segunda-feira, 28 de março de 2022

Gilka Machado - Saudade

Fotografia de Gianni A.F.


SAUDADE

De quem é esta saudade
que meus silêncios invade,
que de tão longe me vem?

De quem é esta saudade,
de quem?

Aquelas mãos só carícias,
Aqueles olhos de apelo,
aqueles lábios-desejo...

E estes dedos engelhados,
e este olhar de vã procura,
e esta boca sem um beijo...

De quem é esta saudade
que sinto quando me vejo?

Gilka Machado

(Velha poesia, 1965)



sexta-feira, 25 de março de 2022

Carlos de Oliveira - Soneto fiel

 

Fotografia de Amélia Monteiro: Poema (2015)


SONETO FIEL

Vocábulos de sílica, aspereza,
Chuva nas dunas, tojos, animais
Caçados entre névoas matinais,
A beleza que têm se é beleza.

O trabalho da plaina portuguesa,
As ondas de madeira artesanais
Deixando o seu fulgor nos areais,
A solidão coalhada sobre a mesa.

As sílabas de cedro, de papel,
A espuma vegetal, o selo de água,
Caindo-me nas mãos desde o início.

O abat-jour, o seu luar fiel,
Insinuando sem amor nem mágoa
A noite que cercou o meu ofício.

Carlos de Oliveira




segunda-feira, 21 de março de 2022

Mário de Sá-Carneiro - Aqueloutro

 

André Carrilho

 

AQUELOUTRO

O dúbio mascarado, o mentiroso
Afinal, que passou na vida incógnito
O Rei-lua postiço, o falso atónito;
Bem no fundo o covarde rigoroso.

Em vez de Pajem bobo presunçoso.
Sua Ama de neve asco de um vómito.
Seu ânimo cantado como indómito
Um lacaio invertido e pressuroso.

O sem nervos nem ânsia - o papa- açorda,
(Seu coração talvez movido a corda...)
Apesar de seus berros ao Ideal

O corrido, o raimoso, o desleal
O balofo arrotando Império astral
O mago sem condão, o Esfinge Gorda.

Mário de Sá-Carneiro

 

(André Carrilho: Mário de Sá-Carneiro, Illustration for the book "Lisbon Poets", published by Lisbon Poets & Co, 2015)


segunda-feira, 14 de março de 2022

Baltasar Lopes - Saudade fina de Pasárgada


 

SAUDADE FINA DE PASÁRGADA

Em Pasárgada eu saberia
onde é que Deus tinha depositado
o meu destino…
e na altura em que tudo morre..
(Cavalinhos de Nosso Senhor correm no céu;
A vizinha acalenta o choro do filho rezingão;
Tói Mulato foge a bordo de um vapor;
O comerciante tirou a menina de casa;
Os mocinhos da minha rua cantam:
indo eu, indo eu, a caminho de Viseu…)

na hora em que tudo morre,
esta saudade fina de Pasárgada
é um veneno gostoso dentro do meu coração.

Baltasar Lopes

(In Atlântico, 1946)


Lido no blogue Casa e Verbo.


Baltasar Lopes da Silva (Caleijão, São Nicolau, 1907 - Lisboa, 1989) foi um escritor, poeta e linguista de Cabo Verde que escreveu em português e em crioulo.

Continua na Wikipédia.






terça-feira, 8 de março de 2022

Bénédicte Houart - "por vezes finjo que sou eu..."

 

por vezes finjo que sou eu
é formidável
engano toda a gente
eu própria fico confundida
quem és tu, pergunto desconfiada
várias vozes respondem nomes diversos
e chego a acreditar
é o que dá tomar realidades por milagres
ou o inverso

Bénédicte Houart



Maria do Rosário Pedreira - "Chegam cedo demais..."

Paulo Moreira recita o poema de Maria do Rosário Pedreira


Chegam cedo demais, quando ainda não podem escolher
nem decidir. Vêm carregados de espectros, de memórias
e de feridas que não souberam sarar; mas trazem a confiança
da cura nas palavras. Convencem-se de que amam outra vez

quando nos tocam os pequenos lugares, esquecendo-se do rumo
incerto dos seus passos nas estradas tortuosas que os
trouxeram. Abafam-se num cobertor de mentiras sem saber e
falam de injustiça quando tentamos chamá-los à verdade.

Dormem de vez em quando nas nossas camas e protegemo-los
da dor como aos filhos que não iremos ter nunca
porque não nos resignamos a perdê-los. E, um dia, partem, vão

culpados, não chegam a explicar o que os arrasta. Escrevem
cartas mais tarde - uma ou duas para se aliviarem dessa espada.
E nós ficamos, eternamente, sem vergonha, à espera que regressem.

Maria do Rosário Pedreira


O Canto do Vento nos Cipestres (2001)




Fiama Hasse Pais Brandão - Da voz das coisas

Fotografia de José Ferreira Jr




DA VOZ DAS COISAS

Só a rajada de vento
dá o som lírico
às pás do moinho.

Somente as coisas tocadas
pelo amor das outras
têm voz.

Fiama Hasse Pais Brandão

As Fábulas (2002)