sexta-feira, 31 de maio de 2019

Imagens que passais pela retina... (Camilo Pessanha)



Imagens que passais pela retina
dos meus olhos, porque não vos fixais?
Que passais como a água cristalina
por uma fonte para nunca mais!....

Ou para o lago escuro onde termina
Vosso curso, silente de juncais,
E o vago medo angustioso domina,
- Porque ides sem mim, não me levais?

Sem vós o que são os meus olhos abertos?
- O espelho inútil, meus olhos pagãos!
Aridez de sucessivos desertos...

Fica sequer, sombra das minhas mãos,
Flexão casual de meus dedos incertos,
- Estranha sombra e movimentos vãos.

Camilo Pessanha


Camilo Pessanha (Coimbra, 1867 — Macau, 1926) foi um poeta português.

É considerado o expoente máximo do simbolismo em língua portuguesa, além de antecipador do princípio modernista da fragmentação.


Fotografia de Pessanha retirada do seguinte artigo do diário Público (15-3-2016):

Macau tira Camilo Pessanha do buraco
Uma nova tradução chinesa da Clepsidra foi lançada no Festival de Literatura de Macau. O escritor Paulo José Miranda, que há 15 anos ali foi atrás de Pessanha, também voltou para o reencontrar. 



segunda-feira, 27 de maio de 2019

Procelária (Sophia de Mello Breyner Andresen)

Pardela-preta (Procellaria aequinoctialis)


PROCELÁRIA

É vista quando há vento e grande vaga
Ela faz o ninho no rolar da fúria
E voa firme e certa como bala

As suas asas empresta à tempestade
Quando os leões do mar rugem nas grutas
Sobre os abismos passa e vai em frente

Ela não busca a rocha o cabo o cais
Mas faz da insegurança a sua força
E do risco de morrer seu alimento

Por isso me parece imagem justa
Para quem vive e canta no mau tempo.

Sophia de Mello Breyner Andresen

Geografia (1967)




sexta-feira, 24 de maio de 2019

A edição inglesa (Rui Pires Cabral)

Ritratto di Gian Giacomo Caprotti, detto Salaì, di anonimo, ca 1495,
Vaduz, Fondazione Alois


A EDIÇÃO INGLESA

                                                          para a Mariana Pinto dos Santos

Na primavera de 1476
o jovem Leonardo da Vinci
escreveu no verso de uma carta
desesperada: If there is no love,
what then? Escreveu-o, bem
entendido, no seu vernáculo
nativo – eu é que só tenho
a edição inglesa.

De quantas coisas
nesta vida, meu Deus, só tenho
a edição inglesa – quer dizer,
a precária, aproximativa
tradução? E que fazer
com estas noites de Junho,
se o amor, justamente,
é uma delas?

Rui Pires Cabral



Grisu, n.º 1, Grisu – Associação Cultural, Guimarães, 2012.

Lido em Hospedaria Camões



quarta-feira, 22 de maio de 2019

Chico Buarque vence Prémio Camões 2019


Chico Buarque é o vencedor do Prémio Camões 2019

Chico Buarque fora já distinguido duas vezes com o prémio Jabuti, o mais importante prémio literário no Brasil, pelo romance "Leite Derramado", em 2010, obra com que também venceu o antigo Prémio Portugal Telecom de Literatura, e por "Budapeste", em 2006.

O músico e escritor foi escolhido pelos jurados Clara Rowland e Manuel Frias Martins, indicados pelo Ministério português da Cultura, pelos brasileiros Antonio Cícero Correia Lima e António Carlos Hohlfeldt, pela professora angolana Ana Paula Tavares e pelo professor moçambicano Nataniel Ngomane.

Escritor, compositor e cantor, Francisco Buarque de Holanda nasceu em 19 de junho de 1944, no Rio de Janeiro.

Estreou-se nas Letras com o romance "Estorvo", publicado em 1991, a que se seguiram obras como "Benjamim", "Tantas palavras" e "O Irmão Alemão", publicado em 2014.

Em 2017, venceu em França o prémio Roger Caillois pelo conjunto da obra literária.

O Prémio Camões de literatura em língua portuguesa foi instituído por Portugal e pelo Brasil em 1988, com o objetivo de distinguir um autor "cuja obra contribua para a projeção e reconhecimento do património literário e cultural da língua comum".

Foi atribuído pela primeira vez, em 1989, ao escritor Miguel Torga. Em 2018 o prémio distinguiu o escritor cabo-verdiano Germano Almeida, autor de "A ilha fantástica", "Os dois irmãos" e "O testamento do Sr. Napumoceno da Silva Araújo", entre outras obras.

Brasil e Portugal lideram a lista de distinguidos com o Prémio Camões, com 13 premiados cada, seguindo-se Angola, Moçambique e Cabo Verde, com dois laureados cada - contando com o luso-angolano Luandino Vieira.

A história do galardão conta apenas com uma recusa, a de Luandino Vieira, em 2006.

Lista dos distinguidos com o Prémio Camões:

1989 -- Miguel Torga, Portugal

1990 -- João Cabral de Melo Neto, Brasil

1991 -- José Craveirinha, Moçambique

1992 -- Vergílio Ferreira, Portugal

1993 -- Rachel Queiroz, Brasil

1994 -- Jorge Amado, Brasil

1995 -- José Saramago, Portugal

1996 -- Eduardo Lourenço, Portugal

1997 -- Pepetela, Angola

1998 -- António Cândido de Mello e Sousa, Brasil

1999 -- Sophia de Mello Breyner Andresen, Portugal

2000 -- Autran Dourado, Brasil

2001 -- Eugénio de Andrade, Portugal

2002 - Maria Velho da Costa, Portugal

2003 -- Rubem Fonseca, Brasil

2004 -- Agustina Bessa-Luís, Portugal

2005 -- Lygia Fagundes Telles, Brasil

2006 -- José Luandino Vieira, Portugal/Angola

2007 -- António Lobo Antunes, Portugal

2008 -- João Ubaldo Ribeiro, Brasil

2009 -- Arménio Vieira, Cabo Verde

2010 -- Ferreira Gullar, Brasil

2011 -- Manuel António Pina, Portugal

2012 -- Dalton Trevisan, Brasil

2013 - Mia Couto, Moçambique

2014 - Alberto da Costa e Silva, Brasil

2015 - Hélia Correia, Portugal

2016 - Raduan Nassar, Brasil

2017 - Manuel Alegre, Portugal

2018 - Germano Almeida, Cabo Verde

2019 - Chico Buarque, Brasil


Informação publicada no DN (21 de maio de 2019)


Em "Poeta de canções, dramaturgo e romancista: Chico Buarque é mais do que Bob Dylan", de João Céu e Silva, no Diário de Notícias de ontem, podemos ler o seguinte:

"Quero ficar no teu corpo feito tatuagem" é o verso inicial de uma canção da peça Calabar - O Elogio da Traição que Chico Buarque escreveu com Ruy Guerra e subiu aos palcos em 1973. Pode dizer-se que só Calabar justificaria o Prémio Camões que Chico Buarque recebeu ontem após a escolha do júri porque reúne nessa canção - e outras como Anna de Amsterdam - a sedução capaz de pôr milhões a cantar enquanto pensam na condição humana da protagonista.

Mas Calabar não é só música porque nessa peça já estava tudo o que faz de Chico Buarque um dos maiores criadores da língua portuguesa, a razão pela qual Portugal e Brasil instituíram este prémio: além de compositor musical, é poeta e escritor de letras, autor de teatro e com meia dúzia de narrativas de ficção de fôlego.

A escolha de Chico Buarque implode pela primeira vez com a norma de atribuir o Camões a "especialistas" do clube da literatura, ficcionistas e poetas, uma orientação que vem desde a primeira escolha, Miguel Torga (1989), passou por Jorge Amado (1994), e no ano passado calhou a Germano Almeida.

(Artigo completo no link)

Página oficial de Chico Buarque


Tatuagem 
Chico Buarque - Ruy Guerra/1972-1973
Para a peça Calabar de Chico Buarque e Ruy Guerra

Quero ficar no teu corpo feito tatuagem
Que é pra te dar coragem
Pra seguir viagem
Quando a noite vem
E também pra me perpetuar em tua escrava
Que você pega, esfrega, nega
Mas não lava

Quero brincar no teu corpo feito bailarina
Que logo se alucina
Salta e te ilumina
Quando a noite vem
E nos músculos exaustos do teu braço
Repousar frouxa, murcha, farta
Morta de cansaço

Quero pesar feito cruz nas tuas costas
Que te retalha em postas
Mas no fundo gostas
Quando a noite vem
Quero ser a cicatriz risonha e corrosiva
Marcada a frio, a ferro e fogo
Em carne viva

Corações de mãe
Arpões, sereias e serpentes
Que te rabiscam o corpo todo
Mas não sentes




segunda-feira, 20 de maio de 2019

Linha de rumo (Ruy Cinatti)

Fotografia de José Carlos Filizola


LINHA DE RUMO

Quem não me deu Amor, não me deu nada.
Encontro-me parado...
Olho em meu redor e vejo inacabado
O meu mundo melhor.

Tanto tempo perdido...
Com que saudade o lembro e o bendigo:
Campo de flores
E silvas...

Fonte da vida fui. Medito. Ordeno.
Penso o futuro a haver.
E sigo deslumbrado o pensamento
Que se descobre.

Quem não me deu Amor, não me deu nada.
Desterrado,
Desterrado prossigo.
E sonho-me sem Pátria e sem Amigos,
Adrede.

Ruy Cinatti




sexta-feira, 17 de maio de 2019

Saudades (Florbela Espanca)

Florbela Espanca


SAUDADES

Saudades! Sim.. talvez.. e por que não?...
Se o sonho foi tão alto e forte
Que pensara vê-lo até à morte
Deslumbrar-me de luz o coração!

Esquecer! Para quê?... Ah, como é vão!
Que tudo isso, Amor, nos não importe.
Se ele deixou beleza que conforte
Deve-nos ser sagrado como o pão.

Quantas vezes, Amor, já te esqueci,
Para mais doidamente me lembrar
Mais decididamente me lembrar de ti!

E quem dera que fosse sempre assim:
Quanto menos quisesse recordar
Mais saudade andasse presa a mim!

Florbela Espanca

 Livro de Sóror Saudade (1923). V. Wikipédia sobre este livro


Florbela Espanca (Vila Viçosa, 8 de dezembro de 1894 — Matosinhos, 8 de dezembro de 1930)

Artigo sobre a poeta e contista na Infopédia



quinta-feira, 16 de maio de 2019

Ivan Ilitch, 1958 (José Paulo Paes)



IVAN ILITCH, 1958

Trrrim, bocejo,
Roupão, chinelos,
Gilete, escova,
Água, sabão,
Café com pão,
Chapéu, gravata,
Beijo, automóvel,
Adeus, adeus.

Gente, trânsito,
Sol, bom-dia,
Escritório,
Relatório,
Telefones,
Almoço, arroto,
Contas, desgosto,
Adeus, adeus.

Clube, vento,
Grama, tênis,
Ducha, alento,
Bar, escândalos,
Pedro, Paulo,
Mulher de Pedro,
Mulher de Paulo,
Adeus, adeus.

Lar, esposa,
Filhos, pijama,
Janta, living,
Jornal, cismares,
Tricô, vagares,
Hiato, ausências,
Bocejo, escada,
Adeus, adeus.

Quarto, cama,
Glândulas, êxtase,
Dois em um,
Dois em nada,
Dever cumprido,
Luz apagada,
Adeus, adeus.

Horas, dias,
Meses, anos,
Cãs, enganos,
Desenganos,
Vácuo, náusea,
Indiferença,
Cipreste, olvido,
Há Deus? adeus.

José Paulo Paes


Poesia completa. São Paulo, Companhia das Letras (2008)


Dados sobre José Paulo Paes (Taquaritinga, 1926 — São Paulo, 1998) em Infoescola.

"José Paulo Paes e a poesia que encanta adulto e criança", em Macapá cultural.



segunda-feira, 13 de maio de 2019

Auto-retrato (Maria Teresa Horta)

Fotografia de Daniel Rocha no diário Público (14-03-2012)



AUTO-RETRATO

Eu sou outra em mim mesma
e sou aquela

Sou esta
dançando sobre as lágrimas

Sou o gozo
no gosto de ser espelho
e me faz multiplicar em todo o lado

Eu sou múltipla
veneno em minha veia

Estrangeira
rasgando o seu passado

Sou cruel
dúplice e sedenta
mil vezes morri no desamparo

Eu sou esta que nego
e a outra onde me afirmo
faço nela e naquela o meu retrato

E se na história desta me confirmo
na vida da outra não me traio

Feita de ambas à beira do abismo
sou a mesma mulher nascida em Maio

Maria Teresa Horta

Poesia Reunida (2009)

(Lido aqui: Ler para ser)


Pode ser lida esta entrevista de Helena Vasconcelos com Maria Teresa Horta no diário Público: "A luz incandescente de Maria Teresa Horta" (14-03-2012)


Entrevista de Anabela Mota Ribeiro



sexta-feira, 10 de maio de 2019

Conheço a residência da dor (Cecília Meireles)




CONHEÇO A RESIDÊNCIA DA DOR

Conheço a residência da dor.
É um lugar afastado,
Sem vizinhos, sem conversa, quase sem lágrimas,
Com umas imensas vigílias diante do céu.

A dor não tem nome,
Não se chama, não atende.
Ela mesma é solidão:
Nada mostra, nada pede, não precisa.
Vem quando quer.

O rosto da dor está voltado sobre um espelho,
Mas não é rosto de corpo,
Nem o seu espelho é do mundo.

Conheço pessoalmente a dor.
A sua residência, longe,
Em caminhos inesperados.

Às vezes sento-me à sua porta, na sombra das suas árvores.
E ouço dizer:
"Quem visse, como vês, a dor, já não sofria".
E olho para ela, imensamente.
Conheço há muito tempo a dor.
Conheço-a de perto.
Pessoalmente.

Cecília Meireles
(1901-1964)


Cecília Meireles em releituras



terça-feira, 7 de maio de 2019

Entrevista a Dulce Maria Cardoso (DN, 17-08-2016)

Fotografia de Gustavo Bom / Global Imagens


Entrevista a Dulce Maria Cardoso realizada por Fernanda Câncio, e publicada no Diário de Notícias no dia 17 de agosto de 2016.


Dulce Maria Cardoso: "O que me fez pensar no que andamos aqui a fazer foi o olhar de um cão"

O passado é o sítio mais perigoso, diz a autora de O Retorno, que também por isso - e por causa do regime - nunca voltou a Angola. Conversa sobre quase tudo, do amor ao veganismo a deus. E à escrita, claro.


Comeu muitas cerejas neste ano?

Em maio fui convidada para ir ao festival da Gardunha e uma das coisas que me levaram a aceitar foram as cerejas. No ano passado, disseram-me, era toda a gente com cestas de cerejas. Mas este foi um ano mau, nem uma. Pensei: qualquer dia são mesmo mitológicas.

É a sua fruta mítica, por não haver em África. Quem lhe falou delas?

A minha irmã, cinco anos mais velha. Dizia que era uma coisa pequenina, redonda, muito docinha. E nos casamentos e batizados, quando queriam ser mesmo finos, arranjavam umas cerejas. Chegavam lá todas mirradas mas as pessoas olhavam para aquilo com um ar de maravilhamento. Já teria uns 8 anos quando finalmente comi uma. E achei aquilo terrível. Pensei: porque é que andam a falar disto? Quando cá cheguei comi e continuei sem achar piada. Tinha muitas saudades era das mangas, dos abacates, do abacaxi. Agora como os frutos todos. Sendo que se estiver doente ou mais triste procuro as comidas mais de lá. E há coisas que sinto... Por exemplo a primeira vez que fui ao Brasil e vi um homem a cortar um coco com uma catana. Sabia os gestos. Nunca mais tinha visto mas quando vi, eu sabia. E depois foi o sumo de caju. Também nunca mais tinha bebido, deram-me, estavam mais portugueses e ninguém identificou e eu disse: é caju. A memória dos sabores e dos gestos... Fica tudo marcado. Se tiver 100 anos bastar-me-á muito pouco para estar outra vez nas ruas cheias de terra vermelha e aquele calor e aquilo tudo...

Ruas onde nunca mais foi.

Nunca mais.

Porquê?

Ao princípio era por razões óbvias: era miúda, havia guerra, não tinha dinheiro, etc. Quis muitas vezes voltar, mais não seja que para confirmar. E uma das coisas piores é que não posso confirmar nada - dizer era aquela rua, era aquela escola, era assim. Perdeu-se para sempre. Mas quando comecei a publicar surgiram convites e tive de decidir. E aí pensei que eu, que critico tanto o regime angolano, não podia aceitar o convite desse mesmo regime. Não faz sentido aceitar para ir dizer mal das pessoas que te convidam.

Podia ir de férias.

Isso ainda não consegui achar que se justifica.

Tem medo?

Sim. O passado é um sítio muito perigoso. É talvez o sítio mais perigoso de todos. Não conheço sítio mais perigoso. Tem muitas armadilhas. E podes modificar o passado, que é uma coisa que não sabia até há pouco tempo. Refazê-lo. Podes ficcionar de tal maneira que o teu passado passa a ser outro. Aconteceu-me agora. À força de ter ficcionado a escrever O Retorno e de ser partilhado com tanta gente, o meu passado angolano já inclui aquela ficção. Mas também tenho muito pudor em visitar sítios onde se praticam coisas contra os direitos fundamentais. Muitas dúvidas sobre a fronteira entre ser cúmplice e ser testemunha. Ao ver os números assustadores de Angola - de mortalidade infantil, de assimetria social, de corrupção, etc., acho que conhecendo-me como me conheço não ia para o Mussulo [zona de praia perto de Luanda] banhar-me. Não teria prazer nisso. Se me sinto mal no Brasil, sinto-me mesmo mal, apesar de gostar muito da temperatura, da beleza... As babás, aquela coisa das fardas, dos carros de vidros fumados, das favelas, é tão agressivo que a não ser que tenhas umas palas gigantescas... Agora, há uma coisa: temos muita dificuldade em abrir mão do que nos sabe bem, do que nos dá conforto. E as pessoas têm a ingenuidade de pensar que não lhes vai chegar. E às vezes não chega, porque as vidas são curtas. Mas chegará aos filhos, aos netos. Porque a injustiça, a fome, as torturas que infligimos aos que têm menos poder... há uma altura em que a coisa muda. E é terrível. Como sucedeu com o nosso processo de independência. Há uma altura em que é tarde de mais. E em Angola não pode haver dúvida, por mais que a filha do presidente diga que começou a trabalhar muito cedo, ela não pode ter dúvida alguma de que os números da fortuna dela, num país em que a mortalidade infantil é o que é, são obscenos. Não pode haver dúvida sobre isso, não há anestesia nenhuma que te impeça de ver. Mas tens esse poder e não abres mão.

Custa abrir mão quando se tem o poder. Numa entrevista fala da invisibilidade dos negros cá: não se veem na TV, na rua. E fala da "não oportunidade" como a mais grave das discriminações, pior do que chamar preto. Como é que ainda estamos assim, tantos anos depois?

Não são muitos anos. São muitos mas não são muitos. Comparados com outros países são muito poucos. Há 40 e tal anos ainda estávamos, nós, mulheres, com autorização para sair do país. Isto evoluiu muito mas estávamos muitíssimo atrasados. Sou uma otimista, vivemos muito melhor agora. Mas há muito ainda para fazer.

Os EUA nos anos 1960 ainda tinham a segregação racial na lei.

Mas ainda hoje nos EUA há sítios de um racismo absoluto, o Sul... Em termos formais não, porque são muito vigiados. Há o problema de brutalidade policial... Não acho que o facto de haver um presidente negro queira dizer que a questão está resolvida. Sempre achei que não estava. E o fenómeno Trump veio dar-me razão.

Não está resolvida mas fala-se dela. Aqui nem se fala do assunto, como se o problema não existisse.

Mas existe, claro. Há quem diga que aquelas pessoas são invisíveis porque não querem ser visíveis. Mas então porque é que vivem em grupo, em sítios que são dos piores? Porque é que não vão os brancos para lá? Se é igual, não percebo. Mas no outro dia estive num debate sobre racismo na RTP com um negro a dizer que nunca sentiu racismo, nunca se sentiu discriminado.

Também há mulheres que dizem que nunca sentiram o machismo.

Pois. Muitas vezes as vítimas não querem ser vítimas. Sentem-se envergonhadas, que assumir ser vítima é passarem-se um atestado de menoridade. Uma coisa engraçada a propósito de machismo: dizem-me muitas vezes que os meus livros parecem escritos por homens. Que há uma maneira de pensar masculina. E isto tem a ver com o quê? Dizem que há crueza. A maneira como abordo o sexo, por exemplo.

Sim, pode ser muito crua, até cruel. Como em Os Meus Sentimentos, o seu segundo romance.

Mas a vida é cruel. Gostava de não ter matéria para que aquilo fosse tão cruel. Que não fosse assim.

No caso do Retorno, porém, deixou muito do horror fora do livro. Houve um amigo seu - o protagonista do livro é masculino por causa dele - cujo irmão foi morto, uma grávida violada e esventrada. Não usou nada disso.

Porque quando cozinhas, o mais é... Se tens todos os ingredientes à tua disposição e puseres as especiarias todas no prato fica intragável. Aquilo já é um pano histórico único. Os hotéis são a solução mais aberrante que podes imaginar para pôr as pessoas. Já era tão violenta aquela deslocação de meio milhão, se depois ainda puseres uma violada, um morto... Quis mostrar que a perda foi sobretudo afetiva. E que não havia lados. Não houve lados. Aquilo que os negros fizeram depois do 25 de Abril é perfeitamente natural. O decurso de acontecimentos era perfeitamente natural.

Natural no sentido de refluxo, de violência vai, violência vem?

Sim. Era tarde de mais. Fomos agressores e vítimas à vez.

Atribui o sucesso do livro também a não ser um ajuste de contas.

Há uma coisa que não se pode esquecer. Quando o escrevi não imaginava que o tema retornados ia tornar-se tão presente. O que eu tinha dos retornados era um estigma enorme. Fui ver uma casa para comprar em 2009, pouco antes de escrever o livro, e a dona disse: "Sabe, isto está em muito mau estado porque estiveram cá retornados." E eu disse "não, não sei". O estigma estava ainda muito presente. Por exemplo a minha irmã, que sofreu muito mais do que eu, por ser mais velha, só quando publiquei o livro é que pessoas que trabalham com ela há mais de 30 anos souberam que é retornada: nunca disse. A primeira coisa que ouvimos aqui, e ela desatou a chorar, foi "vocês estão todas furadas pelos pretos". Nem percebi o que era aquilo. E é bom lembrar que os brancos que foram para lá, tirando uma minoria, uma casta de fazendeiros, foram em busca de uma vida melhor para os filhos, como iam para França ou para outro lado qualquer.

Foi o caso dos seus pais?

Eles foram por uma história diferente. Porque o meu pai subscreveu a lista de Humberto Delgado e ficou sem direito de voto e zangou-se muito com isto. E porque a minha mãe fugiu com o meu pai... Sou filha de um grande amor. Ela fugiu com o meu pai aos 17 anos. Era filha de uns lavradores muito ricos, quase latifundiários de Trás-os-Montes. E o meu pai não tinha, como dizia o meu avô, onde pendurar a panela. Era um pobretanas.

Como se conheceram?

Era empregado do meu avô. E 11 anos mais velho. Já tinha deixado duas noivas no altar, tinha esse lado doidivanas. E a primeira frase que trocaram - contavam a história à vez - foi o meu pai a pedir-lhe uma faca. A minha mãe tinha ido levar a comida aos trabalhadores. Foi amor à primeira vista. Depois namoraram por cartas, daquelas de pôr debaixo da soleira... Ele pediu a minha mãe em namoro e o meu avô pegou numa caçadeira e disse que o matava. Andaram anos escondidos até que o meu avô arranjou casamento à minha mãe com outro lavador e ela resolveu fugir com o meu pai para a aldeia dele. Um escândalo...

O seu avô não foi buscá-la?

Não, então já estava desonrada. Ela foi de uma coragem... Viveu amancebada muitos anos, porque só se podia casar aos 21, antes disso só com autorização dos pais e o meu avô não deu. Só quando a minha irmã nasceu, para não ser bastarda, o meu avô foi à conservatória dar autorização. E não se viram.

Conheceu esse avô?

Sim. Quando voltei. Não sei se é por isso que gosto de criar personagens, mas consigo sempre compreender. Na estrutura dele aquilo não fazia sentido nenhum. Ele próprio se tinha casado com um arranjo, com a não sei quantas das terras para juntar, era a lógica. Porque é que a minha mãe queria fugir por estar apaixonada? Que era isso de estar apaixonada? Pensava que aquilo era uma paixoneta que passava...

Não tinha lido Shakespeare.

Não, não tinha. Nem os meus pais, que ao princípio nem romantizavam muito isso, era só um facto da vida deles. A minha mãe aliás tinha muita vergonha, medo de nós repetirmos. Já o meu pai, e estou-lhe muito grata, o primeiro conselho que nos deu foi "vocês têm de estudar para não dependerem de ninguém". Isto num homem nascido em 1929 em Trás-os-Montes, de uma família muito remediada, que tinha só a 4.ª classe. E quando viemos para cá, não considerou ficar nem um dia em Trás-os-Montes, porque tinha de ficar em Lisboa para irmos para a universidade. Podíamos não ter pão, não ter roupas, nada - escola connosco.

E lá foi estudar Direito. Porquê ?

Porque já queria ser escritora. E não havendo um curso de escritora percebi que quanto mais me afastasse da literatura... Porque não quis ter uma abordagem técnica, isso eu sabia. Ainda fui advogada três ou quatro anos. E gostava. Podes ser várias pessoas ao mesmo tempo.

Decidiu ser escritora quando, como?

Por causa de Trás-os-Montes. Porque os meus pais, como era a mais nova, tiveram a brilhante ideia, quando chegámos, de me mandarem para casa desses avós que não conhecia. O meu pai ainda não tinha chegado, a minha mãe estava com a minha irmã num hotel, havia pouco dinheiro... E achavam que era para me proteger, que eu tinha mais capacidade de adaptação. Mas foi um erro. Enorme, irreparável.

Deve ter sido brutal.

Foi inimaginável. E em 1975, sozinha. Foi um choque. Frio, as pessoas todas de preto, a viverem com os animais... A palha, o vento. A realidade tornou-se insuportável. Depois não tinha nem pais, nem amigos, nem ninguém. Só tinha aqueles avós que ainda por cima, como a vida nunca faz sentido, estavam doentes os dois. Portanto era feios, porcos e maus no seu esplendor. E eu a filha da filha fugida. Foi tal o choque que eu, que toda a gente dizia que ia ser enorme, não cresci mais. E descobri que era branca. Porque eu era morena e de repente comecei a ver-me branca branca. Ainda fico muito morena quando apanho sol. Mas não sabia que era branca. Não sabia a minha cor.

E começa a escrever lá?

Não. Passei pela fase de chorar todos os dias e depois pensei assim: tenho de tornar a vida melhor. E então comecei a inventar histórias como as de Os Cinco. O meu quotidiano deixava de ser tão violento, porque inventava que um tinha escondido um tesouro na fonte, que havia um crime...

Escrevia-as?

Não, era tudo de cabeça. Tinha um mundo, que se calhar já tinha em Luanda mas não dei conta dele, completamente paralelo, onde acontece quase tudo e é tudo possível. E depois percebi, ao ler outra vez Os Cinco, que era assim que se construíam as histórias. Então quando cheguei cá abaixo à escola (estive lá em cima sete meses e praticamente não havia escola, havia uma carrinha e a telescola) uma das primeiras perguntas que fiz à professora foi qual era o curso para ser escritora. E a professora, lembro-me perfeitamente, com aquele ar bovino, disse "acho que não há curso nenhum. Pode ser qualquer um, ou até nenhum". Fiquei desorientada: então tudo, médico, engenheiro, advogado, tinha curso e a minha vocação tão grande não? Até que vejo num filme um escritor a escrever à máquina. E pensei: é isto. E então comecei uma guerra que me durou um ano e tal com o meu pai para me pagar um curso para aprender a escrever à máquina com os dedos todos. Insisti, insisti e o meu pai caiu no erro de me dizer que se a dona da escola me fizesse um desconto ele pagava. Fui à escola, com muita lata, explicar que precisava de um curso de datilografia e o meu pai não tinha dinheiro. A senhora, que não devia ter muitos alunos e deve ter achado graça, anuiu. Passei o meu verão dos 14 anos, em vez de estar na praia como os outros miúdos todos - morávamos em Cascais -, na escola de datilografia a aprender o meu futuro. E as senhoras muito mais velhas, a estudar para secretárias, perguntavam: que estás aqui a fazer? E eu: quero ser escritora. Toda a gente se ria, mas nem com toda a gente a rir achava que aquilo podia ser ridículo. Só depois percebi que mesmo assim não sabia escrever livros. E foi então que tive a brilhante ideia de ir à biblioteca aprender. Achei que se lesse alguns possivelmente apanhava o jeito. Cheguei lá e vi tantos livros, tantos livros que disse "agora como é que escolho". Ainda por cima não tinha de ser um livro de que gostasse, tinha de ser um que me ensinasse a ser escritora. Estava um grupo de senhoras, possivelmente empregadas da limpeza, a comentar um livro e a chorar e tal. E quem era a escritora? A Corín Tellado, a de cordel. Achei que era a melhor do mundo, porque era a mais requisitada. E comecei a copiar a Corín Tellado.

Copiar?

Punha lá uns pormenores da minha vida, se estava arremelgada por um rapazito punha o nome do rapazito, mudava umas coisas, mas era uma cópia. Durante muito tempo andei a copiar aquelas exclamações, "Meu deus, o que estás aqui a fazer?", todas aquelas coisas muito enfáticas. Mas como era muito pequeno e com letras muito grandes copiava num instante. E então para poupar idas à biblioteca decidi escolher um mais grosso. Quis o acaso que trouxesse para casa o Dostoiévski. O primeiro que li foi Os Demónios. E inquietou-me imenso, aquele vício e aquela realidade que não conhecia. Cheguei a isto de uma forma tão ingénua, à literatura, que quando a senhora da biblioteca me perguntou se gostava dos russos, achei que era dos bolos [ri]. E pensei: como é que ela sabe que gosto muito de russos? Nem sabia que estava a ler um russo. E a senhora resolveu dar-me franceses. Deu-me o Flaubert.

A Bovary.

Sim. E além de começar a vigiar a minha mãe e as vizinhas, porque aquilo abriu-me um mundo - antes achava que namoros eram coisas de solteiras, não me passava pela cabeça que as casadas pudessem andar naquilo -, acho que me definiu também afetivamente.

Como?

Acho que aquela humilhação da Emma me impressionou tanto que há um limite nas relações amorosas que não consigo passar. Ninguém pode pedir a outro que o ame. Nem podes ficar à espera de que te amem. Por muito que tu gostes. Não se pode. E acho que se não tivesse lido aquele livro naquela altura, e não me tivesse impressionado tanto, seguiria mais esse caminho. Há aqui um pé sempre. E situo-o no livro. Se calhar era igualzinha sem o ter lido. Mas a primeira vez que marquei um encontro e o rapazinho não compareceu a primeira coisa em que pensei foi na Emma. Mas lia tudo, nessa altura. O Crime e Castigo, tudo. E não percebia nada.

Há quem ache que Crime e Castigo é sobre o encontro com deus. Escreveu sobre si numa biografia: "tem fé". Que fé?

Eu tenho fé, tenho fé. Mas uma vez numa entrevista escreveram que tenho fé em deus, no sentido católico. Não é isso. Tenho uma educação católica, os meus pais eram católicos, iam à missa ao domingo. Mas dificilmente teria essa fé. Porque a missa é extremamente desagradável, os padres a maioria das coisas que dizem são injustas e iníquas, e sendo uma pessoa tão crítica dificilmente me abeiraria sequer. Tudo isso que é ritual não gosto. E da igreja católica discordo de quase tudo. Mas fiz catequese e até fui catequista. Num bairro de exclusão, o das Marianas, a ensinar crianças a ler.

Aí acreditava no deus católico?

Acreditava no deus em que acredito agora. Que não somos o topo da hierarquia, que somos criatura, e que há uma ideia de bem que me é exterior. A minha ideia de deus é essa. É uma construção minha, que tentei replicar no Retorno. Ele faz esse jogo: se existes, prova que existes. E faz um acordo: o pai vai voltar; se não voltar até ao dia da independência morreu. O pai não volta e ele prefere matar o pai do que matar a ideia do parceiro com quem fez o acordo. Foi mais ou menos o que me sucedeu quando tive um grande acidente aos 15 anos.

Que acidente?

Foi uma parede que me caiu em cima e me partiu toda. Estive muito tempo no hospital e fiquei muito incapacitada. E isso tornou-me uma outra pessoa. É como se tivesse duas vidas. Várias vidas até. Uma vida muito cortada às fatias. E estávamos em 1980, tinha 15 anos, estava a habituar-me aos poucos a estar cá e fiquei toda desfigurada.

Não ficaram marcas visíveis disso. E como é a relação com esse deus? Fala com ele?

Não, não, é só saber que existe. É uma coisa que existe e impõe limites. Porque sendo uma pessoa medianamente inteligente se não acreditasse em deus acho que era a maior criminosa deste mundo.

Há a ideia de um castigo?

Não, não é pelo castigo. É por aspirar a essa coisa. Por me sentir compelida a chegar o mais perto possível. O meu objetivo na vida é causar o menos de sofrimento possível.

Por isso é vegan: não come qualquer produto de origem animal. Quando é que decidiu isso?

De um dia para o outro. A minha vida é sempre assim, antes e depois. E foi uma coisa que até podia ser literária. O olhar de um cão. O que me fez pensar no que andamos aqui a fazer foi o olhar de um cão. Era um cão abandonado que os meus pais recolheram e trataram, e a certa altura o veterinário disse que era impossível. Decidiu-se eutanasiá-lo. E eu, claro, não queria ir. O cão não me era muito próximo, tenho uma memória que nunca mais apaga e sabia que ia ficar com aquilo. Mas por qualquer motivo começou a encostar-se a mim e decidi que ia com ele até ao veterinário e depois não assistia. Mas lá, pior, pôs a cabeça sobre o meu colo, de forma impositiva. Tentaram tirá-lo e ele insistia. E eu disse: fico. Foi muito pacífico, muito belo mas naquele momento entre levar a injeção e morrer ele inclinou a cabeça para mim, com um olhar... O olhar dos cães é muito expressivo, mas era um olhar inquietante. E eu, durante um ano, dois, fiquei com o olhar do cão. Intrigou-me. E um dia estava naquelas minhas defesas - das mulheres, dos negros, dos ciganos, de todos os excluídos - e percebi: "Há aqui um grupo enorme de desprotegidos que nem sequer considero, que são os outros animais." E de repente o olhar do cão fez-me sentido. Como se um ser não falante me dissesse: nós existimos, estamos aqui. E percebi, que por mais que adorasse a carne assada da minha mãe, por mais que adorasse queijo...

Mas é um esforço, ser vegan.

Não é difícil, difícil é ser animal. E a minha vida está cada vez mais facilitada, já há tofu no Pingo Doce. Há 12 ou 13 anos não havia. Já não sou uma lunática, pertenço a um grupo identificado. Mas é muito agressivo socialmente. Porque quando dizes que não comes determinadas coisas por razões éticas está implícito que os outros são trogloditas. Não sei como dizer de outra maneira [ri]. Portanto digo "é uma decisão, é pessoal..." Sou extremamente tolerante, toda a minha família come carne.

Mas que sente quando vê comerem carne ao seu lado?

Que não há prazer que justifique. Aquilo não é um pedaço de carne, é um pedaço de sofrimento que ali está cristalizado. A carne é um vício. E o queijo. Tudo isso são vícios. Agora, foi a decisão da minha vida que me fez mais feliz. Porque de tudo aquilo de que falámos - exclusão, etc. - não podes fazer mais nada a não ser denúncia ou evitar determinados comportamentos. Em termos gerais não podes fazer nada. Nisto podes fazer uma diferença: podes dizer "não consumo". E é eficaz. Dá-te um poder. Além de achar que de facto é a revolução que está por fazer.

Voltando à escrita: quando começa a escrever coisas suas?

Muito tarde. Na faculdade ainda copiava. Tive a minha fase do realismo mágico, a fase do surrealismo francês [ri]. Ia evoluindo. Depois comecei a escrever. Mas como lia muito, quando lês muito tudo o que fazes é bastante desinteressante.

Hoje consegue viver da escrita?

Viver da escrita é muito relativo. Se for só com os livros, não. Mas consegues viver de atividades conexas, como eles dizem. Conferências, bolsas, residências. E algumas vendas lá para fora, também. Mas infelizmente é tudo no estrangeiro. Somos um país pequeno, somos poucos. Claro, se tivesse decidido ser advogada, ou ter filhos, teria uma vida completamente diferente. Por isso é que na autobiografia digo que há muitos anos matei uma mulher.

Tem essa vertigem de olhar para trás, pensar nas pessoas diferentes que podia ter sido?

Tenho. Acho que me tornei adulta quando percebi que já não teria tempo para ser tudo o que queria ser, que tinha de me focar, ser só uma coisa. Quando percebi que isto era finito, que íamos morrer. Mas tenho muito esse problema da escolha. Que é como se escolhe com a mínima margem de erro. Porque para o passado todos sabemos escolher - que era evidente que era mesmo para ali.

Ou que não era. Pode-se até achar que se errou tudo.

Nos momentos em que penso que errei quase tudo também julgo que acertei muito. E espero. É a espera: quando estou muito feliz nunca fico muito feliz porque penso sempre que vai acabar, não vai durar, não vai ser assim para sempre. Quando estou muito triste também não fico muito triste porque penso: isto não vai durar. Como é o ditado?

Nem há bem que sempre dure nem mal... Diz que a escrita é uma forma de chegar aos outros. E que o "a grande batalha deste ofício de estarmos vivos é a batalha contra a solidão".

Acho que existimos para ser amados. E a minha maneira de ser amada - que eu acho mais eficaz de chegar a que me amem - é através da escrita. No outro dia estava a dizer isso e disseram-me: os livros que escreves são tão violentos, quem é que vai amar-te?[ri] Teve graça essa conversa, eu muito lírica e o interlocutor muito bruto. Mas acho que os meus livros são redentores. Admito que são violentos...

Os Meus Sentimentos, redentor?

Não é que acabe bem, mas há um esforço do bem. Tanto que nos capítulos há um caminho pelas trevas e um caminho pela luz. E aquele fim luminoso na estalagem é uma coisa de paz, não é uma coisa de tristeza. Ainda que as pessoas achem que é a morte. Mas para mim a Violeta não morreu. E há sempre a ideia de que o bem é possível. Isso basta-me como redenção. O que não é possível é modificarmos o que já passou. E aborrece-me cada vez mais a crítica constante ao passado por quem não o viveu: como é que é possível os nazis, como é que é possível não sei quê. É possível porque não são marcianos. E continua a ser possível, não percebo o espanto.

As pessoas gostam de crer que fariam diferente.

Pois, a questão é essa: quando tens de agir. O passado permite-te só criticar, porque não tens responsabilidade nenhuma. É nesse sentido que falo na redenção: o de ter presente que pode ser diferente. Pode parecer lírico, mas é muito sincero: o objetivo da minha vida é mesmo causar o mínimo de sofrimento possível. E não é só na questão dos animais. Mas isso implica uma atenção chata, um desprazer. E por muito que chateie a minha vida e a dos que estão comigo, agradeço não ter essa indiferença. Porque é acima de tudo a indiferença que permitiu todos os crimes com os quais toda a gente se indigna. É o "estamos aqui na nossa vida, temos a nossa casinha, o pãozinho, olha os comboios a passar, que é que levam lá dentro...."

Olha os barcos a naufragar.

Exatamente. Olha, há uns que se afogaram, pois é, coitadinhos, vamos lá para a nossa sopinha. Não podes escolher a indiferença. Dizer "vou ver isto e não vou ver aquilo". Ou vês ou não vês.

A expressão "os meus sentimentos" diz esse dilema e essa ironia.

Sim. E é só da língua portuguesa. Não podes fazer esse trocadilho em mais nenhuma língua. Por exemplo os italianos puseram "as condolências", Holanda, França e Colômbia o nome da Violeta. Fui muito aconselhada a não usar a expressão porque parecia diário de menina parva. Mas acho que calha bem ao livro. Que me deu um trabalhão... Porque não tem condicionais, não tem presentes, não tem futuros. Excluí não sei quantos tempos verbais. E determinou o meu método criativo, que é o mais maluco. Porque o perdi.

Então?

Foi em 2004, para aí. Recebi um e-mail com um palhaço e cliquei no nariz. No dia seguinte tinha o computador todo preto. Chamei um técnico, ele disse que era impossível, e eu, que ainda era casada na altura, disse ao meu marido: ou esqueço isto, esqueço a Violeta de vez, ou reescrevo de memória, enquanto está fresco. Porque nunca mais vou ser capaz de estar aos bocadinhos a escrever a Violeta, porque agora já sei tudo, passei anos com este livro. Como com o que estou a escrever agora. E como vivia com alguém conseguia ter as coisas todas asseguradas e fechei-me a escrever durante um mês.

Como se fosse uma história que viveu e a rememorasse.

Exatamente. E depois pensei: gosto mais disto assim. Porque toda a palha de que não me consigo livrar, as metáforas pirosas, quando estás a escrever de memória esqueces, porque não é importante. E agora faço sempre isso: apago tudo. Já tentei não o fazer, mas não fica bem. É horrível, mas assim só fica o que me parece essencial.


Entrevista de Fernanda Câncio


(Diário de Notícias, 17 Agosto 2016)



segunda-feira, 6 de maio de 2019

Entrevista a Dulce Maria Cardoso (Público, 17-09-2015)

Fotografia de Enric Vives-Rubio


Entrevista a Dulce Maria Cardoso realizada por Kathleen Gomes, e publicada no diário Público, Cultura - Ípsilon no dia 17 de setembro de 2015.


"Há retornados que acham que sou uma traidora"

O romance de Dulce Maria Cardoso sobre a chegada dos retornados a Portugal não pára de ser reeditado. Era de esperar que esse sucesso editorial se devesse sobretudo a quem passou pela experiência descrita em O Retorno. Mas muitos retornados nem conhecem o livro.


Dulce Maria Cardoso não consegue estar muito tempo ao sol. A pele é tão clara que ela parece alguém que precisa de ser salva. Perdeu “a cor toda” há 40 anos quando veio de Angola, rapidamente e em força. “Era muito morena, estava sempre ao sol. Quando cá cheguei fiquei branca. Sou muito branca, que era uma coisa que desconhecia acerca de mim.”

Aconteceu-lhe outra coisa quando chegou a Portugal. “Toda a gente dizia que eu ia ser enorme. Cheguei cá e nunca mais cresci”, ri-se. “Fiquei convencida durante muito tempo que foi o frio da metrópole que me impediu a ascensão. Fez aquela coisa que acontece aos bolos quando saem do forno.”

Sem o frio da metrópole, e sem toda essa experiência de ser levada pelos acontecimentos como uma enxurrada, talvez não se tivesse tornado escritora. “Tinha 11 anos. Fui a minha primeira personagem. Achei sempre: vou contar isto, vou contar isto.”

Publicado há quatro anos, O Retorno tornou-se “um pequeno monstro”, diz a autora, como se o êxito editorial ainda hoje a surpreendesse. O romance vai na nona edição. “É um livro que estamos sempre a vender e a reimprimir”, diz Bárbara Bulhosa, editora da Tinta-da-China, que publicou O Retorno. “É um daqueles livros que vai ficar. Tornou-se um bocado obrigatório.”

Não era previsível. A literatura sobre o tema – o retorno dos colonos a Portugal durante um processo de descolonização mais improvisado do que preparado – era praticamente inexistente. “Porque é que há tão pouco material escrito sobre estes retornados? Foram meio milhão de pessoas, com os seus descendentes todos, uma coisa que foi certamente traumática para a maior parte”, diz Dulce Maria Cardoso. “Meio milhão é muita gente para um país desta dimensão. Toda a gente lidou com retornados. Quanto mais não seja, ouviu falar. Achei que era um tema que não tinha interesse nenhum, já que ninguém tratava dele.”

O livro foi editado pela Tinta-da-China, que até então nunca tinha publicado ficção. “Era mais do que normal a coisa não correr bem.”

Há um antes e um depois de O Retorno no percurso literário de Dulce Maria Cardoso. Apesar do reconhecimento crítico, apesar dos prémios, apesar da sua inclusão em antologias estrangeiras, antes do quarto romance não era uma escritora muito lida. Antes, não era abordada no supermercado. “Desculpe estar a olhar tanto para si, mas gostei muito do seu livro.” Isto passou-se num Pingo Doce.

“Os retornados tinham sido muito mal recebidos [em Portugal]. Ser retornado era um estigma. Nunca imaginei que o estigma, de repente, pudesse passar a ser uma mais-valia”, diz Dulce Maria Cardoso.

O passa-palavra foi determinante para o êxito de O Retorno. “As pessoas gostaram muito e depois ofereceram o livro. No outro dia, conheci um leitor que me disse: ‘Gostei muito, mas já recebi três. Chega.’”

Seria de esperar que a popularidade se devesse sobretudo a quem passou pela experiência descrita no livro – uma ficção inspirada na história pessoal de Dulce Maria Cardoso, mas que de maneira nenhuma se reduz a ela – e se reconheceu (“a questão da solidão: alguém viveu o mesmo que eu”).

A realidade é mais complexa. “Acho que o livro fez muita diferença para as pessoas que não sabiam o que se tinha passado. Pessoas que têm agora 30 anos, que não eram vivas no 25 de Abril, ficaram muito agradecidas. Tenho recebido muitas mensagens”, diz a autora.

Existe um outro grupo de leitores, “não muito grande”, como a mulher, uma retornada, que comprou três exemplares do livro para oferecer aos filhos. “Ela disse-me: ‘Nunca consegui explicar aos meus filhos o que eu passei e este livro diz exactamente como foi, portanto quero oferecer um a cada um.’ Como uma espécie de herança. Isso comoveu-me”, conta Dulce. O Retorno permitiu a algumas pessoas, filhos de retornados, compreenderem a raiva dos pais. Reacções que chegaram à autora: “Percebi finalmente por que é que o meu pai era tão amargo.” Ou: “Agora percebo porque é que a minha mãe detestava tanto a metrópole.”

“Fico contente por o livro ter apaziguado pessoas”, diz Dulce Maria Cardoso.

Nem sempre. “Há retornados que acham que sou uma traidora. Porque eu ponho os dois lados. E eles não têm dois lados. No livro somos todos bons e maus à vez. Para eles, não: havia os maus e os bons.”

Muitos retornados nem sequer leram ou conhecem o livro. Bárbara Bulhosa, editora de O Retorno, conta que uma amiga lhe disse que a mãe “não pode ler este livro” porque seria demasiado doloroso.

“Essas pessoas perderam uma coisa, um modo de viver, querem é tentar resgatar esse modo de viver”, diz Dulce Maria Cardoso. “Eu não quero resgatar esse modo de vida, felizmente ou infelizmente já sei que é impossível o resgate. O colonialismo não devia ter existido, nada daquilo devia ter acontecido. Mas essas pessoas continuam a querer aquilo. Acham que era possível ter-se resolvido de outra maneira. Não são más pessoas, são só pessoas postas em circunstâncias… É o que eu digo: se eu tivesse sido alemã na década de 30 e 40 possivelmente era nazi. A maioria era, porque é que eu não seria?”

Não se pode ter nostalgia de África sem a nostalgia do império ou do colonialismo?

“Não. Aquela era a realidade onde foram mais felizes e mais prósperos. Investiram muito. Também foram vítimas. Quando Salazar disse ‘para Angola, rapidamente e em força', estas pessoas foram e trabalharam muito, construíram muito. Sentiram-se muito lesadas depois. Compreendo a raiva, compreendo o desespero, compreendo isso tudo. Por isso é que foi tão difícil escrever O Retorno. Ainda por cima sendo eu filha dessas pessoas, que perderam tudo de um momento para o outro.”

Dulce não fez pesquisa para o livro, não procurou outros retornados, nem sequer falou com a sua própria família. “Sou a mais nova da família, mas sou eu quem se lembra de mais coisas. A minha irmã, durante 20 anos ou mais, negou que era retornada. Por isso é normal que não se lembre, que tenha apagado tudo. A minha mãe lembra-se de ter perdido tudo mas também não se lembra de mais nada.” O pai já não era vivo quando escreveu O Retorno. “Eu era muito miúda, tinha uma idade que me permitia decorar sem julgar. Portanto, pude congelar tudo.”

Foi só depois de publicar O Retorno que soube da existência de grupos de retornados, comunidades revivalistas forjadas no Facebook, onde partilham fotografias e memórias pessoais. Dulce chegou a frequentar encontros de confraternização de alguns grupos, eventos com a duração de um dia inteiro, incluindo almoço, jantar, baile, desfile de trajes com panos africanos. Em 200 pessoas, quatro ou cinco saberão da existência de O Retorno. Durante um período, Dulce Maria Cardoso pensou fazer um livro baseado nas memórias dessas pessoas. “Depois desisti desse projecto porque comecei a ficar muito farta do tema. Por outro lado, não tinha testemunhos que pudessem fazer uma grande diferença. Dizem quase todos a mesma coisa: Que a vida era maravilhosa lá. Falam ainda como se estivessem lá. Sem perceber que estava tudo errado desde o início. Conversas absolutamente colonialistas, racistas. ‘Ficaram lá com aquilo e estragaram tudo, nunca souberam fazer nada’. Quando me perguntam se havia racismo em Luanda, eu digo: ‘Mas se há racismo em 2015 em Lisboa, como é que em 1975 não havia?’”

Passados 40 anos, é comum falar-se do retorno como um processo positivo, elogiando a capacidade do país para integrar meio milhão de pessoas de um dia para o outro. “Depende do que estamos a comparar”, sublinha a escritora. “Não houve mortos nem sangue, ou poucos houve, porque os que se suicidaram e os que enlouqueceram não fazem parte dos números. Desse ponto de vista, foi pacífico. Agora, sermos bem recebidos no sentido de haver igualdade de oportunidades, de haver curiosidade em relação ao outro? Isso não houve, de todo”, diz.

Os retornados foram recebidos com desconfiança e hostilidade. “Houve retornados que se integraram muito silenciosamente e sem problema algum. O estigma não era tanto ser retornado. O estigma era a pobreza. Os que vieram sem nada. Havia em Cascais uma família de retornados que tinha uma grande vivenda no bairro do Rosário, que faziam festas ao fim-de-semana com merengues. E eram exóticos. Eram maravilhosos. Porquê? Porque tinham bastante dinheiro. Faziam festas enormes. Eram altos, morenos. As raparigas andavam sempre de fato de banho a passear-se ao pé da piscina. Fumavam. Toda a gente queria ser amiga daqueles retornados. Os retornados de que eu falo e o estigma associado são os retornados dos hotéis, das filas da Caritas, das filas da Cruz Vermelha. Os retornados foram meio milhão ou mais, mas foram realidades diversas. Houve funcionários públicos que até ficaram numa situação melhor cá. A única coisa era: não tinham o clima, não tinham as lagostas, não tinham o pôr-do-sol de lá, aquelas coisas que eles inventam e que também não são verdade. Havia imensas enxurradas, havia imensa lama.”

Quando foi para a escola em Portugal, Dulce Maria Cardoso foi colocada numa fila à parte, juntamente com outras crianças que tinham vindo das ex-colónias, que supostamente tinham problemas de aprendizagem. “Durante um ano lectivo inteiro, houve uma professora de matemática que nunca chamou um de nós pelo nome. Passou o ano todo a dizer: ‘Um dos retornados que responda.’”

Lembra-se de ter sido convidada pela primeira vez para uma festa de aniversário três anos depois de chegar a Portugal. “Havia festas constantes. Eu nunca ia. E não era porque não quisesse. Não era porque não fosse afável. Eu era muito afável e muito sorridente. Era muito boa aluna. Era muito concorrida para os trabalhos de grupo, por exemplo. Mas continuava a não ir às festas. Isso diz muito sobre a integração.”

Se a integração foi um “sucesso”, isso “partiu da vontade dos retornados”, defende. “Acho que houve uma decisão do género: ‘Nós temos de viver cá e somos menos.’” Ao contrário das matrículas de automóveis portuguesas, com duas letras, as matrículas das ex-colónias continham três letras.

“Quando passávamos, os carros com as três letras, buzinávamos uns aos outros. ‘Estamos aqui, estamos aqui…’ Era um sinal de reconhecimento. Depois deixámos. E depois as conversas já não eram no sentido de ‘eles’ e ‘nós’. Até porque os retornados queriam montar negócios e sabiam que tinham de contar com os consumidores de cá.”

Não é um discurso de vitimização. “Se daqui a 20 ou daqui a 40 anos uma ucraniana escrever um livro sobre como foi difícil a integração em Portugal, eu sou uma da metrópole. Não conheço nenhuma ucraniana. As únicas que conheço são empregadas de amigas. Não tenho uma amiga que tenha uma amiga ucraniana. Mas eles existem, estão cá, têm negócios.”

Uma sociedade que se recusa a olhar criticamente para o passado – e que ainda não passou da infância dessa discussão – está condenada a perpetuar os erros. Ao fim de 40 anos, começa a deixar de haver atenuantes. “Qualquer dia temos tantos anos de democracia como de ditadura. E o mundo mudou muito.”


Entrevista de Kathleen Gomes (Público, 17-09-2015)




domingo, 5 de maio de 2019

De uma entrevista com Clarice Lispector


[De uma entrevista dada por Clarice Lispector à Marisa Raja Gabaglia]

-Você tem paz, Clarice?

-Nem pai nem mãe.

-Eu disse “paz”.

-Que estranho, pensei que tivesse dito “pais”. Estava pensando em minha mãe alguns segundos antes. Pensei - mamãe - e então não ouvi mais nada. Paz? Quem é que tem?



(Fonte: Pensador)



quinta-feira, 2 de maio de 2019

O retorno (Dulce Maria Cardoso)



Mas na metrópole há cerejas. Cerejas grandes e luzidias que as raparigas põem nas orelhas a fazer de brincos. Raparigas bonitas como só as da metrópole podem ser. As raparigas daqui não sabem como são as cerejas, dizem que são como as pitangas. Ainda que sejam, nunca as vi com brincos de pitangas a rirem-se umas com as outras como as raparigas da metrópole fazem nas fotografias.

A mãe insiste para que o pai se sirva da carne assada. A comida vai estragar-se, diz, este calor dá cabo de tudo, umas horas e a carne começa a esverdear, se a ponho na geleira fica seca como uma sola. A mãe fala como se hoje à noite não fôssemos apanhar o avião para a metrópole, como se amanhã pudéssemos comer as sobras da carne assada dentro do pão, no intervalo grande do liceu. Deixa-me, mulher. Ao afastar a travessa o pai derruba a cesta do pão. A mãe endireita-se e ajeita as côdeas com o mesmo cuidado com que todas as manhãs ordena os comprimidos antes de os tomar. O pai não era assim antes de isto ter começado. Isto são os tiros que se ouvem no bairro acima do nosso. E as nossas quatro malas por fechar na sala.

Ficamos num silencio tão ceremonioso que o barulho da ventoinha surge anormalmente alto. A mãe pega na travessa da carne e serve-se com gestos contidos que costumava usar com as visitas. Quando pousa a travessa na mesa demora a mão sobre a toalha das dálias. Agora já não há ninguém para visitar-nos mas mesmo antes de isto ter começado era raro termos visitas. A minha irmã diz, ainda me lembro do dia em que aquele galo, o galo de louça que está na bancada de pedra mármore, caiu no chão e lascou a crista. Insistimos em pormenores insignificantes porque já começamos a esquecer-nos. E ainda nem saímos de casa. O abião é um bocadinho antes da meia-noite mas temos de ir mais cedo. O tio Zé vai levar-nos ao aeroporto. O pai vai lá ter depois. Depois de matar a Pirata e de deitar fogo à casa e aos camiões. Não acredito que o pai mate a Pirata. Também não acredito que o pai deite fogo à casa e aos camiões. Acho que diz isso para não pensarmos que eles se ficam a rir. Eles são os pretos. No entanto o pai comprou bidões de gasolina que estão guardados no anexo. Talvez seja mesmo verdade, talvez o pai consiga matar a Pirata e queimar tudo. A Pirata podia ficar com o tio Zé que não se vai embora porque quer ajudar os pretos a formar uma nação. O pai ri-se sempre sempre que o tio Zé fala na grandiosa nação que se erguerá pela vontade de um povo oprimido durante cinco séculos. Mesmo que o tio Zé prometesse que tomava conta da pirata não servia de nada, o pai acha que a única coisa que o tio Zé sabe fazer é desonrar a família. E é capaz de ter razão.

Dulce Maria Cardoso

Início do seu romance O Retorno, Edições Tinta da China, 2012.