segunda-feira, 30 de novembro de 2020

Fernando Assis Pacheco - O tipo que se ia casar



O TIPO QUE SE IA CASAR

Parece que estas crónicas têm de ser escritas em períodos relativamente curtos - garante-me a minha amiga e colega de jornal Ângela Caires, mais metida do que eu nos meandros da Rádio.

"Usa períodos pequenos" - diz-me ela. - "Não percas o fôlego a meio de uma frase. Se fizeres frases longas, falta-te o ar e as pessoas depois perguntam se és asmático."

É o que algumas pessoas me têm já perguntado:

"O senhor é asmático?"

Respondo que não, que não sou, mas a minha mulher e uma das minhas filhas são. Conheço os seus momentos de crise, os seus terrores noturnos, as olheiras com que acordam. Tudo isto é terrível e estraga às vezes a boa disposição do cronista, pois nunca ninguém pôde viver sem atenção ao outro, atenção ao próximo, ao que faz vida ao lado: partilhamos as venturas e desventuras alheias na proporção direta da nossa generosidade.

Mas agora que eu já sei que na Rádio se usam períodos curtos, e como não pretendo massacrar o outro com histórias tristes, ou simplesmente melancólicas, vou então contar um conto alegre de um tipo que se foi casar.

O tipo que se foi casar estava imponente de palavra na Messe de um quartel de Cavalaria no Alentejo (olha o período longo, Assis Pacheco!). O tipo que se ia casar, chateado porque no Alentejo em 1963 era uma pasmaceira dos demónios, resolveu convidar para lanchar uma data de amigos. Foram lanchar a um cafezinho que havia em Estremoz, lanche abundante, tipo febras de porco com vinho de Borba e amarelinhas de Veiros, e sucedeu que toda a gente ficou com um grão na asa. Conversa daqui, palestra dali, o grupo ainda teve tempo para mais uma prosa e mais umas amarelinhas noutro cafezinho (olha o período longo!), que aquilo no Alentejo há 14 anos parecia, não era mas parecia, parecia reduzido a cafezinhos e amarelinhas e amigos do peito que nos ajudavam a esquecer o raio da guerra de Angola - aqui é que saiu um período longo, paciência ó Ângela, são coisas da lembrança.

Acabados os dois sucessivos lanches nos dois cafezinhos, o tipo que ia casar disse para a ilustre e tropeçante companhia:

"Bom, malta, agora tenho de passar pela Conservatória."

"E vais a pé, claro" - comentou um dos da malta.

"Não" - cortou logo o tipo que ia casar -, "queres que vá montado nalguma mula do quartel?"

Não era isso, volveu o parceiro. Nada disso. Apenas era ele de ideia que se pedisse uma bicicleta ao cabo Barra, felizmente vivo para não desmentir este conto. O cabo enfermeiro Barra, companheirão das dúzias, emprestava a "burra" daí a cinco minutos. Pneus cheios, guiador sem torção, tudo ótimo, ala! E lá foi o tipo que ia casar direito à Conservatória do Registo Civil, onde o aguardava um funcionário por causa dos papéis do casamento.

Ah, e aqui eu peço muita, muita desculpa à Ângela Caires, o tipo que ia casar era eu, e estava imensamente alegre e bruto e sem equilíbrio em cima da bicicleta e andava só aos esses e em Estremoz diziam quando eu ia passar "olha, o aspirante já vai lindo", sem saberem que eu ia realmente lindo, mas lindo de contente, não lindo de copos, que são coisa de somenos e não ocupam uma vida. Eu voava, rodava nas nuvens, cantava por dentro, e agora estou-me nas tintas para o período curto - há bebedeiras dramáticas e insuportáveis mas aquela era leve, subitamente simultaneamente para rir e chorar (porque havia uma lágrima pendente do monco do aspirante de Cavalaria 3, bolas, um aspirante só casa uma vez, pensava eu, que só casei uma vez e definitivamente com a mesma imagem de mulher).

Na Conservatória esperava-me um silêncio gelado.

"Trouxe as certidões?"

Tinha trazido as certidões.

"Importa-se de assinar?"

"Sim, senhor."

Acabei as assinaturas, agradeci e preparava-me para sair quando um empregado velho para aí chefe dos mangas de alpaca de turno me admoestou:

"Não é estado, senhor aspirante."

Tentei a graça:

"Realmente solteiro não é estado."

E ele: "Estado etilizado."

Apeteceu-me ser mal-educado. Descortês. Chato. Sou o contrário disso quando quero. Desencostei a bicicleta do balcão da Conservatória e saí.

Entrar de bicicleta numa Conservatória do Registo Civil equivalia a um desrespeito qualquer que me ia valendo uma punição militar. As pessoas, se eu lhes explicasse o sucedido, não acreditariam. E talvez o burguesinho século XIX as defendesse: um aspirante a "bicicletear" daquela maneira!

Enfim, lá me deram os papéis, lá casei, lá fui para Angola, lá vim de Angola, lá faço eu crónicas para a RDP, e a menina com quem eu casei às vezes prega-me cá uns sustos com a asma que eu até ando de roda. Ela e a filha. Mas a família no resto é alegre. Não sei se terá herdado o meu ar circense montado na bicicleta do cabo Barra, o companheirão das dúzias. Acho que sim.

Acho eu que tenho de achar que sim. Herdar os repentes de intolerância é que é para se corrigir, mesmo em períodos longos de prosa doméstica.

Deixo-vos um "bom-dia" no pedal deste domingo.

Fernando Assis Pacheco


CRÓNICAS RADIOFÓNICAS INÉDITAS DE FERNANDO ASSIS PACHECO

Em apenas cinco minutos, num programa matinal de domingo para a Radiodifusão Portuguesa, entre 1977 e 1978, Fernando Assis Pacheco seguiu com o ouvinte por histórias sobre futebol de botões, o dia em que se foi casar de bicicleta, viagens de eléctrico, aldrabões, e até lançou adivinhas. As crónicas deste livro, até agora inéditas, foram reunidas a partir de folhas dactilografadas que o autor guardou.

«O cronista é um grande contador de histórias. E escreve as crónicas radiofónicas com o mesmo cuidado que põe na prosa literária, na poesia ou na escrita quotidiana para os jornais. Cabem-lhe os domingos da Crónica da Manhã e Fernando Assis Pacheco escreve sempre a pensar nos ouvintes anónimos que estão de rádio ligado a essa hora. Finge estar vocacionado para "chalacear sobre coisíssima nenhuma", por formação coimbrã. Mas encontra sempre bons motivos para ocupar os minutos de rádio semanais. Nem precisa de procurar assunto, porque "a vida, a vida insidiosa e metediça, a vida piolho na costura, comichão na pele, assombração inesperada, a vida afinal está sempre a electrizar-nos"». — João Pacheco, Prefácio.

Da página da editora Tinta da China (Janeiro de 2017)


"Dar cinco minutos às crónicas inéditas de Fernando Assis Pacheco", de João Céu e Silva  (DN, 27 de janeiro de 2017)

"Salvé, Fernando Assis Pacheco", de Francisco Louçã, (Público, 31 de janeiro de 2017)


Assis Pacheco de bicicleta em Pardilhó



Fernando Pessoa / Álvaro de Campos - Poema em linha recta



Já tinhamos ouvido aqui este poema do heterónimo pessoano Álvaro de Campos em 2013. Agora, outra versão:

Osmar Prado recitando "Poema em linha reta" (Fernando Pessoa), em cena de O Clone (2002)


POEMA EM LINHA RECTA

Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.

E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.

Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe - todos eles príncipes - na vida...

Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,

Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?

Então sou só eu que é vil e erróneo nesta terra?

Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos - mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que tenho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.

Álvaro de Campos, heterónimo de Fernando Pessoa




quinta-feira, 26 de novembro de 2020

Fernando Pessoa - A morte é a curva da estrada

Dito por Natália Luiza


A morte é a curva da estrada,
Morrer é só não ser visto.
Se escuto, eu te oiço a passada
Existir como eu existo.

A terra é feita de céu.
A mentira não tem ninho.
Nunca ninguém se perdeu.
Tudo é verdade e caminho.

23-5-1932

Fernando Pessoa



segunda-feira, 23 de novembro de 2020

Eugénio de Andrade - Os amigos


Fotografia de Luiz Felipe Sahd

 

OS AMIGOS

Os amigos amei
despido de ternura
fatigada;
uns iam, outros vinham,
a nenhum perguntava
porque partia,
porque ficava;
era pouco o que tinha,
pouco o que dava,
mas também só queria
partilhar
a sede de alegria –
por mais amarga.

Eugénio de Andrade 

 

 

quinta-feira, 19 de novembro de 2020

Reinaldo Ferreira - O Futuro

 

Fotografía em The Delagoa Bay World

 

O FUTURO

Aos Domingos, iremos ao jardim.
Entediados, em grupos familiares,
Aos pares,
Dando-nos ares
De pessoas invulgares,
Aos Domingos iremos ao jardim.
Diremos nos encontros casuais
Com outros clãs iguais,
Banalidades rituais
Fundamentais.
Autómatos afins,
Misto de serafins
Sociais
E de standardizados mandarins,
Teremos preconceitos e pruridos,
Produtos recebidos na herança
De certos caracteres adquiridos.
Falaremos do tempo,
Do que foi, do que já houve...
E sendo já então
Por tradição
E formação
Antiburgueses
- Solidamente antiburgueses-,
Inquietos falaremos
Da tormenta que passa
E seus desvarios.

Seremos aos domingos, no jardim,
Reaccionários

Reinaldo Ferreira (filho)


segunda-feira, 16 de novembro de 2020

Antero de Quental - O Palácio da Ventura

Gravura de Doré

 

O PALÁCIO DA VENTURA

Sonho que sou um cavaleiro andante,
Por desertos, por sóis, por noite escura,
Paladino do amor, busco anelante
O palácio encantado da Ventura!

Mas já desmaio, exausto e vacilante
Quebrada a espada já, rota a armadura...
E eis que súbito o avisto, fulgurante
Na sua pompa e aérea formosura!

Com grandes golpes bato à porta e brado:
Eu sou o Vagabundo, o Deserdado...
Abri-vos, portas d'ouro, ante meus ais!

Abrem-se as portas d'ouro com fragor...
Mas dentro encontro só, cheio de dor,
Silêncio e escuridão - e nada mais!

Antero de Quental


sexta-feira, 13 de novembro de 2020

Manoel de Barros - "No caminho, as crianças me enriqueceram mais do que Sócrates..."


Fotografia de Xavier Donat

 

No caminho, as crianças me enriqueceram mais do que Sócrates. Minha imaginação não tem estrada. E eu não gosto mesmo de estrada. Gosto de desvio e de desver.

Manoel de Barros numa carta a José Castello



segunda-feira, 9 de novembro de 2020

Fernando Pinto do Amaral - Zeitgeist

Sem título (1997) - António Dacosta (1914-1990)


Zeitgeist

Os meus contemporâneos falam muito
e dizem: «Então é assim»,
com o ar desenvolto de quem se alimenta
do som da própria voz, quando começam
a explicar longamente as actuais tendências
das artes ou das letras ou das sociedades
a pouco e pouco iguais umas às outras
neste primeiro mundo em que nascemos,
agora que o segundo deixou de existir
e que o terceiro, mais guerra, menos fome,
continua abstracto, em folclore distante.

Parece que está morta a metafísica
e que a verdade adormeceu, sonâmbula,
nos corredores vazios onde, às escuras,
se vão cruzando alguns milhões de frases
dos meus contemporâneos. Todavia,
falam de tudo com o entusiasmo
de quem lança «propostas» decisivas
e percorre as «vertentes» de novos caminhos
para a humanidade, enquanto saboreiam
a cerveja sem álcool, o café
sem cafeína e sobretudo
o amor sem amor, para conservarem
o equilíbrio físico e mental.

Os meus contemporâneos dizem quase sempre
que não são moralistas, e é por isso
que forçam toda a gente, mesmo quem não quer,
a ser livre, saudável e feliz:
proíbem o tabaco e o açúcar
e se por vezes sofrem, tomam comprimidos
porque a alegria é uma questão de química
e convém tê-la a horas certas, como
o prazer vigiado por preservativos
e outros sempre obrigatórios cintos
de segurança, pra que um dia possam
sentir que morrem cheios de saúde.

Quando contemplo os meus contemporâneos
entre as conversas trendy e os lugares da moda,
«tropeço de ternura», queria ser
plo menos tão ingénuo como eles,
partilhar cada frémito dos lábios,
a labareda vã das gargalhadas
pla madrugada fora. No entanto,
assedia-me a acedia de ficar
assim, mais preguiçoso do que um Oblomov
à escala portuguesa — ó doce anestesia
a invadir-me o corpo, a libertar-me
desse feitiço a que se chama o «espírito
do tempo» em que vivemos, sob escombros
de um céu desmoronado em mil pequenos cacos
ainda luminosos, virtuais
estrelas que se apagam e acendem
à flor de todos os écrans
que os meus contemporâneos ligam e desligam
cada dia que passa, nunca se esquecendo
de carregar nas teclas necessárias
para a operação save
e assim alcançarem a eternidade.


Fernando Pinto do Amaral

leyapoemas, jl
2009


(Lido em canal de poesia)


Nota. Zeitgeist (pronúncia: tzait.gaisst) é um termo alemão cuja tradução significa espírito da época, espírito do tempo ou sinal dos tempos. O Zeitgeist significa, em suma, o conjunto do clima intelectual e cultural do mundo, numa certa época, ou as características genéricas de um determinado período de tempo.

(Wikipédia)



sexta-feira, 6 de novembro de 2020

António Osório - Amo-te

Fotografía de Piero/fiume azzurro


AMO-TE

Amo-te
com pressa
de não acabar o amor.

António Osório

O lugar do amor (1981)

Poema lido no blogue Acontecimentos, de António Cícero.


domingo, 1 de novembro de 2020

Adélia Prado - As mortes sucessivas



AS MORTES SUCESSIVAS

Quando minha irmã morreu eu chorei muito
e me consolei depressa. Tinha um vestido novo
e moitas no quintal onde eu ia existir.
Quando minha mãe morreu
me consolei mais lento.
Tinha uma perturbação recém-achada:
meus seios conformavam dois montículos
e eu fiquei muito nua,
cruzando os braços sobre eles é que eu chorava.
Quando meu pai morreu
nunca mais me consolei.
Busquei retratos antigos, procurei conhecidos,
parentes, que me lembrassem sua fala,
seu modo de apertar os lábios e ter certeza
Reproduzi o encolhido do seu corpo
em seu último sono e repeti as palavras
que ele disse quando toquei seus pés:
´deixa, tá bom assim´.
Quem me consolará desta lembrança?
Meus seios se cumpriram
e as moitas onde existo
são pura sarça ardente de memória.

Adélia Prado

Retirado de Bagagem (1976), o seu livro de estreia.