sexta-feira, 31 de julho de 2020

Hélia Correia - A tentação

Fotografia de Gjorgji Orovcanec


A TENTAÇÃO

Dizei minha mãe, contai-me
Como é feita a tentação?
Será pessoa malina
Que me espreite numa esquina
E me tome o coração?

Que cuidados, que canseiras,
Que portas aperreadas,
Ai senhora, que há la fora
Que nos tem aqui cercadas?

Que malas artes se escondem
Sob uma saia comprida?
O que há dentro de mim
Que me faz correr assim
Como que um perigo de vida?

Dizei minha mãe, contai-me,
Penas de amor o que são?
Se são penas de penar
Se nos levantam no ar
Como as garras de um falcão?

Se há um beco sem saída
Onde fica a sua entrada?
Ó mãe, contai-me um segredo
Que eu nem sei se tenho medo
Ou se tremo de apressada?

Hélia Correia


quarta-feira, 29 de julho de 2020

Filipa Leal - Nos dias tristes não se fala de aves

Fotografia de Angelica Takche


NOS DIAS TRISTES NÃO SE FALA DE AVES

Nos dias tristes não se fala de aves.
Liga-se aos amigos e eles não estão
e depois pede-se lume na rua
como quem pede um coração
novinho em folha.

Nos dias tristes é Inverno
e anda-se ao frio de cigarro na mão
a queimar o vento e diz-se
- bom dia!
às pessoas que passam
depois de já terem passado
e de não termos reparado nisso.

Nos dias tristes fala-se sozinho
e há sempre uma ave que pousa
no cimo das coisas
em vez de nos pousar no coração
e não fala connosco.

Filipa Leal


Ouvimos a poeta dizer estes versos en Lyrikline.



segunda-feira, 27 de julho de 2020

Luísa Ducla Soares - Tudo numa semana



TUDO NUMA SEMANA

Segunda-feira nasci,
na terça fui para a escola,
na quarta estava casado,
na quinta toquei viola,

na sexta tive três filhos,
no sábado envelheci,
no domingo veio a morte,
dei-lhe um estalo, estou aqui.

Luísa Ducla Soares




quinta-feira, 23 de julho de 2020

Carlos de Oliveira - Vento

Fotografia de Maria Teresa Teixeira


VENTO

As palavras
cintilam
na floresta do sono
e o seu rumor
de corças perseguidas
ágil e esquivo
como o vento
fala de amor
e solidão
quem vos ferir
não fere em vão,
palavras.

Carlos de Oliveira




segunda-feira, 20 de julho de 2020

Manuel de Freitas - Café Schiller

Cafe Schiller Bar, Rembrandtplein, Amsterdam.
Fotografia de one-thirteen


CAFÉ SCHILLER

Foi tudo em vão, novamente.
Estava a muitos quilómetros de Amsterdão,
se é que me percebes, embora gostasse
das riscas negras dos sofás, do metal
antigo dos candeeiros, do andar
tão firme de quem servia as bebidas.

Esta mulher vai entrar hoje
no meu passado. Não sei como se chama,
nem me interessa sabê-lo. Sorriu-me,
ou julguei que me sorriu, enquanto eu pagava
dois descafeinados, uma água com gás
e um Jameson que sabia mal, a desamor.
Vou pedir-lhe de troco o esquecimento,
a curta memória da blusa que lhe comprimia
o peito e dava às costas
um jeito irrepetível de prelúdio.

Eu, que vou morrer, desejei-te.

Manuel de Freitas



quinta-feira, 16 de julho de 2020

Manoel de Barros - “No descomeço era o verbo...”

Fotografia de Luis A. Florit


No descomeço era o verbo.
Só depois é que veio o delírio do verbo.
O delírio do verbo estava no começo, lá
onde a criança diz: Eu escuto a cor dos
passarinhos.
A criança não sabe que o verbo escutar não
funciona para cor, mas para som.
Então se a criança muda a função de um
verbo, ele delira.
E pois.
Em poesia que é voz de poeta, que é a voz
de fazer nascimentos —
O verbo tem que pegar delírio.

Manoel de Barros





segunda-feira, 13 de julho de 2020

Hilda Hilst - Poema aos homens do nosso tempo



POEMA AOS HOMENS DO NOSSO TEMPO

Amada vida, minha morte demora.
Dizer que coisa ao homem,
propor que viagem? Reis, ministros
e todos vós, políticos,
que palavra além de ouro e treva
fica em vossos ouvidos?
Além de vossa rapacidade
o que sabeis
da alma dos homens?
Ouro, conquista, lucro, logro
e os nossos ossos
e o sangue das gentes
e a vida dos homens
entre os vossos dentes.

Hilda Hilst


Lido no blogue Rua das Pretas


Hilda Hilst - Obra





sexta-feira, 10 de julho de 2020

Dinis Machado - O que diz Molero



«Molero observa», disse Austin, «que o rapaz escolhia muitas vezes as zonas do globo para onde se dirigia só por causa do som das palavras, foi à Pensilvânia por causa do som, a Pensilvânia não lhe interessava, interessava-lhe a palavra, gostava muito da Polónia por causa disso, e da Gronelândia, e da Itália, e de outras palavras, de preferência esdrúxulas, da família do murmúrio ou da âncora, da cólica ou do primogénito, e também do tímbalo e do crisântemo, do rodízio ou do acéfalo, não só o som da palavra mas também o peso e o contorno e o contorno, a sua seda ou a sua aresta, e das cores que as palavras lhe sugeriam, e do prazer antecipado de poder trabalhar essas palavras no local próprio, descobrir a sua inserção geográfica, atravessou o canal do Panamá por causa do acento tónico no último a, era algo que se lhe afigurava definitivo, claro que muitas vezes os locais não correspondiam ao som, ou à espessura, ou à densidade da palavra, e vá de fazer as correções necessárias, se um país dificilmente pode ser virado do avesso por não corresponder ao que dele se esperava, não se pode arrasar um supermercado para instalar uma floresta, ou subverter o ruído da serração de madeiras com o cantar do rouxinol, ou fazer que os relógios não marquem horas, marquem paixões ou a ausência delas, pode-se, contudo, interpretar esse país através de uma palavra que o resuma aceitavelmente, a palavra, a palavra chamada paisagística,de olhar por alto, ou a palavra iceberguiana, de uma solidez submersa, e então começaram a aparecer nos seus versos países reais com nomes fictícios, ou palavras fundidas umas nas outras, a Dinacócia, por exemplo, metade Dinamarca, metade Escócia, dava-lhe, por estranho que pareça, a Bélgica, e isto nos primeiros versos, onde a alquimia ainda balbuciava, porque depois eram as palavras intermináveis, ondulantes ou tensas, ou os monossílabos secos e brevíssimos, e por aí adiante, Molero procura explicar isto pacientemente a páginas duzentas e setenta e seis e seguintes, leva o seu escrúpulo ao ponto de analisar a influência da cedilha no c da palavra França, tudo isto tem que ver, segundo ele, com a aturada espera a dois que fez com Erculano e com outros percursos de ordem estética que ele, Molero, reconhece aqui e além, e que seria demorado, um pouco improfícuo e algo desnecessário explicar, a não ser que entrássemos, escorregando vertiginosamente, naquilo a que chama grande especulação crítica dos planos inclinados, os declives aí vou eu do subconsciente». Houve uma pausa.

Dinis Machado

Do seu livro O Que Diz Molero (1977)

(Lido em Talvez pensar)




segunda-feira, 6 de julho de 2020

João Pedro Mésseder - Alentejo

Fotografia de Antonino Dias


ALENTEJO

Junta o rio e seu advérbio: nasce um país. Com homens, vinho, um pão difícil.
Tenta pronunciar a palavra como se de uma planície se tratasse; depois a terra interminável, a água na sua escassez. E também o sol. E o amarelo da terra, entre um arco-íris de ocres e castanhos, dispostos com rigor na tela do Verão.
No alto de um pequeno monte, no centro da palavra, descobrirás então outra cor. A forma será a de uma casa coberta de cal. Pronuncia a cor como se a visses pela primeira vez e como se, ao pronunciá-la, o mundo recomeçasse.

João Pedro Mésseder

João Pedro Mésseder (nome literário de José António Gomes) nasceu em 1957, no Porto.





quarta-feira, 1 de julho de 2020

João José Cochofel - “O Verão estala por todos os poros...”

Fotografia de jędrek


O Verão estala por todos os poros
da casca das árvores,
da língua dos cães,
das asas das cigarras,
do bico do peito das mulheres tão acerado
que rasga o céu de calor
com um golpe preciso
de lanceta.

João José Cochofel 

Quatro Andamentos (1964)

In Obra Poética, Lisboa, Caminho, 1988


O autor na Wikipédia, na infopédia, em Lusofonia Poética e na página de Eduardo Lourenço.