quarta-feira, 29 de abril de 2020

Gonçalo M. Tavares - Uma desarrumação no cabelo



UMA DESARRUMAÇÃO NO CABELO

Havia uma desarrumação no cabelo, se tinha
calções eles caíam; puxava-os para cima, não
me penteava.
Se alguma trégua fiz com a infância foi esta:
ainda não uso pente, os calções são calças,
mas continuam a cair. Por delicadeza,
puxo-as para cima.

Gonçalo M. Tavares



segunda-feira, 27 de abril de 2020

Maria do Rosário Pedreira - “As meninas, sentadas sobre o muro...”

Fotografia de Robert Jackson


As meninas, sentadas sobre o muro,
trazem as mãos para a roda dos vestidos:
resguardam-se do vento e, sem saber,
escondem o corpo puro da violência do
amor. Têm boquinhas frescas e vermelhas,
mas nos seus lábios arrepiados de segredos
não pousaram ainda os nomes que as
levarão ao escândalo e à loucura. Nós

já fomos assim; já passamos as mãos
pelo nada dos sentidos e pousámos beijos nas
paisagens. E agora encosta-nos o vento
ao cansaço dos muros e conhecemos apenas
línguas mortas – nomes que, se buscarmos,
teimam em chegar cada vez menos.

Maria do Rosário Pedreira


A Ideia do Fim, livro inédito incluído em Poesia Reunida (2012)



sábado, 25 de abril de 2020

Alexandre O’Neill - Cartinha Aberta ao Major Otelo Saraiva de Carvalho



CARTINHA ABERTA AO MAJOR OTELO SARAIVA DE CARVALHO

O major Otelo Saraiva de Carvalho diz-nos 
que só aceitará «a candidatura por uma 
verdadeira imposição popular».

Raul Rego, in A Luta, 10.5.76


«Imposição popular»,
major Otelo, jamais!
Nos versos, o pé quebrar
não faz mal, vem nos jornais…

Pé quebrado na política,
mais tempo leva a soldar.
Aos que lhe fazem requebros,
mande-os altoduquear.

Sua página está escrita
e dela guarda memória
o povo, que não impõe
as estórias à história.

Em vinte e cinco de Abril
sua página foi escrita.
Não há rasura possível.
É uma página limpa.

E uma página linda,
Otelo, meu capitão!
Que mais quererá ainda
com a palavra «imposição»?

Que venha a vaga de fundo
que o há-de levar ao cume
do tal poder popular?
Presidente, dê-me lume,
vamos mas é charutar…

Alexandre O’Neill


Lido em Coração Acordeão (Alexandre O'Neill), Edição de Vasco Rosa. O Independente, 2004.





sexta-feira, 24 de abril de 2020

Fernando Assis Pacheco - Monólogo e explicação

Assis Pacheco em Angola


MONÓLOGO E EXPLICAÇÃO

Mas não puxei atrás a culatra,
não limpei o óleo do cano,
dizem que a guerra mata: a minha
desfez-me logo à chegada.

Não houve pois cercos, balas
que demovessem este forçado.
Viram-no à mesa com grandes livros,
com grandes copos, grandes mãos aterradas.

Viram-no mijar à noite nas tábuas
ou nas poucas ervas meio rapadas.
Olhar os morros, como se entendesse
o seu torpor de terra plácida.

Folheando uns papéis que sobraram
lembra-se agora de haver muito frio.
Dizem que a guerra passa: esta minha
passou-me para os ossos e não sai.

Fernando Assis Pacheco
(1937-1995)

Catalabanza, Quilolo e volta (1972)


V. A matéria do tempo, de Fernando Ribeiro



quarta-feira, 22 de abril de 2020

José Tolentino Mendonça - Despedimo-nos uns dos outros muitas vezes

Fotografia de Rodrigo Fernandes 8


DESPEDIMOS-NOS UNS DOS OUTROS MUITAS VEZES

                                                              Aos que amaram a Helena e o Daniel

A despedida talvez seja a parte mais difícil da esperança. Não se pode dizer muita coisa. Acho que aprendemos devagar, por vezes com muito custo, por vezes mais serenamente, e ambas as coisas estão certas. Aprendi alguma coisa sobre a arte da despedida com o poeta Tonino Guerra e a sua mulher. Parece que é uma tradição russa (ou pelo menos, eles explicavam-na assim). Antes de partir, ficávamos junto uns dos outros, por uns instantes, em puro silêncio. E depois despedíamo-nos de um modo leve, quase alegre, como se não nos fossemos realmente ausentar. Aqueles instantes de silêncio, porém, tinham atado os nossos corações com uma força que raras palavras teriam. Quando nas despedidas da vida nos parece que ficou, inevitavelmente, alguma coisa ou quase tudo por dizer, é bom pensar naquilo que o silêncio disse, ao longo do tempo, de coração a coração. Talvez o que de mais significativo somos capazes de partilhar não encontra no mundo linguagem melhor do que o silêncio.

Mesmo quando achamos que não nos despedimos, a verdade é que no fundo despedimo-nos muitas vezes. E isso é maravilhoso. A vida deu-nos isso. Termo-nos visto uns aos outros partir e regressar, dizer adeus e olá com a certeza de que nada se interrompe, voltar a ouvir mil vezes a voz dos que amamos, prolongando assim o extraordinário, o interminável encontro.

Precisamos também do socorro de outras palavras, e elas chegam se as quisermos ouvir. Vêm em nosso socorro essas palavras maiores, que não são para compreender talvez, mas que nos seguram enquanto certas despedidas (sobretudo as mais dolorosas) desprendem o seu vazio lentíssimo. Há um poema de Li Bai, um poeta chinês do século VIII, sobre dois amigos que se separam, que tenho entre os textos mais consoladores que li. «A verde montanha estende-se para lá da Muralha do Norte./ Brancas águas cercam a Muralha do Leste./ Quando aqui nos separarmos,/ seremos a erva aquática vogando por grandes distâncias. // As nuvens errantes me farão pensar em quem viaja./ O sol poente me recordará o meu amigo./ Já nos afastamos e agora acenamos com a mão./ E os nossos cavalos, um para o outro, relincham». Há palavras assim (todos temos as nossas) que são o frágil corrimão de corda que nos ampara quando a terra parece que toda se desprende.

Acredito muito naquilo que Raul Brandão deixou escrito: «Nós não vemos a vida – vemos um instante da vida. Atrás de nós a vida é infinita, adiante de nós a vida é infinita. A primavera está aqui, mas atrás deste ramo em flor houve camadas de primaveras de oiro, imensas primaveras extasiadas, e flores desmedidas por trás desta flor minúscula. O tempo não existe. O que eu chamo a vida é um elo, e o que aí vem um tropel, um sonho desmedido que há de realizar-se. E nenhum grito é inútil, para que o sonho vivo ande pelo seu pé».

Porventura o mais fecundo não está na pergunta: «porque é que eles partiram?», mas nessa outra que levaremos a vida a responder, e sempre em total gratidão: «porque é que eles vieram?». 

José Tolentino Mendonça 


(Lido aqui)



segunda-feira, 20 de abril de 2020

Ferreira Gullar - Digo sim

Fotografia de S. Paulo, Cristian Malevic


DIGO SIM

Poderia dizer
que a vida é bela, e muito,
e que a revolução caminha com pés de flor
nos campos de meu país,
com pés de borracha
nas grandes cidades brasileiras
e que meu coração
é um sol de esperanças entre pulmões
e nuvens

Poderia dizer que meu povo
é uma festa só na voz
de Clara Nunes
no rodar
das cabrochas no Carnaval
da Avenida.

Mas não. O poeta mente.
A vida nós a amassamos em sangue
e samba
enquanto gira inteira a noite
sobre a pátria desigual. A vida
nós a fazemos nossa
alegre e triste, cantando
em meio à fome
e dizendo sim
- em meio à violência e a solidão dizendo
sim -
pelo espanto da beleza
pela flama de Tereza
pelo meu filho perdido
neste vasto continente
por Vianinha ferido
pelo nosso irmão caído
pelo amor e o que ele nega
pelo que dá e que cega
pelo que virá enfim,
não digo que a vida é bela

Tampouco me nego a ela:
- digo sim.

Ferreira Gullar


sexta-feira, 17 de abril de 2020

Teixeira de Pascoaes - “Na palavra abysmo..."


A Reforma Ortográfica de 1911 deixou cair o y. A palavra abysmo passou a abismo. Na altura, o escritor Teixeira de Pascoaes, revoltado com a alteração, escreveu: “Na palavra abysmo, é a forma do y que lhe dá profundidade, escuridão, mistério…Escrevê-la com i latino é fechar a boca do abysmo, é transformá-lo numa superfície banal.”


(Fonte: Revista Estante - Fnac; também lemos aí: "Abysmo: como no antigo acordo. A editora de João Paulo Cotrim nasceu em 2011, no abysmo da crise económica. Mas isso, sublinha o fundador, é o que menos importa")



Regressar a Casa com Manuel António Pina (Abysmo, 2015), de Inês Fonseca Santos, em Deus me Livro.



quarta-feira, 15 de abril de 2020

Vitorino Nemésio - Retrato



RETRATO

Cruel como os Assírios,
Lânguido como os Persas,
Entre estrelas e círios
Cristão só nas conversas.
Árabe no sossego,
Africano no ardor;
No corpo, Grego, Grego!
Homem, seja onde for.
Romano na ambição,
Oriental no ardil,
Latino na paixão,
Europeu por subtil:
Homem sou, homem só
(Pascal: «nem anjo nem bruto»):
Cristãmente, do pó
Me levante impoluto.

 Vitorino Nemésio




segunda-feira, 13 de abril de 2020

José Craveirinha - Jacarandás da saudade

Jacarandá em flor em Moçambique (Foto de Patrícia Caldeira)


JACARANDÁS DE SAUDADE

Tempo
de seus passos vindo
pelo tapete de roxas flores
dos jacarandás enfileirados na rua.

Hoje
é eterno o ontem
da silhueta de Maria
caminhando no asfalto da memória
em nebuloso pé ante pé do tempo.

...

Todo o tempo
colar de missangas ao pescoço
sempre o tempo todo
suruma minha suruma da saudade.

Suruma daquela saudade
das flores dos jacarandás
nos passos de Maria.

José Craveirinha



suruma
[Moçambique] folhas de cânhamo utilizadas para fumar, marijuana.
Do maconde chirima, «idem»


sexta-feira, 10 de abril de 2020

Alberto de Serpa- Recreio



RECREIO

Na claridade da manhã primaveril,
Ao lado da brancura lavada da escola,
As crianças confraternizam com a alegria das aves...

A mão doce do vento afaga-lhes os cabelos,
E o sol abre-lhes rosas nas faces saudáveis
- Um sol discreto que se esconde às vezes entre nuvens brancas...

As meninas dançam de roda e cantam
As suas cantigas simples, de sentido obscuro e incerto,
Acompanhadas de gestos senhoris e graves.

Os rapazes correm sem tino e travam lutas,
Gritam entusiasmados o amor espontâneo à vida,
A vida que vai chegando despercebida e breve...

E a jovem mestra olha todos enlevadamente,
Com um sorriso misterioso nos lábios tristes...

Alberto de Serpa





quarta-feira, 8 de abril de 2020

Almada Negreiros - As palavras e a moda



AS PALAVRAS E A MODA

As palavras têm moda. Quando acaba a moda para umas começa a moda para outras. As que se vão embora voltam depois. Voltam sempre, e mudadas de cada vez. De cada vez mais viajadas.

Depois dizem-nos adeus e ainda voltam depois de nos terem dito adeus.

Enfim – toda essa “tourné” maravilhosa que nos põe a cabeça em água até ao dia em que já somos nós quem dá corda às palavras para elas estarem a dançar.

Almada Negreiros
(1893 - 1970)


In A invenção de um dia claro. Lisboa, Assírio & Alvim, 2001



segunda-feira, 6 de abril de 2020

João Guimarães Rosa - Reportagem




REPORTAGEM

O trem estacou, na manhã fria,
num lugar deserto, sem casa de estação:
a parada do Leprosário...

Um homem saltou, sem despedidas,
deixou o baú à beira da linha,
e foi andando. Ninguém lhe acenou...

Todos os passageiros olharam ao redor,
com medo de que o homem que saltara
tivesse viajado ao lado deles...

Gravado no dorso do bauzinho humilde,
não havia nome ou etiqueta de hotel:
só uma estampa de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro...

O trem se pôs logo em marcha apressada,
e no apito rouco da locomotiva
gritava o impudor de uma nota de alívio...

Eu quis chamar o homem, para lhe dar um sorriso,
mas ele ia já longe, sem se voltar nunca,
como quem não tem frente, como quem só tem costas...

João Guimarães Rosa

em Magma.


Ilustrações de Poty [Napoleon Potyguara Lazzarotto], para a obra de João Guimarães Rosa.


Poema e ilustração retirados do blogue Voar fora da asa




sexta-feira, 3 de abril de 2020

Antero de Quental - Pequenina

Александр Варнек - Девочка с куклой


PEQUENINA

Eu bem sei que te chamam pequenina
E tenue como o véu solto na dança,
Que és no juizo apenas a criança,
Pouco mais, nos vestidos, que a menina...

Que és o regato de agua mansa e fina,
A folhinha do til que se balança,
O peito que em correndo logo cansa,
A fronte que ao sofrer logo se inclina...

Mas, filha, lá nos montes onde andei,
Tanto me enchi de angústia e de receio
Ouvindo do infinito os fundos ecos,

Que não quero imperar nem já ser rei
Senão tendo meus reinos em teu seio
E subditos, criança, em teus bonecos!

Antero de Quental




quarta-feira, 1 de abril de 2020

Joaquim Manuel Magalhães - “Juntamos toros e gravetos...”

O arder do tempo - Américo Meira


Juntamos toros e gravetos
para a lareira. Na mata
flutua o crepúsculo.
Marcos de luz a findar.

Vagas de zimbro, escórias
o arpão do esquecimento.
A súbita melancolia da casa.

As janelas abrem para o rio
e a barra e a ilha com névoa.
Podias ser tu de céu a céu.

A inquieta certeza da poesia
não admite questões. Descobre-se
ao virar da vinha, quando chegamos
ao tanque e não há ninguém.

Joaquim Manuel Magalhães


Uma luz com um toldo vermelho. Editorial Presença, 1990