segunda-feira, 28 de abril de 2014

Os três velhos (Vasco Graça Moura)

Fotografia de Gérard Castello Lopes



OS TRÊS VELHOS

vinde cá ver estes três velhos
tão pacatos ao sol.
 
o país despovoa-se.
a curva demográfica desce.
a inflação derrapa.
o desemprego aumenta.
o estado rouba.

mas estes três velhos apanham sol,
contentes no correr da tarde.

os ricos baldam-se a pagar impostos.
o lince da malcata está em perigo.
a poluição ameaça os cursos de água.
as crianças aproveitam zero na escola.
há escândalos, negociatas, corrupção.

mas estes três velhos sentam-se num banco
e vão apanhando sol.

os espanhóis querem reter os rios.
a saúde está um coas.
a justiça está uma vergonha.
vivemos do cartão de crédito.
até vamos alugar submarinos.

mas estes três velhos franzem os olhos
e as caras enrugadas
à claridade solar benfazeja.

a agricultura está em crise total.
as pescas estão em vias de extinção e de miséria.
os empresários só funcionam com subsídios.
a construção de obras públicas encerrou.

mas estes três velhos só não querem
que lhes roubem o sol (como diógenes).

a televisão transmite as maiores idiotias.
os noticiários só fazem propaganda do governo.
a inépcia do governo não tem limites.
o primeiro-ministro afecta um ar untuoso de primeira-comunhão,
ou de baptismo porque a maioria tem muitos afilhados.

mas estes três velhos estão-se borrifando
solenemente.
não são de direita nem de esquerda.
apanham sol.

Vasco Graça Moura


Poema lido no blogue Cão celeste.


Vasco Graça Moura morreu ontem em Lisboa aos 72 anos. A notícia na página da  RTP
.


24 de Abril, sempre. Democracia nunca mais (Ricardo Araújo Pereira)




24 de Abril, sempre. Democracia nunca mais

Celebram-se este mês os 40 anos da morte do 25 de Abril. Ou talvez não seja bem isto. Mas parece. Não se sabe ao certo como vão ser comemoradas as quatro décadas de democracia. Suspeita-se apenas que a cerimónia vai ser pobre, triste, e presidida por gente que não mexeu uma palha para que a Revolução acontecesse. Os capitães de Abril não estarão presentes. Durante o Estado Novo, as pessoas que fizeram o 25 de Abril não podiam falar na Assembleia da República. Ao fim de 40 anos de democracia, continuam a não poder. Podem estar presentes, desde que seja só para enfeitar. Mas não querem. É pena. Sugiro um friso de capitães de Abril feito de fotografias em tamanho real, recortadas em cartão. Faz o mesmo efeito que os organizadores da cerimónia pretendiam, e podem usar-se fotografias dos tempos em que os capitães de Abril estavam mais novos e mais magros. É uma maneira de termos um 25 de Abril ainda mais próximo do original. E de plástico, que é mais barato.

Outra ideia, um pouco mais subversiva, mas igualmente respeitadora da ordem e do silêncio: todos os democratas presentes na Assembleia para a cerimónia comemorativa do 25 de Abril levam no bolso uma máscara do Vasco Lourenço. E, quando a corja topa da tribuna do hemiciclo, põem a máscara. Talvez pregue um susto suficiente para que alguns dos organizadores da festa corram a comprar um bilhete para o Brasil. As agências de viagens bem precisam de um incentivo destes.

Entretanto, e creio que já no âmbito das festividades, Durão Barroso afirmou que, antes do 25 de Abril, "apesar de algumas liberdades cortadas, havia na escola uma cultura de mérito, exigência, rigor, disciplina e trabalho" que se perdeu. Realmente, havia algumas liberdades cortadas. E algumas goelas, também. Mas, para o presidente da União Europeia, o regime em que havia uma polícia política que prendia, torturava e matava tinha um ensino muito bom. Parece que, na antiga RDA, o desporto também era óptimo. Dizem que Jack, o Estripador, tinha uma linda colecção de selos. E, como se sabe, os nazis tinham marchas lindas.

De facto, e com muita pena minha, o ensino do Estado Novo era melhor e mais exigente. Cito, por exemplo, o Livro de Leitura da 3.ª Classe, de 1958: "Com o Estado Novo abriu-se para Portugal uma época de prosperidade e de grandeza, comparável às mais brilhantes de toda a sua história. (...) Construíram-se muitas escolas, e hão-de construir-se as que forem precisas para que todas as crianças em idade escolar tenham onde educar-se e instruir-se." A prova de que o ensino era bom é que Durão Barroso memorizou estas palavras do livro único e não mais as esqueceu. É pena que, aparentemente, os primeiros-ministros que governaram Portugal após o 25 de Abril não tenham conseguido manter este nível de excelência nas nossas escolas. Não sei se Durão Barroso conhece algum. Mas todos eles merecem uma palmatoada. E deviam decorar os nomes dos rios e caminhos-de-ferro de Angola, para castigo.

Ricardo Araújo Pereira


Revista Visão  (24 de abril de 2014)





sexta-feira, 25 de abril de 2014

25 de abril de 1974 (Noémia Pinto)




25 de abril de 1974

Eu era uma criança.
Gostava de ter vivido aqueles momentos de apreensão mas também mágicos que acompanharam a revolução e ficaram para além dela.
Gostava de ter podido abraçar sentidamente aqueles Homens, em nada parecidos com os homúnculos que hoje por aí pululam.
De ter podido dizer-lhes «Obrigada» de rosto lavado em lágrimas e voz embargada.
De ter podido entregar um cravo vermelho a cada um deles.
De ter podido dizer-lhes que agora sim, agora é que o futuro nos ia sorrir. Agora é que iríamos concretizar a nossa grandeza, graças a eles.
De os ter acompanhado pelas ruas fora.
De ter ficado com o seu cheiro entranhado nas minhas roupas que não lavaria nem usaria jamais, de modo a perpetuar aquele odor heróico.
De ter abraçado todos aqueles com quem me cruzasse, subitamente transformados em meus irmãos na felicidade de concretizar um futuro sonhado.
De ter sentido aquele saborzinho único que fica quando a justiça impera e quando sabemos que vivemos momentos especiais.
De ter visto o povo nas ruas, cada vez em maior número, uns com olhares de medo, olhando ainda de soslaio, tentando perceber onde andaria o «bufo» mais perto de si, outros com um sorriso de orelha a orelha, sonhando já com o amanhã em liberdade.
De ter presenciado as reacções dos meus pais, de lhes ter lido o medo. De, depois, rir com eles, e construir sonhos de alegria, de igualdade, de justiça social. De entoar lindas e frescas canções de revolução, liberdade e esperança.
Sim, o dia 25 de Abril de 1974 amanheceu especial e histórico e eu, infelizmente, era demasiado criança para o viver intensamente ou para simplesmente o viver.
Ainda assim, nunca é tarde para isto:
OBRIGADA por tudo o que fizeram pelo nosso país.


Publicado por Noémia Pinto a 25 de Abril de 2013 em aventar.





quinta-feira, 24 de abril de 2014

os equívocos de abril - blogue 'Blasfémias'

Governo de Pedro Passos Coelho, de cravo ao peito, durante as comemorações
oficiais do 25 de Abril em 2012, na Assembleia da República
(Blogue 
Cais do olhar)



os equívocos de abril
22 Abril, 2014
por rui a.

O 25 de Abril, que celebra 40 anos nos próximos dias, foi fonte de inúmeros equívocos que macularam indelevelmente o regime e o país. O mais grave de todos foi ter-nos legado uma “direita” cujo principal representante à data o celebra agora de cravo vermelho na lapela, lado a lado com a esquerda e a extrema-esquerda desse e do nosso tempo. Por mais que nos esforçássemos, dificilmente haveria melhor síntese dos motivos históricos que explicam o estado a que o país chegou.

Fonte: blogue Blasfémias


* * * * * * * * *



Quanto pesa um cravo vermelho na lapela?

Em dia de comemoração de Abril, o uso da flor que simboliza a revolução continua a ser polémica. A esquerda enverga-a com orgulho mas é um incómodo para a direita. Rui Gaudêncio. Público,  26/04/2013 - 18:11 





Dois poemas de Sophia de Mello para este 25 de Abril




25 de Abril

Esta é a madrugada que eu esperava
O día inicial inteiro e limpo
Onde emergimos da noite e do silêncio
E livres habitamos a substância do tempo



Revolução

Como casa limpa
Como chão varrido
Como porta aberta

Como puro inícío
Como tempo novo
Sem mancha nem vício

Como a voz do mar
Interior de um povo

Como página em branco
Onde o poema emerge

Como arquitectura
Do homem que ergue
Sua habitação

Sophia de Mello Breyner Andresen



Mais: 25 poemas e canções para o 25 de Abril, em Biblio Beiriz.




quarta-feira, 23 de abril de 2014

Palavras de Saramago para o Dia do Livro



"O leitor também escreve o livro quando lhe penetra o sentido, o interroga"

José Saramago

 
José Saramago (1922-2010)










25 de Abril, sempre! (Tomás Vasques)



25 de Abril, sempre!


Esta gente que nos governa detesta o 25 de Abril, o dia fundador da nossa democracia - o dia mais feliz da vida de quem o viveu e de quem não se acomodou à ditadura


Comemora-se esta semana o quadragésimo aniversário do derrube da ditadura salazarista. Uma prolongada ditadura que chegou pela mão de um professor da Universidade de Coimbra, apessoado e bem-falante, seminarista e anti-republicano, depois de um golpe militar que pôs termo à I República, a qual se deixou afundar numa crise política, económica e financeira permanente. Uma ditadura igual a todas as ditaduras, com o seu rol de perseguições políticas, prisões e assassinatos de opositores. De pobreza, analfabetismo e cacete. Inculta e profundamente reacionária.

À medida que nos afastamos no tempo daquela madrugada de Abril, adensa-se cada vez mais, no discurso político e na "análise histórica" elaborados nestes últimos anos, a partir de uns "jovens turcos" acantonados em jornais, revistas e blogues, promovidos a "ideólogos" de outros amanhãs que cantam, o branqueamento da ditadura e a desvalorização do significado do dia 25 de Abril, enquanto data fundadora da nossa democracia. O desbragamento e a falta de vergonha e de memória assumiram tais proporções que até Durão Barroso, ex-presidente do PSD, ex-primeiro-ministro de uma coligação dos partidos que nos governam e ainda presidente da Comissão Europeia louvou, descontraidamente e sem corar, a "excelência" do ensino em tempo de ditadura. O velho ditador de Santa Comba Dão, lá na tumba onde expia os seus pecados, deve ter aplaudido o reconhecimento póstumo e gracejado, à sua maneira, sobre os discípulos que por cá deixou.

Os jovens turcos que sustentam ideologicamente este governo sempre se sentiram incomodados com o 25 de Abril, com os militares que executaram o golpe de Estado que derrubou a ditadura e com o povo que o transformou numa revolução. Recusando liminarmente o entendimento de que a democracia é o regime que dá espaço de luta a todas as expressões políticas - o que aconteceu a partir daquele dia de Abril -, começaram por teorizar que só a 25 de Novembro de 1975 nasceu a democracia, quando os comunistas são metidos na ordem democrática. Depois, cimentada a ideia, e após a elaboração de muitos estudos, concluíram que, afinal, a democracia só existiu em Portugal depois de 1982, altura em que foi extinto o Conselho da Revolução.

Mas não se ficaram por aqui. Mais tarde, começaram a falar em 1985, altura da assinatura do Tratado de Adesão de Portugal à Comunidade Económica Europeia, como a data fundadora da democracia. De imediato, empurraram-na mais um ano, para 1986, com a eleição de Mário Soares, o primeiro chefe de Estado civil. E a seguir transferiram a data para 1989, aquando da revisão constitucional de 1989, a qual flexibilizou a garantia das nacionalizações.

Mas, mesmo assim, depois de transferirem o 25 de Abril de 1974 para 8 de Julho de 1989, os jovens turcos, os ideólogos deste governo, em sintonia com os principais banqueiros, encabeçados por Fernando Ulrich, insistem ainda que o voto dos portugueses está condicionado pela Constituição: um governo eleito não pode fazer o que quer, tem de subordinar a sua actuação a uma constituição "socialista e marxista", pelo que devemos aguardar que nos indiquem uma nova data para irmos beber um copo em comemoração da instauração da democracia.

Esta gente que nos governa detesta o 25 de Abril, o dia fundador da nossa democracia - o dia mais feliz da vida de quem o viveu e de quem não se acomodou à ditadura. Uns procuram disfarçar essa aversão, com um palavreado redondo, do tipo: "Sim, o 25 de Abril, mas foi só a libertação, não a liberdade ou a democracia"; outros, já enaltecem os feitos da ditadura. E foi aqui o cais a que aportámos, quarenta anos depois. Este governo e os seus ideólogos estão a aplanar o terreno para que o povo diga, como no fim da monarquia, como escreveu Raul Brandão: "Venha tudo, venha o pior, venha o diabo do Inferno que nos livre disto!"

Tomás Vasques, Jurista

publicado em 21 Abr 2014 (Jornali)





terça-feira, 22 de abril de 2014

40 anos de Abril: dois poemas de Manuel Alegre

Manuel Alegre, jovem estudante em Coimbra (*)


Manuel Alegre nasceu em 1936 e estudou na Faculdade de Direito de Coimbra, onde participou activamente nas lutas académicas. Cumpriu o serviço militar na guerra colonial em Angola. Nessa altura, foi preso pela polícia política (PIDE) por se revoltar contra a guerra. Após o regresso exilou-se no norte de África, em Argel, onde desenvolveu actividades contra o regime de Salazar. Em 1974 regressou definitivamente a Portugal, demonstrando, nos vários cargos governamentais que tem desempenhado ao longo dos anos, uma intervenção fiel aos ideais da Liberdade.

A sua poesia foi e é um hino à Liberdade e, talvez seja por isso que é lembrada por muitos resistentes que lutaram contra a ditadura. É considerado o poeta mais cantado pelos músicos portugueses, designadamente Adriano Correia de Oliveira, José Afonso, Luís Cília, Manuel Freire, António Portugal, José Niza, António Bernardino, Alain Oulman, Amália Rodrigues, Janita Salomé e João Braga.

Este poema de Manuel Alegre simboliza a esperança pela Liberdade e foi cantado por Adriano Correia de Oliveira. O cantor era um amigo do poeta e companheiro das lutas estudantis em Coimbra.

Continua na página do Instituto Camões.


TROVA DO VENTO QUE PASSA

Pergunto ao vento que passa
notícias do meu país
e o vento cala a desgraça
o vento nada me diz.

Pergunto aos rios que levam
tanto sonho à flor das águas
e os rios não me sossegam
levam sonhos deixam mágoas.

Levam sonhos deixam mágoas
ai rios do meu país
minha pátria à flor das águas
para onde vais? Ninguém diz.

Se o verde trevo desfolhas
pede notícias e diz
ao trevo de quatro folhas
que morro por meu país.

Pergunto à gente que passa
por que vai de olhos no chão.
Silêncio -- é tudo o que tem
quem vive na servidão.

Vi florir os verdes ramos
direitos e ao céu voltados.
E a quem gosta de ter amos
vi sempre os ombros curvados.

E o vento não me diz nada
ninguém diz nada de novo.
Vi minha pátria pregada
nos braços em cruz do povo.

Vi minha pátria na margem
dos rios que vão pró mar
como quem ama a viagem
mas tem sempre de ficar.

Vi navios a partir
(minha pátria à flor das águas)
vi minha pátria florir
(verdes folhas verdes mágoas).

Há quem te queira ignorada
e fale pátria em teu nome.
Eu vi-te crucificada
nos braços negros da fome.

E o vento não me diz nada
só o silêncio persiste.
Vi minha pátria parada
à beira de um rio triste.

Ninguém diz nada de novo
se notícias vou pedindo
nas mãos vazias do povo
vi minha pátria florindo.

E a noite cresce por dentro
dos homens do meu país.
Peço notícias ao vento
e o vento nada me diz.

Mas há sempre uma candeia
dentro da própria desgraça
há sempre alguém que semeia
canções no vento que passa.

Mesmo na noite mais triste
em tempo de servidão
há sempre alguém que resiste
há sempre alguém que diz não.






A RAPARIGA DO PAÍS DE ABRIL

Habito o sol dentro de ti
descubro a terra aprendo o mar
rio acima rio abaixo vou remando
por esse Tejo aberto no teu corpo.

E sou metade camponês metade marinheiro
apascento meus sonhos iço as velas
sobre o teu corpo que de certo modo
é um país marítimo com árvores no meio.

Tu és meu vinho. Tu és meu pão.
Guitarra e fruta. Melodia.
A mesma melodia destas noites
enlouquecidas pela brisa no País de Abril.

E eu procurava-te nas pontes da tristeza
cantava adivinhando-te cantava
quando o País de Abril se vestia de ti
e eu perguntava atónito quem eras.

Por ti cheguei ao longe aqui tão perto
e vi um chão puro: algarves de ternura.
Qaundo vieste tudo ficou certo
e achei achando-te o País de Abril.

Manuel Alegre
30 Anos de Poesia
Publicações Dom Quixote


Mais poemas de Manuel Alegre e outros autores em A poesia e o 25 de Abril


Interessante: Biblio Beiriz (25 poemas e canções para o 25 de Abril)


Site de Manuel Alegre




sexta-feira, 11 de abril de 2014

A carta (Mia Couto)



A CARTA

A velha dobrou as pernas como se dobrasse os séculos. Ela sofria doença do chão, mais e de mais se deixando nos caídos. Amparava-se em poeiras, seria para se acostumar à cova, na subfície do mundo?

- Me leia a carta. Me entregava o papel marrotado, dobrado em mil sujidades. Era a Carta de seu filho, Ezequiel. Ele se longeara, de farda, cabelo no zero. A carta, ele a enviara fazia anos muito coçados. Sempre era a mesma, já eu lhe conhecia de memória, vírgula a vírgula.

- Outra vez, mamã Cacilda?

- Sim, maistravez.

Sentei o papel sob os olhos, fingi acarinhar o desenho das letras. Quase nem se viam, suadas que estavam. Dormiam sob o lenço de Cacilda, desde que chegara a guerra. Essas letras cheiram a pólvora, me rodilham o coração. Era o dito da velha.

Agora, passados os tempos, aquele papel era a única prova do seu Ezequiel. Parecia que só pelo escrito, sempre mais desbotado, seu filho acedia à existencia. Nas primeiras vezes eu até me procedia à leitura, traduzindo a autêntica versão do pequeno soldado. Eram letras incertinhas, pareciam crianças saindo da formatura. Juntavam-se ali mais erros que palavras. O recheio nem era maior que o formato.

Porque naquela escrita não havia nem linha de ternura. O soldado aprendera a guerra desaprendendo o amor? Em Ezequiel, morrera o filho para nascer o tropeiro? Nas primeiras leituras, meu coração muito se apertava em inventadas dedicatórias aquela mãe. Enquanto lia, eu espreitava o rosto da idosa senhora, tentando escutar uma ruga de tristeza. Nada. A velha se imovia, como se tivesse saudade da morte. Seus olhos não mencionavam nenhuma dor. Eu tentava um alívio, desculpar o menino que não sobrevivera à farda. Nem se entristenha, mamã Cacilda. Também, maneira como carregaram esse menino para a tropa! Sem camisa, sem mala, sem notícia. Atirado para os fundos do camião como se faz às encomendas sem endereço.

- Entenda, mamã Cacilda.

Mas ela já dormia, deitada em antiquíssima sombra. Ou mentia que Dormia, debruçada na varanda da alma? Fingia, a velha. Como o rio, num açude, se disfarça de lagoa. Depois, ela regressava às pálpebras, me apressava.

- Continua. Por que paraste?

Já não restava nada que ler. Era só o gorduroso gatafunho, despedida Sem nenhum beijo. Pode a carta de um saudoso filho terminar assim «unidade, trabalho, vigilância»? Mas a velha insistia, cismalhava. Eu que lesse, toda a gente sabe, as letras igualam as estrelas mesmo poucas são infinitas. Eu lhe fosse paciente, pobre mãe, sem nenhuma escola. Foi então que passei a alongar aquela tinta, amolecendo as reais palavras. Inventava. Em cada leitura, uma nova carta surgia da velha missiva.

E o Ezequiel, em minha imagináutica, ganhava os infindos modos de ser filho, homem com méritos para permanecer menino. Cacilda escutava num embalo, houvessem em minha voz ondas de um sepultado mar. Ela embarcava de visita a seu filho, tudo se passando na bondade de uma mentira. Diz-se na própria doideira dos vamos loucurando. Até, um dia, me trouxeram notícia. Ezequiel perdera, para sempre, a existencia. Ele se desfechara em incógnitos matos, vitima dos bandos. A mãe nem suspeitava. Perguntei desconhecia-se o paradeiro dela. Ficasse eu atribuido de lhe entregar o escuro anúncio. Esperei. Nesse fim de tardinha, porém, mamã Cacilda não compareceu em minha casa. Assustei adivinhara ela o destino do Ezequiel? Quem conhece os poderes de uma mãe em exercicio de saudade? Decidi ir ao seu lugar. Parti ainda restavam manchas do poente. Cacilda cozinhava uns míseros grãos, ementa de passarinho.

- Senta, meu filho, fica servido, não custa dividir pobrezas.

Fui ficando, me compondo de coragem. Como podia eu deflagrar aquele luto? Comemos. Melhor fingimos comer. Faz conta é uma refeição, meu filho. Faz conta. Modo que eu vivo, fazendo de conta.

- E agora, diz porque vieste nesta minha casa?

Olhei o chão, o mundo escapava pelo fundo. Ela venceu o silêncio.

- Me vens ler o meu filho?

Acenei que sim. Aceitei o velho papel mas demorei a começar. Eu queria acertar os meus tons, evitando o emergir de alguma tremura. Finalmente, atravessei a escrita, ao avesso da verdade. Trouxe as novas do filho, seus consecutivos heroísmos. Ele, o mais bravo, mais bondoso, mais único. Como sempre, a mãe escutou em qualificado silêncio. Às vezes, no colorir de um parágrafo, ela sorria sempre igual, esse meu filho. Eu me parabendizia, cumprida a missão do fingimento. Me despedi, quase em alívio. Foi então, em derradeiro relance, que eu vi a velha mãe lançava a carta sobre a fogueira. Ao meu virar, ela emendou o gesto. O papel demorou um instante a ser mastigado pelo fogo. Nesse brevíssimo segundo, eu anotei a lágrima pingando sobre a esteira. Ela fingiu tirar um fumo do rosto, fez conta que metia a carta sob o lenço. Me voltei a despedir, fazendo de conta que aquele adeus era igual aos todos que já lhe concedera.


Mia Couto


Do seu livro Cronicando



Sinopse

Neste livro se reúnem crónicas com que o escritor moçambicano colaborou com a imprensa de Moçambique durante os dois últimos anos da década de 80. Este conjunto de textos mereceu o Prémio Anual de Jornalismo Areosa Pena, atribuído pela Organização dos Jornalistas Moçambicanos em 1989.

Mais do que crónicas estes textos são pequenos contos condensados de forma a se enquadrarem no espaço dos jornais a que se destinavam. Aos textos inseridos nos jornais de Moçambique, o autor acrescentou outros inéditos. Uns e outros estão profundamente marcados pela arte de recriar a língua portuguesa que caracteriza toda a escrita deste autor africano.





quinta-feira, 10 de abril de 2014

A Confissão de Lúcio (Mário de Sá-Carneiro)



Cumpridos dez anos de prisão por um crime que não pratiquei e do qual, entanto, nunca me defendi, morto para a vida e para os sonho: nada podendo já esperar e coisa alguma desejando - eu venho fazer enfim a minha confissão: isto é, demonstrar a minha inocência. Talvez não me acreditem. Decerto que não me acreditam. Mas pouco importa. O meu interesse hoje em gritar que não assassinei Ricardo de Loureiro é nulo. Não tenho família; não preciso que me reabilitem. Mesmo, quem esteve dez anos preso, nunca se reabilita. A verdade simples é esta.

E àqueles que, lendo o que fica exposto, me perguntarem: « Mas por que não fez a sua confissão quando era tempo? Por que não demonstrou a sua inocência ao tribunal?», a esses responderei: - A minha defesa era impossível. Ninguém me acreditaria. E fora inútil fazer-me passar por um embusteiro ou por um doido… Demais, devo confessar, após os acontecimentos em que me vira envolvido nessa época, ficara tão despedaçado que a prisão se me afigurava uma coisa sorridente. Era o esquecimento, a tranquilidade, o sono. Era um fim como qualquer outro - um termo para a minha vida devastada. Toda a minha ânsia foi pois de ver o processo terminado e começar cumprindo a minha sentença.

De resto, o meu processo foi rápido. Oh! o caso parecia bem claro… Eu nem negava nem confessava. Mas quem cala consente… E todas as simpatias estavam do meu lado.

O crime era, como devem ter dito os jornais do tempo, um «crime passional». Cherchez la femme. Depois, a vítima um poeta - um artista. A mulher romantizara-se desaparecendo. Eu era um herói, no fim de contas. E um herói com seus laivos de mistério, o que mais me aureolava. Por tudo isso, independentemente do belo discurso de defesa, o júri concedeu-me circunstâncias atenuantes. E a minha pena foi curta. Ah! foi bem curta - sobretudo para mim… Esses dez anos esvoaram-se-me como dez meses. É que, em realidade, as horas não podem mais ter acção sobre aqueles que viveram um instante que focou toda a sua vida. Atingido o sofrimento máximo, nada já nos faz sofrer. Vibradas as sensações máximas, nada já nos fará oscilar. Simplesmente, este momento culminante raras são as criaturas que o vivem. As que o viveram ou são, como eu, os mortos-vivos, ou - apenas - os desencantados que, muita vez, acabam no suicídio.

Contudo, ignoro se é felicidade maior não se existir tamanho instante. Os que o não vivem, têm a paz - pode ser. Entretanto, não sei. E a verdade é que todos esperam esse momento luminoso. Logo, todos são infelizes. Eis pelo que, apesar de tudo, eu me orgulho de o ter vivido. Mas ponhamos termos aos devaneios. Não estou escrevendo uma novela. Apenas desejo fazer uma exposição clara de factos. E, para a clareza, vou-me lançando em mau caminho - parece-me. Aliás, por muito lúcido que queira ser, a minha confissão resultará - estou certo - a mais incoerente, a mais perturbadora, a menos lúcida.

Uma coisa garanto porém: durante ela não deixarei escapar um pormenor, por mínimo que seja, ou aparentemente incaracterístico. Em casos como o que tento explanar, a luz só pode nascer de uma grande soma de factos. E são apenas fatos que eu relatarei. Desses factos, quem quiser, tire as conclusões. Por mim, declaro que nunca experimentei. Endoideceria, seguramente.

Mas o que ainda uma vez, sob minha palavra de honra, afirmo é que só digo a verdade. Não importa que me acreditem, mas só digo a verdade - mesmo quando ela é inverosímil.

A minha confissão é um mero documento.

Mário de Sá Carneiro, A Confissão de Lúcio (1914)




quarta-feira, 9 de abril de 2014

Importam-se de fazer as malinhas? – Blogue 'Blasfémias'


Importam-se de fazer as malinhas?

4 Abril, 2014 por helenafmatos

Quem? Os jornalistas, opinidores, comentadores… que descobriram que os pais deixaram de viver ao pé dos filhos, que os filhos e os netos já não vivem na rua dos avós, que os tios estão longe dos sobrinhos e que as madrinhas já não nos dão a salvação de manhã. Voltem para as vossas aldeias hoje mesmo pois certamente que ansiais pelo tempo em que éramos todos primos e primas na nossa terra. E como bem sabeis da vossa aldeia a Lisboa demorava-se há alguns anos o mesmo ou mais do que hoje de Lisboa a Londres. Ide viver juntinho às vossas famílias e nunca por nunca ser arrisqueis procurar trabalho além da sede concelho ou terras do senhor regedor. Livrai-vos das tentações da cidade, do longe e do demo. Voltai para o pé dos vossos que é onde estais bem.

Publicado no blogue Blasfémias


NB. O uso de vós novamente (Ciberdúvidas) e  Tu, vós e vocês [Pronomes] (FLIP)



segunda-feira, 7 de abril de 2014

Durante um exercício de filosofia (João Miguel Fernandes Jorge)




DURANTE UM EXERCÍCIO DE FILOSOFIA

Estou aqui sentado na cadeira que
me cabe como professor, a secretária, o estrado
o negro quadro com restos de giz e marcas de
apagador. A ardósia coberta de falhas, pequenas
feridas nas horas de aprendizagem.
Os alunos aí estão à minha frente, quietos e presos
à rapidez da sua escrita ou à
lentidão que faz de outros a extrema hesitação.
São alunos do curso nocturno e respondem a um
exercício sobre Platão. É tão pouco o que conheço
do mover das suas mãos e deles sei quase e deles
sei tanto sob a distância e a proximidade desta mesa,
deste estrado de aula.
Uma turma pequena, apenas sete alunos, posso di-
zer-lhes os nomes: Susana, uma negra de quarenta
anos que vive num seminário adventista (mal
percebo o seu português e irá, decerto, na
pergunta sobre a acusação de Sócrates, escrever-
me deuses com letra maiúscula e falará deles no
singular); Gonçalo que tem dezassete anos e que,
filho de emigrantes, fala melhor alemão do que
a nossa língua. Vem às vezes contar-me de Ian
Curtis, de Patty Smith, de Jim Morrison e de
Rimbaud e em qualquer livraria descobriu um livro
meu por causa de um dos primeiros. Por causa
dessa leitura, oblíqua, junto à estante da livraria,
veio dizer-me que também era monárquico e desde
então, sempre que vem às aulas, traz na lapela,
nos solenes dias de blazer, as armas coroadas
de Portugal.
O Zé Alberto que é o melhor aluno, todos os dias
tenho que interromper o seu discurso sobre a vida
e os esforços para estar vivo, aqui, nesta difícil
cidade. Depois, as raparigas, Mavilde e
Belmira – lembro-me sempre da Benilde do
Régio -, chegam, nunca faltam, são um confuso
poço de silêncio, sem dúvidas, sem questões,
por demais crédulas e indiferentes à
enunciada mentira dos filósofos.
Ainda há a Filomena, mas não é aluna inscrita,
apenas vem assistir aos meus longos monólogos
sobre o Fédon.
Por último o Zé Manel – o único com quem
gostaria de tomar um café depois da prisão
das aulas e saber que livros lê, que vinho
bebe, de que música gosta. (Interrompeu-me
a Susana perguntando se saber e conhecer
são coisas diferentes.)

Mas os meus alunos vêm quase todos embrulhados
em kispos, em coisas pardas e tudo sempre se
passa num tom neutro, pedagógico
até que chegue a hora de nos irmos: eu para
viver, eles para viverem e todos para morrer
e como na Apologia nenhum de nós saberá quem tem
a melhor sorte. Ninguém, excepto
o deus.

João Miguel Fernandes Jorge

Do seu livro A Jornada de Cristóvão de Távora – Segunda Parte, Presença, 1988.




sexta-feira, 4 de abril de 2014

Quando a escola deixar de ser uma fábrica de alunos

A escola do ano 2000 imaginada pelos ilustradores franceses
Jean Marc Coti e Villemard em 1899


Quando a escola deixar de ser uma fábrica de alunos

A escola de massas, onde um professor ensina ao mesmo tempo e no mesmo lugar dezenas de alunos, nasceu com a revolução industrial mas chegou ao século XXI. Em dois séculos, mudaram os estudantes, mudou a sociedade e mudou o mercado de trabalho. Quando mudará a escola?

A escola de massas, onde um professor ensina ao mesmo tempo e no mesmo lugar dezenas de alunos, nasceu com a revolução industrial mas chegou ao século XXI. Em dois séculos, mudaram os estudantes, mudou a sociedade e mudou o mercado de trabalho. Quando mudará a escola?

Crianças sentadas em fila, olhando para a frente. Mãos cruzadas em cima da mesa, numa postura inerte. A secretária do professor fica no extremo esquerdo da sala de aula. Não está a ensinar. Os alunos têm uns capacetes de metal, ligados por uns cabos eléctricos a uma máquina onde o professor coloca uns livros. A função desse aparelho, compreende-se pela imagem, é a de extrair a informação dos manuais e introduzi-la directamente nos cérebros dos jovens, através da transmissão da energia eléctrica. Foi assim que os ilustradores franceses Jean Marc Cotê e Villemard imaginaram e retrataram a escola do ano 2000, num postal que era parte de uma série produzida para a Exposição Universal de Paris, em 1900.

A gravura é de 1899 e foi utilizada por João Barroso, especialista em políticas de educação e formação da Universidade de Lisboa, num trabalho que terá sido apresentado em São Paulo, ontem, intitulado A Escola e o Futuro: As Mudanças Começam na Sala de Aula.

A escola do ano 2000 é imaginada, no final do século XIX, como um prolongamento da escola então existente. Cotê e Villemard não vislumbraram uma sala de aula com um funcionamento completamente diferente por causa da electricidade. Em vez disso, desenharam a aula de 1899 - um local onde os jovens recebem, de forma passiva, o conhecimento que lhes é transmitido pelo professor - e acrescentaram-lhe uma nova tecnologia, que lhes permitiria, simplesmente, ter a mesma informação, embora com a recepção facilitada.

Vítor Teodoro, professor da Faculdade de Ciências e Tecnologias da Universidade Nova de Lisboa, tem outra pintura - de uma sala de aula ainda mais antiga - na cabeça. O professor está num púlpito. Lá no alto, consegue ver todos os alunos, que se dispõem à sua frente, sentados por filas. Mas nem todos olham para ele. Uns conversam com os colegas do lado. Uns têm o olhar perdido noutra direcção. Um deles dorme apoiado no braço. Vítor Teodoro está a pensar na iluminura pintada por Laurentius de Voltolina no século XIV, que retrata Henrique da Alemanha a dar uma aula na Universidade de Bolonha, mas que, de acordo com o professor, podia retratar uma sala de aula dos dias de hoje.

A educação que hoje conhecemos tem duas bases, explica o professor da FCT-UNL: a da religião e a do apprenticeship - a aprendizagem por integração numa comunidade, que vem da tradição dos ofícios e dos mestres. Para Vítor Teodoro, durante o século XX, predominou o modelo religioso. A escola adoptou das igrejas o estrado e o púlpito e o professor, à semelhança do padre, começou a transmitir, expositivamente, a informação aos alunos, que a recebem de uma forma passiva. Ensina-se o grupo e não o indivíduo, o que, muitas vezes, leva a que alguns jovens não compreendam o que está a ser ensinado e percam o interesse: "Há 50 anos, as pessoas repetiam as orações em latim e não percebiam o que estavam a dizer. Hoje, acontece o mesmo com os alunos."

Há muito tempo que a escola se concentra em ensinar aos alunos as competências básicas da matemática, da escrita e da leitura. Agora, estas aprendizagens básicas já não são suficientes. No livro The global achievement gap, Tony Wagner, investigador de Inovação na Educação no Centro de Tecnologia e Empreendedorismo da Universidade de Harvard, descreve o que está a ser ensinado aos jovens nas escolas, por oposição ao que eles deveriam estar a aprender para triunfarem nas suas carreiras, numa economia global.

Wagner defende que a escola deve desenvolver sete "competências de sobrevivência" necessárias para que as crianças possam enfrentar os desafios futuros: pensamento crítico e capacidade de resolução de problemas, colaboração, agilidade e adaptabilidade, iniciativa e empreendedorismo, boa comunicação oral e escrita, capacidade de aceder à informação e analisá-la e, por fim, curiosidade e imaginação.

Uma colecção de salas

Teresa Franco tem 15 anos e a partir de Setembro vai frequentar o 10.º ano no Liceu Rainha Dona Amélia, em Lisboa. Decidir-se por uma área de estudos foi complicado, diz: "Não tenho a certeza de nada porque não tenho experiência." Teresa fez um intenso trabalho de pesquisa e criou uma lista com os cursos que a interessavam: Psicologia, Serviço Social, Dança, Escultura, Pintura, Design de Ambientes, Design de Comunicação, Design de Moda, Fotografia, Ciências da Educação, Jornalismo... Áreas variadas e muitas delas relacionadas com a criatividade. Fez testes psicotécnicos e falou com profissionais de várias áreas para perceber com qual delas mais se identificava. Acabou por escolher o curso de Artes. Talvez um dia venha a ser designer.

Quem sabe se por causa das dificuldades que teve em decidir-se por um curso, Teresa defende que a escola deveria promover a interacção com pessoas com experiência nas diferentes áreas profissionais. Defende que aquilo que faz mesmo falta na escola é uma componente mais prática. Sugere, por exemplo, que o horário da tarde fosse ocupado com workshops de fotografia, desporto, artes... Quanto ao ensino das disciplinas, deveriam ser incentivados outros métodos para além do "decorar, decorar, decorar". É por essa razão que muitos dos seus colegas "odeiam História": "Deviam encontrar uma forma que nos cativasse. Em vez de nos obrigarem a decorar, podiam contar-nos mesmo uma história - levar-nos a falar com historiadores ou pessoas que tivessem vivido um determinado acontecimento."

Até aos seis anos, frequentou uma escola inglesa, a English Preparatory School. Como explica a sua mãe, Cristina Rebocho, o ambiente era descontraído e a auto-estima das crianças estimulada: "Ensinavam muito através da brincadeira." Os momentos de avaliação aconteciam de forma discreta. As crianças pensavam que estavam a fazer uma ficha de exercícios normal, quando, na verdade era um teste, e assim não ficavam tão nervosos. No ensino da língua - neste caso, do inglês - os erros ortográficos das primeiras composições não eram corrigidos. "Para que eles pudessem desenvolver a imaginação e a criatividade", explica Cristina Rebocho.

Teresa pensa que os anos que passou nesta escola lhe deram "estruturas sólidas". Também por causa dessa experiência, está convencida de que o ensino deveria ter uma base artística. Alguns colegas dizem-lhe que tinham jeito para as artes quando eram pequenos, mas como não tinham tempo foram-no perdendo. Para Teresa, é uma pena porque, diz, as artes "são muito úteis para que nos consigamos expressar e estar mais à vontade na relação com os outros. E são libertadoras".

A pedagogia tradicional da escola uniformizada está na base da criação da escola de massas a partir do século XIX e não sofreu alterações radicais desde então. Assenta na homogeneização dos alunos e na subordinação aos princípios da tragédia grega: unidade de espaço, de tempo e de acção - "Tudo se passa nos mesmos lugares, ao mesmo tempo e da mesma maneira. Uma escola é uma colecção de salas de aula e o ensino é uma repetição de actividades pré-formatadas, iguais todos os anos", de acordo com João Barroso.

Os vídeos Khan

A revista Economist, num artigo da sua edição de 29 de Junho, Education technology, mostrava-se optimista relativamente à possibilidade de a Internet ser, por fim, capaz de fazer aquilo que a escola massificada nunca conseguiu - adequar-se às necessidades individuais de cada aluno. A revista britânica considera que os recursos online - desde os programas que monitorizam o desempenho dos alunos aos vídeos com exercícios - podem estar a transformar profundamente a educação.

Um dos exemplos referidos pela revista foi o da Khan Academy - um site que disponibiliza gratuitamente vídeos com explicações, criado pelo norte-americano Salman Khan. Os vídeos possibilitam a metodologia da "aula invertida" - em vez de assistirem à exposição do professor na sala e realizarem os exercícios em casa, os alunos assistem aos vídeos em casa e realizam os exercícios na sala de aula. Um exemplo, segundo a Economist, de como algumas inovações podem transformar a educação convencional.

Em Abril deste ano, a Fundação Portugal Telecom importou a ideia. Para Teresa Salema, responsável pela Academia Khan em Portugal, o futuro da educação pode passar por aqui.

A iniciativa surgiu devido à percepção de que "os alunos não estão bem preparados para enfrentar a sociedade da informação" e da necessidade de introduzir novos estilos de aprendizagem: "A sala de aula não muda há 300 anos, mas as crianças são diferentes", afirma à Revista 2.

Até ao início do próximo ano lectivo, a PT espera ter disponíveis 400 vídeos de Matemática. Depois, e até 2014, deverão ser adaptados vídeos de Física, Química e Biologia. As explicações foram traduzidas do inglês e a adaptação aos conteúdos dos programas nacionais foram feitos com a ajuda da Sociedade Portuguesa de Matemática (SPM). As prioridades situaram-se nas áreas mais científicas, onde os resultados escolares a nível nacional são mais negativos.

Como explica Teresa Salema, os vídeos da Academia Khan permitem que o professor se concentre "na orientação, na relação com os alunos e na tutoria individual, que constituem os papéis mais nobres da profissão". E acrescenta que a responsabilidade está, cada vez mais, do lado dos alunos, que têm de querer aprender: "O professor deve incentivar o aluno, mas este não pode ser passivo."

Vítor Teodoro, que já recorreu aos vídeos da Academia Khan e a outros semelhantes nas suas aulas, ressalva que, se a utilização destes instrumentos não for feita de forma adequada, podem ser "mais do mesmo", uma vez que foram "pensados para o modelo "missa"". "Quando projecto um vídeo, posso dizer: "Vejam e aprendam." Ou posso parar a apresentação e dizer: "O que é que isto quer dizer?" "Vamos transferir este esquema para o papel"." De acordo com João Barroso, transformações como a da "aula invertida" são "pequenas alterações cosméticas, que não tocam no essencial, que é a pedagogia".

(...)

Catarina Fernandes Martins



Continua... neste link do jornal Público.








quinta-feira, 3 de abril de 2014

Shopping – Blogue 'antologia do esquecimento'



Sei de pessoas que vão todos os dias à missa, acendem uma vela pelo consumo, inspiram em zona reservada a fumadores o fumo branco das promoções. Bebem água benta descafeinada, remexem o adoçante com estilo enquanto contemplam a arte sacra dos escaparates. Aproximam-se do confessionário com os pecados nas mãos. O padre, contratado a salário mínimo com subsídio de refeição, escuta-lhes as queixas atentamente, até que de sorriso no rosto expia o pecador de todos os males com dois pais-nossos e uma avé maria pagas a crédito e direito a saldo no cartão.


Publicado no blogue  antologia do esquecimento




terça-feira, 1 de abril de 2014

Ronda dos povos (Fernando Assis Pacheco)




RONDA DOS POVOS

Adeus Quissala, Quimuanassala,
Hihinga-Zambi.
Adeus Mussesse, lavras mortas.
Poeira trazida pelo vento.

Adeus Calala, Canacassala,
Quimaio, Tabi.
O tchimbeco está vazio.
Passam os porcos do mato.

Adeus Hungo, povo do Hungo,
Fui lá uma sexta-feira
e era cinza, coisa pouca.
O capim vai comer-te.

Adeus Cazanga, Quimazanga,
Caguenguele, Mufuca, Praia.
Adeus Quijai, Cabári, Chengue.
Apodreceis ao sol.

Fernando Assis Pacheco





Guerra Colonial  (1961-1974)


Vídeos e documentários RTP - Guerra Colonial