segunda-feira, 30 de setembro de 2013

Terra sonâmbula (Mia Couto)



Naquele lugar, a guerra tinha morto a estrada. Pelos caminhos só as hienas se arrastavam, focinhando entre cinzas e poeiras. A paisagem se mestiçara de tristezas nunca vistas, em cores que se pegavam à boca. Eram cores sujas, tão sujas que tinham perdido toda a leveza, esquecidas da ousadia de levantar asas pelo azul. Aqui, o céu se tornara impossível. E os viventes se acostumaram ao chão, em resignada aprendizagem da morte.

A estrada que agora se abre a nossos olhos não se entrecruza com outra nenhuma. Está mais deitada que os séculos, suportando sozinha toda a distância. Pelas bermas apodrecem carros incendiados, restos de pilhagens. Na savana em volta, apenas os embondeiros contemplam o mundo a desflorir.

Um velho e um miúdo vão seguindo pela estrada. Andam bambolentos como se caminhar fosse seu único serviço desde que nasceram. Vão para lá de nenhuma parte, dando o vindo por não ido, à espera do adiante. Fogem da guerra, dessa guerra que contaminara toda a sua terra. Vão na ilusão de, mais além, haver um refúgio tranquilo. Avançam descalços, suas vestes têm a mesma cor do caminho. O velho se chama Tuahir. É magro, parece ter perdido toda a substância. O jovem se chama Muidinga. Caminha à frente desde que saíra do campo de refugiados. Se nota nele um leve coxear, uma perna demorando mais que o passo. Vestígio da doença que, ainda há pouco, o arrastara quase até à morte. Quem o recolhera fora o velho Tuahir, quando todos outros o haviam abandonado. O menino estava já sem estado, os ranhos lhe saíam não do nariz mas de toda a cabeça. O velho teve que lhe ensinar todos os inícios: andar, falar, pensar. Muidinga se meninou outra vez. Esta segunda infância, porém, fora apressada pelos ditados da sobrevivência.

Quando iniciaram a viagem já ele se acostumava de cantar, dando vaga a distraídas brincriações. No convívio com a solidão, porém, o canto acabou por migrar de si. Os dois caminheiros condiziam com a estrada, murchos e desesperançados.

Muidinga e Tuahir param agora frente a um autocarro queimado. Discutem, discordando-se. O jovem lança o saco no chão, acordando poeira. O velho ralha:

- Estou-lhe a dizer, miúdo: vamos instalar casa aqui mesmo.

- Mas aqui? Num machimbombo todo incendiado?

- Você não sabe nada, miúdo. O que já está queimado não volta a arder.

Muidinga não ganha convencimento. Olha a planície, tudo parece desmaiado. Naquele território, tão despido de brilho, ter razão é algo que já não dá vontade. Por isso ele não insiste. Roda à volta do machimbombo. O veículo se despistara, ficara meio atravessado na rodovia. A dianteira estava amassada de encontro a um imenso embondeiro. Muidinga se encosta ao tronco da árvore e pergunta:

- Mas na estrada não é mais perigoso, Tuahir? Não é melhor esconder no mato?

- Nada. Aqui podemos ver os passantes. Está-me compreender?

- Você sempre sabe, Tuahir.

- Não vale a pena queixar. Culpa é sua: não é você que quer procurar seus pais?


Mia Couto

machimbombo = autocarro


Início de Terra sonâmbula (1992), primeiro romace do autor moçambicano





segunda-feira, 23 de setembro de 2013

Uns versos de António Ramos Rosa



Vivi tanto
que já não tenho outra noção
de eternidade
que não seja a duração da minha vida.

António Ramos Rosa


Este e mais dois poemas em Hospedaria Camões.


Autor de uma das obras poéticas mais extensas e marcantes da poesia portuguesa contemporânea, António Ramos Rosa morreu esta segunda-feira aos 88 anos. (Público)


Mais versos deste autor.




quarta-feira, 18 de setembro de 2013

Desfolhadas



A desfolhada tradicional é um duro trabalho agrícola em que se retira a espiga (ou maçaroca) da planta.

Antigamente, marcava-se o dia das desfolhadas com os vizinhos, a família e os amigos. Durante o dia, juntavam-se os lavradores e cortavam o milho com uma foicinha.

À medida que se desfolha vai-se amontoando as espigas em cestos que, depois de cheios, são carregados no carro de bois para ser despejados no canastro ou espigueiro.

A palha do milho servia para a alimentação dos animais. Os jovens participavam entusiasmados nas desfolhadas, sempre na esperança de encontrar o milho rei (espiga vermelha) para poderem dar um beijo ou um abraço à namorada (é que o feliz achador tem a obrigação de gritar bem alto: Milho rei! - e o direito de dar uma volta a todos os trabalhadores, distribuindo abraços). Antigamente, esta era uma oportunidade única para se aproximar fisicamente das raparigas, das namoradas, até das noivas porque, na época as convenções sociais eram muitas e a vigilância por parte dos pais era muito apertada.

À noite, à luz das candeias faziam-se grandes desfolhadas, dançava-se e cantava-se ao som da concertina. Apesar do cansaço, as desfolhadas eram sempre motivos de grandes satisfações e alegrias para aqueles que nelas participavam.


As desfolhadas da aldeia
são cheias de vida e cor
até a luz da candeia,
suspiram versos de amor.


Ai as desfolhadas, lindas desfolhadas
onde as raparigas vão todas lavadas,
saem de casa preparam-se bem
porque os seus amores lá irão também.



(Fonte: o blogue Folklore de Portugal)



 



 

segunda-feira, 16 de setembro de 2013

José Luís Peixoto ganha Prémio Salerno Livro d'Europa




O escritor José Luís Peixoto, de 38 anos, venceu a primeira edição do Prémio Salerno Livro d'Europa, em Itália, com a obra "Livro", anunciou no dia 1 de julho a editora Quertzal.

O romance do escritor natural de Galveias, em Ponte de Sor, foi o escolhido entre outros quatro títulos finalistas, de autores europeus com menos de 40 anos.

O "Livro" foi recentemente publicado em Itália pela Einaudi.

O júri do galardão foi "constituído por 50 leitores e 50 personalidades ligadas ao meio editorial italiano", esclarece em comunicado a editora portuguesa.

"Livro" foi publicado em Portugal em 2010, pela Quetzal Editores, e foi também finalista do Prémio Femina, atribuído em França.

A obra "Cemitério de Pianos", de Peixoto está na primeira lista do Prémio Impact Dublin, prémio a que concorrem obras publicadas em língua inglesa, nomeadas por livreiros de todo o mundo.


'Livro' é nome de pessoa, do protagonista da história, centrada na emigração portuguesa para França nas décadas de 1960 e 1970.

O escritor portugués recria neste romance o sabor das grandes narrativas de formação. A vida de Ilídio, o protagonista, é o relato de uma perseguição que começa no dia traumático em que a mãe o abandonou na infância, avançando através de seu amor pela delicada Adelaide. (Companhia das Letras)


Assim é que começa a obra:

(1948)
A mãe pousou o livro nas mãos do filho.
Que mistério. O rapaz não conseguia imaginar um propósito para o objeto que suportava. Pensou em cheirá-lo, mas a porta do quintal estava aberta, entrava luz, havia muita vida lá fora. O rapaz tinha seis anos, fugiu-lhe a atenção, distraiu-se, mas não se desinteressou pelo livro, apenas deixou de o interrogar enquanto objeto em si, começou a questioná-lo de maneira muito mais abstrata, enquanto intenção, enquanto sombra de um ato. A mãe disse o nome do filho:
Ilídio.
O rapaz, Ilídio, estava nesse momento a tentar imaginar a vontade da mãe, o que pretendia ao entregar‑lhe aquele livro, que era grande de mais para as suas mãos, mas que não era demasiado pesado. A mãe voltou a dizer o nome do filho, Ilídio. E as cores da mãe voltaram a definir‑se diante dele.
Escuta.
Esta palavra simples, de sílabas simples, foi entendida pelo Ilídio de modo completo, estava a ouvi‑la antes de ser dita e continuou a ouvi‑la no silêncio que se lhe seguiu. Aquela voz a dizer aquela palavra fazia parte do Ilídio. Podia ouvi‑la na cabeça sempre que quisesse. Em certas noites, quando se agarrava à mãe, ao quente, sem ser capaz de dormir, ouvia pedaços da voz da mãe, rasgados, a passarem‑lhe pela cabeça como serpentinas. Numa dessas noites, ou em várias, é bem possível que tenha distinguido essa maneira de paz com que a mãe sempre lhe dizia: escuta. Havia tons de voz que a mãe só utilizava para certas palavras ou expressões, como quando se saturava e dizia: por favor, a esculpir cada consoante, com um grande silêncio entre por e favor, a soprar no fim; ou como quando dizia: ora, é só lérias e mais lérias e dava uma gargalhada; ou como quando dizia: tu queres é remolgaria e parodim, e parecia que estava a cantar. Não faltariam exemplos de palavras que conseguia lembrar na voz da mãe.