

Será que todos os portugueses gostam disso ou concordam com essa maneira de tratar as pessoas? Não, é claro.


Doutores e engenheiros

Há em Portugal uma tendência provinciana que faz com que certas pessoas se sintam bem ao serem tratadas por «senhor doutor», «senhor arquitecto» ou «senhor engenheiro». O tratamento em função da licenciatura não tem pés nem cabeça, porque fica abolido o nome da pessoa (que é, no meu entender, o mais importante), restando apenas o impessoal título professional adquirido pela conclusão de um curso universitário de quatro ou cinco anos. Quando perguntamos o nome a um vendedor, uma empregada da limpeza, a um serralheiro, a um trolha, a um carpinteiro, a um escriturário ou a um pasteleiro, eles não respondem: «Sou o serralheiro Fulano de Tal» ou «Sou o pasteleiro Sicrano».

O que valoriza um ser humano são as suas qualidades morais (que estão hoje em dia em completo decréscimo) e a sua honestidade e simplicidade. Nada mais. 


quinta-feira, 13 de outubro de 2011

A rua é das crianças (Ruy Belo)

Fotografia de Ricardo Jorge Fidalgo

A RUA É DAS CRIANÇAS

Ninguém sabe andar na rua como as crianças. Para elas é sempre uma novidade, é uma constante festa transpor umbrais. Sair à rua é para elas muito mais do que sair à rua. Vão com o vento. Não vão a nenhum sítio determinado, não se defendem dos olhares das outras pessoas e nem sequer, em dias escuros, a tempestade se reduz, como para a gente crescida, a um obstáculo que se opõe ao guarda-chuva. Abrem-se à aragem. Não projetam sobre as pedras, sobre as árvores, sobre as outras pessoas que passam, cuidados que não têm. Vão com a mãe à loja, mas apesar disso vão sempre muito mais longe. E nem sequer sabem que são a alegria de quem as vê passar e desaparecer.

Ruy Belo

Do seu livro Homem de Palavra[s] (1970)

segunda-feira, 10 de outubro de 2011

Sarita (António Mendes Cardoso)

Fotografia de José Carlos Costa

SARITA

Sarita mora no musseque,
sofre no musseque,
mas passeia garrida na baixa
toda vermelha e azul,
toda sorriso branco de marfim,
e os brancos ficam a olhar,
perdidos no seu olhar.
Sarita usa brincos amarelos de lata
penteado de deusa egípcia
andar de gazela no mato,
desce à cidade
e sorri para toda a gente.
Depois, às seis e meia,
Sarita vai viver pró musseque
com os brancos perdidos no seu olhar!

António Mendes Cardoso

in Poemas de Circunstância, 1961

Escritor angolano, António Mendes Cardoso nasceu a 8 de Abril de 1933, em Angola, e faleceu em 2006.

Nota. Para saber da palavra musseque, é favor clicar.



quinta-feira, 6 de outubro de 2011

O banqueiro anarquista (Fernando Pessoa)



Ele tirou da boca o charuto, que se apagara; reacendeu-o lentamente; fitou o fósforo que se extinguia; depô-lo ao de leve no cinzeiro; depois, erguendo a cabeça, um momento abaixada, disse: —Oiça. Eu nasci do povo e na classe operária da cidade. De bom não herdei, como pode imaginar, nem a condição, nem as circunstâncias. Apenas me aconteceu ter uma inteligencia naturalmente lúcida e uma vontade um tanto ou quanto forte. Mas esses eram dons naturais, que o meu baixo nascimento me não podia tirar. 

Fui operário, trabalhei, vivi uma vida apertada; fui, em resumo,o que a maioria da gente é naquele meio. Não digo que absolutamente passasse fome, mas andei lá perto. De resto, podia te-la passado, que isso não alterava nada do que se seguiu, ou do que lhe vou expor, nem do que foi a minha vida, nem do que ela é agora.

Fui um operário vulgar, em suma; como todos, trabalhava porque tinha que trabalhar, e trabalhava o menos possível. O que eu era, era inteligente. Sempre que podia, lia coisas, discutia coisas, e, como não era tolo, nasceu-me uma grande insatisfação e uma grande revolta contra o meu destino e contra as condições sociais que o faziam assim. Já lhe disse que, em boa verdade, o meu destino podia ter sido pior do que era; mas naquela altura parecia-me a mim que eu era um ente a quem a Sorte tinha feito todas as injustiças juntas, e que se tinha servido das convenções sociais para mas fazer. Isto era aí pelos meus vinte anos —vinte e um o máximo— que foi quando me tornei anarquista.

Parou um momento. Voltou-se um pouco mais para mim. Continuou, inclinando-se mais um pouco. 

—Fui sempre mais ou menos lúcido. Senti-me revoltado. Quis perceber a minha revolta. Tornei-me anarquista consciente e convicto —o anarquista consciente e convicto que hoje sou.

Fernando Pessoa

Excerto de O banqueiro anarquista, obra publicada pela primeira vez na revista Contemporânea a 1 de maio de 1922.



segunda-feira, 3 de outubro de 2011

Memória (Carlos Drummond de Andrade)

Praça da Estação (Fotografia de João Perdigão)

MEMÓRIA

Amar o perdido
deixa confundido
este coração.

Nada pode o olvido
contra o sem sentido
apelo do Não.

As coisas tangíveis
tornam-se insensíveis
à palma da mão.

Mas as coisas findas
muito mais que lindas,
essas ficarão.

Carlos Drummond de Andrade


Do seu livro Claro Enigma (1951)




Eis o poema na voz do próprio Drummond








quinta-feira, 29 de setembro de 2011

Romances negros, noites claras (António Lobo Antunes)

José Cardoso Pires


ROMANCES NEGROS, NOITES CLARAS

À medida que o tempo avança vai-se ficando despovoado. Os eucaliptos dos anos destroem tudo em tono de nós.

Em acabando este livro apetece-me escrever um romance policial, ou antes um romance negro. Trago esta ideia há anos e chegou a altura de o fazer. Lembro-me de falar nisso ao meu irmão de alma José Cardoso Pires

- Sabes do que tenho vontade, tu?

esperei que o silêncio retornasse suficientemente côncavo para as minhas palavras caberem lá dentro e esvaziei o púcaro Fazer um romance negro.

Recebi de resposta

- Ando a pensar nisso desde que comecei.

Demorámo-nos às voltas com o plano de fazer o tal romance negro a meias, em capítulos alternados, depois o Zé teve aqueles problemas que acabaram numa morte horrível e, mesmo sem ele, não abandonei a cisma. Se for capaz de o pôr em marcha dedico-lho, claro, nós que não dedicámos livros um ao outro:

- Porque é que a gente nunca dedicou um livro ao outro?

- Achas que é preciso?

e ficámos assim. Mas levas com o teu nome no romance negro que te lixas. E meto lá os teus bairros. E meto-te lá a ti, de personagem principal. Não todo, claro, certas coisas de ti. Fazes-me tanta falta, meu cabrão, há tanto para contarmos um ao outro. O fim de um amigo é um martírio, não páras de te agitar cá dentro, raios te partam. Tu e o Ernesto Melo Antunes: duas feridas abertas que não saram. Mas nunca tive uma intimidade assim com outro homem. Bom, adiante. O romance negro é uma promessa que te fiz e acabou-se. Continuo a não beber, continuo a gostar de comida de avião

- Como posso ser amigo de um sacana que gosta de comida de avião?

papava o meu tabuleiro, papava o teu, falávamos de bailes nos Bombeiros Voluntários Lisbonenses, boxe, bilhar às três tabelas, chocos com tinta

(eu detesto)

não falávamos de literatura nem do que cada um estava a lavrar. Mostrava-se acabado o trabalho, num tonzinho distraído

-Queres ler isto?

e, sem mais palavras, suspendiamo--nos num pingo à espera da opinião do outro, que se resumia sempre a uma frase vaga. Percebia-se o julgamento pelo clima à volta da frase, não pela frase em si. E era tudo.

À medida que o tempo avança vai-se ficando despovoado. Os eucaliptos dos anos destroem tudo em torno de nós. Sobram cinzas, raízes, sombras, restos de pedras calcinadas, vozes ao rés da erva à procura da boca onde nasceram, a pedirem que as escutemos. O que se ganha em troca? Uma cor diferente no silêncio, aquilo a que chamamos sabedoria e não é mais que uma tristeza resignada. Outras pessoas habitarão aqui e a gente primeiro retratos nas cómodas, depois retratos nas gavetas, depois retratos na cave, depois nada.

Cartas numa caligrafia antiga que um vento defunto inclina. E a morte final com o esquecimento do nosso próprio nome. Ficam os livros

(ficarão os livros?)

ficam os livros. Em certo sentido é terrível que a criação dure mais que o criador: Flaubert enfurecia-se que a Bovary continuasse viva e ele não.

É curioso: agora é ela, a quem Flaubert deu vida, que lhe dá vida a ele. É essa a grandeza da Arte: o Verbo torna-se Carne que por sua vez torna a ser Verbo. Pode desejar-se actividade mais nobre? E agora, não sei porque obscuro nexo, veio-me à ideia o Manuel da Fonseca a dar autógrafos na Feira do Livro, o sorriso dele. Esperava que eu acabasse, jantávamos juntos e deixava-o no cais para a outra banda, de madrugada. Cada autógrafo demorava dez minutos no caso de um homem, quinze ou vinte no caso de uma mulher. Dedicatórias intermináveis. Entre o fim do jantar e o cais uma rebaldaria feliz. Tinha assistido à chegada do General ou Marechal Gomes da Costa a Lisboa, depois do vinte e oito

(ou vinte e seis?)

de maio

(vinte e oito)

e o Manel, com a avó, a assistir ao desfile das tropas na Avenida da Liberdade, em que a avó lhe disse

- Olha, filho, devia haver um decreto que proibisse as revoluções.

Copinhos no balcão de cada bar, discotecas manhosas, nem uma palavra sobre literatura, claro. O Manel recrutava umas pequenas e, pelo retrovisor, assistia-lhe às manobras no banco de trás: quem começa o Cerromaior assim

Antigamente o largo era o centro do mundo

merece tudo. E um punhado de poemas de alta qualidade, ai as coisas incríveis que eu te contava assim misturadas com luas e estrelas e a voz vagarosa como o andar da noite. Mesmo posto corrido é do camandro. E a voz do Manel vagarosa como o andar da noite. Nunca tinha pressa, nunca o vi triste. Adorava andar à pancada. O Zé dizia que ele se fingia cobarde para os outros aumentarem e a seguir era um arraial de porrada que dava gosto. Para o Zé se exprimir assim, ele que sob esse aspecto não devia a ninguém, era de certeza. Manel. Só tenho pena que o Zé não se reconciliasse contigo por uma asneira velha, muito feia, que nunca te perdoou. Eu também não perdoei

(não perdoo)

mas esqueço sempre.

- O Zé não vem conosco?

perguntava o Manel, ansioso, e eu por dó Não pode a ver-lhe a aflição na cara. Deixa lá: antigamente o largo era o centro do mundo. E a quem foi capaz de dizer isto aceita-se tudo. Eu, pelo menos, aceito. E o Zé há-de aceitar, vais ver, é uma questão de tempo.

António Lobo Antunes


Publicado na revista Visão


 

segunda-feira, 26 de setembro de 2011

Memórias do cárcere (Graciliano Ramos)

Graciliano Ramos

No começo de 1936, funcionário na Instrução Pública de Alagoas, tive a notícia de que misteriosos telefonemas, com veladas ameaças, me procuravam o endereço. Desprezei as ameaças: ordinariamente o indivíduo que tenciona ofender outro não o avisa. Mas os telefonemas continuaram. Mandei responder que me achava na repartição diariamente, das nove horas ao meiodia, das duas às cinco da tarde. Não  era o que pretendiam. Nada de requerimentos: queriam visitar-me em casa. Pedi que não me transmitissem mais essas tolices, com certeza picuinhas de algum inimigo débil, e esqueci-as: nem um minuto supus que tivessem cunho oficial. Algum tempo depois um amigo me procurou com a delicada tarefa de anunciar-me, gastando elogios e panos mornos, que a minha permanência na administração se tornara impossível. Não me surpreendi. Pelo meu cargo haviam passado em dois anos oito sujeitos. Eu conseguira agüentar-me ali mais de três anos, e isto era espantoso. Ocasionara descontentamentos, decerto cometera numerosos erros, não tivera a habilidade necessária de prestar serviços a figurões, havia suprimido nas escolas o Hino de Alagoas, uma estupidez com solecismos, e isto se considerava impatriótico. O aviso que me traziam era, pois, razoável, e até devia confessar-me grato por me haverem conservado tanto tempo.

Graciliano Ramos

Excerto de Memórias do cárcere,  um livro de memórias de Graciliano Ramos, (1892-1935) publicado postumamente (1953) em dois volumes. O autor não chegou a concluir a obra, faltando o capítulo final.

O autor havia sido preso em 1936 por conta de seu envolvimento político, exagerado por parte das autoridades após o pânico insuflado com a chamada Intentona Comunista, de 1935. A acusação formal nunca chegou a ser feita.


segunda-feira, 19 de setembro de 2011

"Começa a haver meia-noite e a haver sossego" (Campos / Pessoa)



Começa a haver meia-noite, e a haver sossego,
Por toda a parte das coisas sobrepostas,
Os andares vários da acumulação da vida...
Calaram o piano no terceiro andar...
Não oiço já passos no segundo andar...
No rés-do-chão o rádio está em silêncio...

Vai tudo dormir...

Fico sozinho com o universo inteiro.
Não quero ir à janela:
Se eu olhar, que de estrelas!
Que grandes silêncios maiores há no alto!
Que céu anticitadino!
—Antes, recluso,
Num desejo de não ser recluso,
Escuto ansiosamente os ruídos da rua...
Um automóvel — demasiado rápido! —
Os duplos passos em conversa falam-me...
O som de um portão que se fecha brusco dói-me...

Vai tudo dormir...

Só eu velo, sonolentamente escutando,
Esperando
Qualquer coisa antes que durma...
Qualquer coisa...

Álvaro de Campos / Fernando Pessoa



O que são os heterónimos?


quinta-feira, 15 de setembro de 2011

Terras do Demo (Aquilino Ribeiro)



Os longes esfarelavam-se num luaceiro grisalho, como de moinha ao vento; mas, a todo o largo da mirada, a terra descobria-se com os mouchões das leiras a reluzir prateados ao luar e os regos coalhados de tinta negra.

Nas leiras onduladas de morro para morro, o centeal dormia debaixo do codo, a meio as pedras intonsas e impressionantes como cabeças mortas saindo debaixo dum lençol.

As giestas projectavam uma sombra muito escura, o que o levou a notar que a sombra que o seu vulto também projectava era tão retinta e desengonçada como se levasse um fantasma à mão direita.

Não se enxergava vivalma nem de homem, nem de bicho, nem de ser nado que fosse.

Mas, pela lua que caminhava sempre, o sete-estrelo muito rútilo, a rija imobilidade da planície, sentia-se a terra presa a amarras que não quebram nem se rendem.

Aquilino Ribeiro (1885-1963)

Do seu livrro Terras do Demo (1919) 

Aquilino Ribeiro no Instituto Camões e em Vidas Lusófona




sexta-feira, 10 de junho de 2011

Homenagem ao Papagaio Verde (Jorge de Sena)




No começo das minhas memórias de infância, o Papagaio Verde era um animal fabuloso que me recebia aos gritos, enquanto dava voltas no poleiro, trocando os pés, e me olhava de alto com um olho superciliar, e de bico entreaberto. Quando comecei a vê-lo, via-o muito pouco, já que ele vivia na "varanda da cozinha" que me era proibida por causa das torneiras, como a cozinha o era por causa do lume. Ficávamos, quando eu conseguia iludir as vigilâncias, ou subornar o cordão sanitário, os dois numa contemplação embebida: eu, de mãos nos bolsos do bibe de quadradinhos azuis e brancos (que era o uniforme do meu presídio), e ele, com a gaiola pendurada alta, entreabrindo as asas para um vôo um tanto ameaçador, com a cabeça de banda, e soltando uma espécie de grunhido que culminava num arrepio que o eriçava todo. Que era brasileiro e fora trazido do Brasil, eu sabia. Mas, antes de ser posto naquela varanda, onde parecia, numa casa triste e soturna, uma nódoa insólita, obscenamente garrida, viajara muito. Vivera a bordo de navios, cheirara longamente o mar, não a maresia ribeirinha, mas os ventos do largo, prenhes de fina espuma e de um ardor de andanças.


Jorge de Sena

Excerto do seu conto Homenagem ao Papagaio Verde, incluído no livro Os Grão-Capitães (1976)



quarta-feira, 8 de junho de 2011

Nós matamos o Cão-Tinhoso (Luís Bernardo Honwana)



O Cão-Tinhoso tinha uns olhos azuis que não tinham brilho nenhum, mas eram enormes e estavam sempre cheios de lágrimas, que lhe escorriam pelo focinho. Metiam medo, aqueles olhos, assim tão grandes, a olhar como uma pessoa a pedir qualquer coisa sem querer dizer. 

Eu via todos os dias o Cão-Tinhoso a andar pela sombra do muro em volta do pátio da Escola, a ir para o canto das camas de poeira das galinhas do Senhor Professor. As galinhas nem fugiam, porque ele não se metia com elas, sempre a andar devagar, à procura de uma cama de poeira que não estivesse ocupada. 

O Cão-Tinhoso passava o tempo todo a dormir, mas às vezes andava, e então eu gostava de o ver, com os ossos todos à mostra no corpo magro. Eu nunca via o Cão-Tinhoso a correr e nem sei mesmo se ele era capaz disso, porque andava todo a tremer, mesmo sem haver frio, fazendo balanço com a cabeça, como os bois e dando uns passos tão malucos que parecia uma carroça velha.

Houve um dia que ele ficou o tempo todo no portão da Escola a ver os outros cães a brincar no capim do outro lado da estrada, a correr, a correr, e a cheirar debaixo do rabo uns dos outros. Nesse dia o Cão-Tinhoso tremia mais do que nunca, mas foi a única vez que o vi com a cabeça levantada, o rabo direito e longe das pernas e as orelhas espetadas de curiosidade.

Luís Bernardo Honwana (Maputo, 1942) é um escritor moçambicano







segunda-feira, 6 de junho de 2011

Dom Casmurro (Machado de Assis)


Dom Casmurro (1899) é um romance do escritor brasileiro Machado de Assis (1839-1880). Capitolina, conhecida como Capitu, é a principal figura feminina do livro. Este trecho corresponde à infância dos protagonistas.


De repente, ouvi bradar uma voz de dentro da casa ao pé:

E no quintal:

- Mamãe!

E outra vez na casa:

- Vem cá!
Não me pude ter. As pernas desceram-me os três degraus que davam para a chácara, e caminharam para o quintal vizinho. Era costume delas, às tardes, e às manhãs também. Que as pernas também são pessoas, apenas inferiores aos braços, e valem de si mesma, quando a cabeça não as rege por meio de idéias. As minhas chegaram ao pé do muro. Havia ali uma porta de comunicação mandada rasgar por minha mãe, quando Capitu e eu éramos pequenos. A porta não tinha chave nem taramela- abria-se empurrando de um lado ou puxando de outro, e fechava-se ao peso de uma pedra pendente o uma corda. Era quase que exclusivamente nossa. Em crianças, fazíamos visita batendo de um lado, e sendo recebidos do outro com muitas mesuras. Quando as bonecas de Capitu adoeciam, o médico era eu. Entrava no quintal dela com um pau debaixo do braço, para imitar o bengalão do Doutor João da Costa, tomava o pulso à doente e pedia-lhe que mostrasse a língua. “É surda, coitada!”, exclamava Capitu. Então eu coçava o queixo, como o doutor, e acabava mandando aplicar-lhe umas sanguessugas ou dar-lhe um vomitório: era a terapêutica habitual domédico.

- Capitu!
- Mamãe!
- Deixa de estar esburacando o muro - vem cá.

A voz da mãe era agora mais perto, como se viesse já da porta dos fundos. Quis passar ao quintal, mas as pernas, há pouco tão andarilhas, pareciam agora presas ao chão. Afinal fiz um esforço, empurrei a porta, e entrei. Capitu estava ao pé do muro fronteiro, voltada para ele, riscando com um prego. O rumor da porta fê-la olhar para trás; ao dar comigo, encostou-se ao muro, como se quisesse esconder alguma coisa. 

Caminhei para ela; naturalmente levava o gesto mudado, porque ela veio a mim, e perguntou-me inquieta:

- Que é que você tem?
- Eu? Nada.
- Nada, não; você tem alguma coisa.

Quis insistir que nada, mas não achei língua. Todo eu era olhos e coração, um coração que desta vez ia sair, com certeza, pela boca fora. Não podia tirar os olhos daquela criatura de quatorze anos, alta, forte e cheia, apertada em um vestido de chita, meio desbotado. Os cabelos grossos, feitos em duas tranças, com as pontas atadas uma à outra, à moda do tempo, desciam-lhe pelas costas. Morena, olhos claros e grandes, nariz reto e comprido, tinha a boca fina e o queixo largo. As mãos, a despeito de alguns ofícios rudes, eram curadas com amor, não cheiravam a sabões finos nem águas de toucador, mas com água do poço e sabão comum trazia-as sem mácula. Calçava sapatos de duraque, rasos e velhos, a que ela mesma dera alguns pontos.

- Que é que você tem? repetiu.
- Não é nada, balbuciei finalmente.

E emendei logo.

- É uma notícia.
- Notícia de quê?

Pensei em dizer-lhe que ia entrar para o seminário e espreitar a impressão que lhe faria. Se a consternasse é que realmente gostava de mim; se não, é que não gostava. Mas todo esse cálculo foi obscuro e rápido; senti que não poderia falar claramente, tinha agora a vista não sei como...

- Então?
- Você sabe...

Nisto olhei para o muro, o lugar em que ela estivera riscando, escrevendo ou esburacando, como dissera a mãe. Vi uns riscos abertos e lembrou-me o gesto que ela fizera para cobri-los. Então quis vê-los de perto, e dei um passo. Capitu agarrou-me, mas, ou por temer que eu acabasse fugindo, ou por negar de outra maneira, correu adiante e apagou o escrito. Foi o mesmo que acender em mim o desejo de ler o que era.

Machado de Assis


segunda-feira, 30 de maio de 2011

A Sombra (Mário-Henrique Leiria)


Foi exactamente durante o jantar anual da empresa que Valter teve a sensação de que era seguido. Na altura do discurso final. Falava o doutor Raimondi, quando a sombra passou veloz, recortando-se por instantes no fundo da sala. Valter sentiu um arrepio súbito, ergueu-se de repente e, sem esperar o fim do arrazoado e as palmas consequentes, saiu pela porta fora entre a estranheza dos colegas.
Na rua olhou em volta. Uma rua calma, iluminada, burguêsmente nocturna, sem tragédias à vista. Isso deu-lhe um certo alívio. Afinal fora apenas impressão sua, uma sombra que lhe parecera, talvez só a ele, ser mais do que uma sombra a segui-lo.
Foi andando devagar pelo passeio, acendeu um cigarro e olhou uma montra de artigos para caçador, admirando um magnífico tigre que, em posição de rosnido feroz, propagandeava uma marca de cartuchos para assassinar coelhos. E, de repente, aquela coisa empalhada olhou para ele e a sombra que os spots atiravam para o fundo da loja pareceu avançar.
Valter deu um passo atrás, em pânico, tropeçando numa jovem que lhe sorriu, agradável. Pediu uma desculpa entaramelada, quase engolindo o cigarro, engasgou-se, cuspiu e caminhou em frente, apressado.
Não podia ser. Aquilo não tinha lógica. Como diabo um tigre empalhado... Evidentemente, o que ele estava era cansado.
Abrandou o passo, aquecido, pelo neon dos Grandes Armazéns Bulora.
As pessoas passavam, normais, apressadas umas, outras escorregando lentamente até ao tempo de ir para casa, ora vermelhas, ora azuis, ora amarelas, mas todas confortàvelmente familiares, entrando e saindo do neon que escorria pelo passeio.
Atravessou a rua, um pouco incerto no caminho a seguir, quase caindo em frente de um carro que buzinou, furioso. Por momentos sentiu-se tapado por aquela sombra ensurdecedora. Saltou, num arranco, para o passeio do outro lado.
Ficou a olhar o carro que desaparecia na esquina e outros que iam passando num zumbido de escapes em liberdade nocturna, até se sentir mais calmo, mais capaz de saber onde estava. Na rua, claro, a caminho de casa.
Acendeu outro cigarro e continuou. Logo ali à frente o RODEO, um barzinho seu conhecido. Entrou, na ânsia de uma bebida e de um repouso temporário. Pediu um gin-tonic duplo com bastante gelo, a noite estava mesmo quente. Foi bebendo lentamente, à procura de qualquer justificação para aquilo. Ao olhar para a porta, viu-a passar, viu-a com nitidez, vibrante e rápida, deixando o ar a oscilar como se fosse água. Acabou o gin e pediu outro, que enguliu de seguida. Não, aquilo não era nada, só cansaço.
Pagou e saiu. Procurou um táxi. Um táxi não, era fechado, melhor ir a pé. Queria chegar a casa, queria descansar. Precisava de chegar a casa.
Começou a andar, cada vez mais depressa. E viu-a. Lá estava, naquele vão de escada. Apertou o passo, mas ela chegou primeiro à esquina.
Na esquina olhou, atento. Era a sua rua, o prédio ficava ali em baixo, acolhedor.
Ela continuava, uma sombra escondida na sombra, a olhá-lo do outro lado da rua.
Começou a correr. Da lado de lá via-a deslizar de porta em porta, de escuro em escuro, sempre a acompanhá-lo, silenciosa.
Ia começar a gritar quando reparou que estava à porta de casa. Entrou no edifício, esbaforido mas aliviado. Olhou em volta. Não a viu.
- Boas-noites, senhor Valter. Sente-se mal? - interessou-se o Josué porteiro de noite, com uma solicitude matreira.
- Boas noites, Josué. Não é nada. Apenas cansaço. Venho do jantar anual lá do emprego. Com patrões e tudo, sabe como é.
- Pois. Essas coisas cansam - concordou o Josué, julgando saber. Cansam mesmo, senhor Valter.
- Até amanhã, Josué.
- Até amanhã, senhor Valter.
Entrou no elevador com a sensação de se ter libertado de um acontecimento atroz.
Saiu no décimo andar. O corredor estava calmo, brilhante de luz e repouso. Abriu a porta do apartamento e entrou.
Foi até ao bar, preparou apressado um gin saudávelmente triplo sem tónica e, sentando-se confortável no sofá, saboreou-o com um prazer todo novo, com lentidão, com luxo. Um bom sono e amanhã tudo seria apenas um motivo para sorrir. E se não fosse?
Bocejou, sentindo-se realmente cansado. Acendeu um cigarro, bebeu o resto do gín num arrepio de gozo, pousou o copo e levantou-se.
Dirigiu-se para o quarto e abriu a porta.
A sombra ergueu-se da cama e avançou para ele, de braços abertos.
- Querido! Vieste cedo...


Mário-Henrique Leiria, in Contos do Gin-Tonic (1973)


segunda-feira, 23 de maio de 2011

Dos maiores de 23 (André Simões)

 A FLUL, Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa

A propósito do ataque do psd às "Novas Oportunidades", já se começam também a ouvir vozes a dizer mal dos acessos de maiores de 23 anos à Universidade, os antigos "ad hoc". Ataques soezes e injustificados. Posso dar testemunho de que até agora, na FLUL (a minha experiência na FCSH-UNL é recente), sem uma única excepção que me venha à memória, os alunos que entraram ao abrigo dos "maiores de 23" estão invariavelmente entre os melhores das turmas onde estão integrados, frequentemente mesmo até obtêm as mais altas classificaçõe da turma. São também, sem excepção, dos alunos mais interessados, aplicados e trabalhadores. É uma tremenda injustiça denegri-los como ainda hoje comecei a ouvir em alguns programas daqueles da TV para onde se liga a dizer de sua justiça (quase sempre baboseiras populistas).

Não me pronuncio (ou, como diz o presidente da república, não me "prenuncio") sobre as Novas Oportunidades, porque não conheço. Mas posso pronunciar-me sobre alguns casos de pessoas que conheço que fizeram aqueles antigos cursos em que num ano se fazia o secundário todo, e que chegaram à faculdade, através do "ad hoc", e que foram, também elas, das melhores da turma. É preciso ter algum cuidado com generalizações.


André Simões, no blogue Pesporrente