quarta-feira, 27 de dezembro de 2023

Nuno Júdice - Lusofonia

 


LUSOFONIA


rapariga: s.f., fem. de rapaz; mulher nova; moça; menina; (Brasil), meretriz.


Escrevo um poema sobre a rapariga que está sentada
no café, em frente da chávena do café, enquanto
alisa os cabelos com a mão. Mas não posso escrever este
poema sobre essa rapariga porque, no brasil, a palavra
rapariga não quer dizer o que ela diz em portugal. Então,
terei de escrever a mulher nova do café, a jovem do café,
a menina do café, para que a reputação da pobre rapariga
que alisa os cabelos com a mão, num café de lisboa, não
fique estragada para sempre quando este poema atravessar
o atlântico para desembarcar no rio de Janeiro. E isto tudo
sem pensar em áfrica, porque aí lá terei
de escrever sobre a moça do café, para
evitar o tom demasiado continental da rapariga, que é
uma palavra que já me está a pôr com dores
de cabeça até porque, no fundo, a única coisa que eu queria
era escrever um poema sobre a rapariga
do café. A solução, então, e mudar de café, e limitar-me a
escrever um poema sobre aquele café onde nenhuma rapariga se
pode sentar à mesa porque só servem cafés ao balcão.

Nuno Júdice


A Matéria do Poema, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 2008


(“Ao telemóvel” - Rapariga sentada no café... 1ª edição do encontro “Desenhar Viseu” Lápis de grafite e pastel de óleo. - José Carlos Carvalho - 11/02/2011)



segunda-feira, 18 de dezembro de 2023

Paulo Leminski - esquecimento





esquecimento

um dia sobre nós também
vai cair o esquecimento
como a chuva no telhado
e sermos esquecidos
será quase a felicidade

Paulo Leminski





(Pedro Domingos - A arte do esquecimento, 2015)

domingo, 10 de dezembro de 2023

Clarice Lispector - Um sopro de vida




Ângela

Meu ideal seria pintar um quadro de um quadro.

Vivo tão atribulada que não aperfeiçoei mais o que inventei em matéria de pintura. Ou pelo menos nunca ouvi falar desse modo de pintar: consiste em pegar uma tela de madeira – pinho de riga é a melhor – e prestar atenção às suas nervuras. De súbito, então, vem do subconsciente uma onda de criatividade e a gente se joga nas nervuras acompanhando-as um pouco – mas mantendo a liberdade. Fiz um quadro que saiu assim: um vigoroso cavalo com longa e vasta cabeleira loura no meio de estalactites de uma gruta. É um modo genérico de pintar. E, inclusive, não precisa saber pintar: qualquer pessoa, contanto que não seja inibida demais, pode seguir essa técnica de liberdade. E todos os mortais tem subconsciente.

Você de repente não estranha de ser você?

Eu não sou uma sonhadora. Só devaneio para alcançar a realidade.


Clarice Lispector


Um Sopro de Vida (1970)


(Pintura de Clarice Lispector)



segunda-feira, 4 de dezembro de 2023

Adélia Prado - Bendito





BENDITO

Louvados sejas Deus meu Senhor,
porque o meu coração está cortado a lâmina,
mas sorrio no espelho ao que,
à revelia de tudo, se promete.
Porque sou desgraçado
como um homem tangido para a forca,
mas me lembro de uma noite na roça,
o luar nos legumes e um grilo,
minha sombra na parede.
Louvado sejas, porque eu quero pecar
contra o afinal sítio aprazível dos mortos,
violar as tumbas com o arranhão das unhas,
mas vejo Tua cabeça pendida
e escuto o galo cantar
três vezes em meu socorro.
Louvado sejas porque a vida é horrível,
porque mais é o tempo que eu passo recolhendo despojos,
– velho ao fim da guerra como uma cabra –
mas limpo os olhos e o muco do meu nariz,
por um canteiro de grama.
Louvados sejas porque eu quero morrer,
mas tenho medo e insisto em esperar o prometido.
Uma vez, quando eu era menino, abri a porta de noite,
a horta estava branca de luar
e acreditei sem nenhum sofrimento.
Louvado sejas!

Adélia Prado


quinta-feira, 30 de novembro de 2023

Dois versos de Fernando Assis Pacheco

 


Também morreu um 30 de novembro, no ano 1995, Fernando Assis Pacheco. Do seu poema “Monsenhor, passeando de bicicleta”, em Respiração Assistida (Assírio & Alvim, 2003), estes dois versos:


ó lameiro do coração
como endureces!





Fernando Pessoa - Ó sino da minha aldeia


Ó sino da minha aldeia,
Dolente na tarde calma,
Cada tua badalada
Soa dentro da minha alma.

E é tão lento o teu soar,
Tão como triste da vida,
Que já a primeira pancada
Tem o som de repetida.

Por mais que me tanjas perto
Quando passo, sempre errante,
És para mim como um sonho.
Soas-me na alma distante.

A cada pancada tua
Vibrante no céu aberto,
Sinto mais longe o passado,
Sinto a saudade mais perto.

s. d.

Fernando Pessoa



Poesias. Fernando Pessoa. (Nota explicativa de João Gaspar Simões e Luiz de Montalvor.) Lisboa: Ática, 1942 (15ª ed. 1995). - 93. 1ª publ. in Renascença. Lisboa: Fev. 1924.


segunda-feira, 27 de novembro de 2023

Jorge de Lima - “Estão aqui as pobres coisas…”

 



Estão aqui as pobres coisas: cestas
esfiapadas, botas carcomidas, bilhas
arrebentadas, abas corroídas,
com seus olhos virados para os que

as deixaram sozinhas, desprezadas,
esquecidas com outras coisas, sejam:
búzios, conchas, madeiras de naufrágio,
penas de ave e penas de caneta,

e as outras pobres coisas, pobres sons,
coitos findos, engulhos, dramas tristes,
repetidos, monótonos, exaustos,

visitados tão só pelo abandono,
tão só pela fadiga em que essas ditas
coisas goradas e órfãs se desgastam.

Jorge de Lima




(Fotografia de Julián del Nogal)


quinta-feira, 23 de novembro de 2023

Corsino Fortes - Pecado original




PECADO ORIGINAL

Passo pelos dias
E deixo-os negros
Mais negros
Do que a noute brumosa.

Olho para as coisas
E torno-as velhas
Tão velhas
A cair de carunchos.

Só charcos imundos
Atestam no solo
As pegadas do meu pisar
E fica sempre rubro vermelho
Todo o rio por onde me lavo.

E não poder fugir
Não poder fugir nunca
A este destino
De dinamitar rochas
Dentro do peito...

Corsino Fortes



(Fotografia de Harald Felgner, Tarrafal, Santiago, Cabo Verde)


sábado, 18 de novembro de 2023

Maria Bethânia lê Manoel de Barros



(Trecho extraído do DVD Língua de Brincar, direção Lúcia Castello Branco e Gabriel Sanna):


Um monge descabelado me disse no caminho: “Eu queria construir uma ruína. Embora eu saiba que ruína é uma desconstrução. Minha ideia era de fazer alguma coisa ao jeito de tapera. Alguma coisa que servisse para abrigar o abandono, como as taperas abrigam. Porque o abandono pode não ser apenas um homem debaixo da ponte, mas pode ser também de um gato no beco ou de uma criança presa num cubículo. O abandono pode ser também de uma expressão que tenha entrado para o arcaico ou mesmo de uma palavra. Uma palavra que esteja sem ninguém dentro. (O olho do monge estava perto de ser um canto.) Continuou: digamos que a palavra AMOR. A palavra amor está quase vazia. Não tem gente dentro dela. Queria construir uma ruína para a palavra amor. Talvez ela renascesse das ruínas, como o lírio pode nascer de um monturo”. E o monge se calou descabelado.

Manoel de Barros




quinta-feira, 16 de novembro de 2023

Rui Knopfli - Invernal




INVERNAL

Corre já um arrepio pela crista
de Novembro. A imprevisível surpresa
da luz de inverno é a sua agressiva
doçura horizontal. Toma-se de frio

o ombro esquerdo, a moinha persistente
espreitando o coração cansado.
Subo devagar o Mall e a luz
fere-me os olhos frontalmente, filtrada,

fina e branca, quase paralela ao solo,
como em África nunca aconteceria.
Perpendicular, fita-me de frente,
rasante ao chão como se lhe pedisse

que, por fim, me receba. Novembro,
agora pressago, Novembro, agora
sobre o ombro esquerdo, baixando,
insidioso, sobre o lado dito fatal.

Rui Knopfli



(Fotografia de Tracey Tann)

quarta-feira, 15 de novembro de 2023

Ana Luísa Amaral - Sarça ardente




SARÇA ARDENTE

Um toque leve,
e eu perder-me-ei
- pelas planícies todas do azul,
pelos campos mais longos
que quiseres,
em direcção a leste, a norte,
a sul

Um toque tão macio de rouxinol
que a tortura se apague,
um nome se incendeie
junto ao chão
e expluda com a tarde

Desliza-me na pele
o fio incandescente dos teus dedos,
que eu entrarei de frente
pelo sol,
e arderei no sol,
sem medo

Ana Luísa Amaral




quinta-feira, 9 de novembro de 2023

Maria do Rosário Pedreira - Língua madrasta



LÍNGUA MADRASTA

À procura de umas fotografias antigas em casa da minha mãe, fui dar com um desses caderninhos de significados em que escrevíamos, do lado esquerdo, uma palavra que não conhecíamos e, do direito (depois de consultarmos o dicionário ou perguntarmos a um adulto), um sinónimo ou a respectiva definição. E, tendo em conta que na capa estava escrito "3.ª Classe" a tinta permanente, fiquei admirada com o número de palavras lá registadas que hoje seriam consideradas difíceis para uma catraia de 8 anos: animosidade, baeta, comezinho, ícone, ninharia... De facto, desde que as novas tecnologias ditaram uma mudança de paradigma - e sobretudo por falta de leitura, mas também pela informalidade que se imprimiu à comunicação -, os jovens usam um léxico extremamente reduzido e estão cada vez mais longe de dominar a língua materna.

Não falo exclusivamente de Portugal. Na Nova Zelândia, num exame nacional de História realizado em Novembro passado, pedia-se aos alunos que comentassem a afirmação de Júlio César de que os acontecimentos importantes resultam muitas vezes de causas insignificantes ("Events of importance are often the result of trivial causes"). Ora, quando saíram as notas, eram inusitadamente baixas; e houve uma onda de indignação por parte dos estudantes até se concluir que a maioria (e estamos a falar de pré-universitários) não sabia o que queria dizer "trivial" ou, pelo menos, não conhecia o seu significado naquele contexto. (Um caderninho com a definição de "comezinho" e "ninharia" talvez os tivesse ajudado, mas julgo tratar-se de um instrumento pedagógico fora de moda.)

Se dantes praticamente só era mau aluno a História quem não pegava num livro, actualmente já não é bem assim, uma vez que o desconhecimento da língua afecta de forma decisiva a compreensão de qualquer matéria, incluindo as que, à primeira vista, dispensam a palavra. A este respeito, contaram-me, de resto, uma história curiosa. Num teste de Matemática, o enunciado de um problema começava assim: "Num aviário, os ovos são embalados em caixas de seis." Mal acabou de ler a frase, um dos alunos levantou-se para ir perguntar à professora: "De seis quê?" E, achando que o rapaz nem se dera ao trabalho de ler a frase com atenção, a senhora mandou-o para o lugar com uma resposta brincalhona: "De lagartixas, que havia de ser?" Porém, nos cinquenta minutos seguintes, acabou-se-lhe o sentido de humor: é que houve mais oito alunos a perguntar a mesmíssima coisa. Adeus, futuro.

Maria do Rosário Pedreira

Publicada no Diário de Notícias (30 de março de 2019)


(Fotografia de Marcos Ferreira da Silva)



quarta-feira, 1 de novembro de 2023

Manuel Bandeira - Momento num café

 



MOMENTO NUM CAFÉ

Quando o enterro passou
Os homens que se achavam no café
Tiraram o chapéu maquinalmente
Saudavam o morto distraídos
Estavam todos voltados para a vida
Absortos na vida.

Um no entanto se descobriu num gesto longo e demorado
Olhando o esquife longamente
Este sabia que a vida é uma agitação feroz e sem finalidade
Que a vida é traição
Esaudava a matéria que passava
Liberta para sempre da alma extinta.

Manuel Bandeira


Estrela da manhã (1936)



(Fotografia de Ivaldo Cavalcante)



terça-feira, 31 de outubro de 2023

Carlos Drummond de Andrade - Lembrança do mundo antigo



LEMBRANÇA DO MUNDO ANTIGO

Clara passeava no jardim com as crianças.
O céu era verde sobre o gramado,
a água era dourada sob as pontes,
outros elementos eram azuis, róseos, alaranjados,
o guarda-civil sorria, passavam bicicletas,

a menina pisou a relva para pegar um pássaro,
o mundo inteiro, a Alemanha, a China, tudo era
tranquilo em redor de Clara.

As crianças olhavam para o céu: não era proibido.
A boca, o nariz, os olhos estavam abertos. Não havia perigo.
Os perigos que Clara temia eram a gripe, o calor, os insetos.
Clara tinha medo de perder o bonde das 11 horas,
esperava cartas que custavam a chegar,
nem sempre podia usar vestido novo. Mas passeava
no jardim, pela manhã!!!
Havia jardins, havia manhãs naquele tempo!!!

Carlos Drummond de Andrade


  Sentimento do Mundo (1940)



segunda-feira, 23 de outubro de 2023

Noémia de Sousa - Súplica


SÚPLICA 

Tirem-nos tudo,
mas deixem-nos a música!

Tirem-nos a terra em que nascemos,
onde crescemos
e onde descobrimos pela primeira vez
que o mundo é assim:
um labirinto de xadrez…

Tirem-nos a luz do sol que nos aquece,
a tua lírica de xingombela
nas noites mulatas
da selva moçambicana
(essa lua que nos semeou no coração
a poesia que encontramos na vida)
tirem-nos a palhota ̶ humilde cubata
onde vivemos e amamos,
tirem-nos a machamba que nos dá o pão,
tirem-nos o calor de lume
(que nos é quase tudo)
̶ mas não nos tirem a música!

Podem desterrar-nos,
levar-nos
para longes terras,
vender-nos como mercadoria,
acorrentar-nos
à terra, do sol à lua e da lua ao sol,
mas seremos sempre livres
se nos deixarem a música!
Que onde estiver nossa canção
mesmo escravos, senhores seremos;
e mesmo mortos, viveremos.
E no nosso lamento escravo
estará a terra onde nascemos,
a luz do nosso sol,
a lua dos xingombelas,
o calor do lume,
a palhota onde vivemos,
a machamba que nos dá o pão!

E tudo será novamente nosso,
ainda que cadeias nos pés
e azorrague no dorso…
E o nosso queixume
será uma libertação
derramada em nosso canto!
̶ Por isso pedimos,
de joelhos pedimos:
Tirem-nos tudo…
mas não nos tirem a vida,
não nos levem a música!

Noémia de Sousa




(Na fotografia, a cantora moçambicana Lenna Bahule)

segunda-feira, 16 de outubro de 2023

Sophia de Mello Breyner Andresen - “Há mulheres que trazem o mar nos olhos…”

 


Há mulheres que trazem o mar nos olhos
Não pela cor
Mas pela vastidão da alma
E trazem a poesia nos dedos e nos sorrisos
Ficam para além do tempo
Como se a maré nunca as levasse
... Da praia onde foram felizes
Há mulheres que trazem o mar nos olhos
pela grandeza da imensidão da alma
pelo infinito modo como abarcam as coisas e os Homens...
Há mulheres que são maré em noites de tardes
e calma.

Sophia de Mello Breyner Andresen





(Fotografia de Jamie Marcellus, 2023)


segunda-feira, 9 de outubro de 2023

João de Deus - Amores, amores

 



AMORES, AMORES

Não sou eu tão tola
Que caia em casar;
Mulher não é rola
Que tenha um só par:
Eu tenho um moreno,
Tenho um de outra cor,
Tenho um mais pequeno,
Tenho outro maior.

Que mal faz um beijo,
Se apenas o dou,
Desfaz-se-me o pejo,
E o gosto ficou?
Um deles por graça
Deu-me um, e, depois,
Gostei da chalaça,
Paguei-lhe com dois.

Abraços, abraços,
Que mal nos farão?
Se Deus me deu braços,
Foi essa a razão:
Um dia que o alto
Me vinha abraçar,
Fiquei-lhe de um salto
Suspensa no ar.

Vivendo e gozando,
Que a morte é fatal,
E a rosa em murchando
Não vale um real:
Eu sou muito amada,
E há muito que sei
Que Deus não fez nada
Sem ser para quê.

Amores, amores,
Deixá-los dizer;
Se Deus me deu flores,
Foi para as colher:
Eu tenho um moreno,
Tenho um de outra cor,
Tenho um mais pequeno,
Tenho outro maior.

João de Deus



(Fotografia de Beatriz Futigami)


segunda-feira, 2 de outubro de 2023

Álvaro de Campos / Fernando Pessoa - Aniversário



ANIVERSÁRIO

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu era feliz e ninguém estava morto.
Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos,
E a alegria de todos, e a minha, estava certa com uma religião qualquer.

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu tinha a grande saúde de não perceber coisa nenhuma,
De ser inteligente para entre a família,
E de não ter as esperanças que os outros tinham por mim.
Quando vim a ter esperanças, já não sabia ter esperanças.
Quando vim a olhar para a vida, perdera o sentido da vida.

Sim, o que fui de suposto a mim-mesmo,
O que fui de coração e parentesco.
O que fui de serões de meia-província,
O que fui de amarem-me e eu ser menino,
O que fui — ai, meu Deus!, o que só hoje sei que fui...
A que distância!...
(Nem o acho...)
O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!

O que eu sou hoje é como a umidade no corredor do fim da casa,
Pondo grelado nas paredes...
O que eu sou hoje (e a casa dos que me amaram treme através das minhas
lágrimas),
O que eu sou hoje é terem vendido a casa,
É terem morrido todos,
É estar eu sobrevivente a mim-mesmo como um fósforo frio...

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos...
Que meu amor, como uma pessoa, esse tempo!
Desejo físico da alma de se encontrar ali outra vez,
Por uma viagem metafísica e carnal,
Com uma dualidade de eu para mim...
Comer o passado como pão de fome, sem tempo de manteiga nos dentes!

Vejo tudo outra vez com uma nitidez que me cega para o que há aqui...
A mesa posta com mais lugares, com melhores desenhos na loiça, com mais copos,
O aparador com muitas coisas — doces, frutas o resto na sombra debaixo do alçado —,
As tias velhas, os primos diferentes, e tudo era por minha causa,
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos...

Pára, meu coração!
Não penses! Deixa o pensar na cabeça!
Ó meu Deus, meu Deus, meu Deus!
Hoje já não faço anos.
Duro.
Somam-se-me dias.
Serei velho quando o for.
Mais nada.
Raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira!...

O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!...

15/10/1929

Álvaro de Campos / Fernando Pessoa



Nota sobre o vídeo: Germana Tânger (Lisboa, 1920 - 2018 ), foi uma atriz, encenadora, declamadora e divulgadora de poesia portuguesa.


quinta-feira, 31 de agosto de 2023

Almada Negreiros - Nome de Guerra

 


Um dia na cidade do Porto presenciei uma cena entre um homem e uma mulher que nunca mais pude esquecer. O cenário onde isto se passou é dos mais pitorescos que os meus olhos viram: a Ribeira, ou a Ribeira Velha, creio eu que lhe chamam. É um cais sobre o Douro, perto da ponte de D. Luís. Todo o aspecto em redor é pesado e amontoado, conforme o carácter da cidade. Desde aquele cais a cidade sobe sempre em todas as direcções até à Torre dos Clérigos. Na outra margem a ascensão iguala-se à de cá, de modo que o rio parece ter metido pelo mais alto de um monte que ficou dividido. Tudo isto faz com que o cais nos dê a estúpida impressão de estar enterrado. Lembro-me de umas interessantíssimas casas cujos alicerces se adivinham por causa da solidez com que as suas fachadas intimam os nossos olhos. Julgo serem vermelhas, ou foi a impressão violenta da cor que me deixaram. Do que bem me lembro é dos arcos em vez de portas e de umas janelas que pareciam desviadas dos seus respectivos lugares. Os arcos abriam umas lojas não sei de quê, pois fixei apenas os seus fundos negros, os mais negros e os mais fundos que tenho conhecido.

Pondo por cima disto tudo uma camada de antiguidade cor de ardósia e de ferrugem, de nevoeiro fabril e de salitre, a descrição deve ficar aproximada, descontando, é claro, o autor e a circunstância de ter gozado esta vista apenas uma vez.

No cais as pessoas são bem as das respectivas casas. A aglomeração de gente é como a do casario. Um mercado justifica aquela frequência. Além disto, a carga e a descarga das fragatas ocupa uma quantidade imensa de mulheres e de homens, mas sobretudo mulheres. É uma raça diferente da do mercado. Poucas vezes me foi dado compreender melhor o que significam aquelas: ganhar o pão de cada dia, do que ao ver essas mulheres que iam e vinham sobre duas grossas e compridas pranchas de madeira lançadas desde a borda da fragata até ao cais, numa distância parecida com uns dez metros. O equilíbrio dessas mulheres não tinha uma hesitação à altura de três homens da água, e em menos de três palmos de largura durante os dez metros. Acrescente-se a isto que levavam à cabeça as canastras, umas vezes vazias e outras vezes cheias até acima, em pirâmide, conforme iam ou vinham da fragata. Daquela vez não me lembro do que descarregavam; apetecia-me que fossem laranjas, mas não insisto com a memória; tenho, contudo, ainda na mente a maneira rápida como davam conta daquele serviço, conservando sempre um tempo ginástico, e não digo militar, porque além dos gestos sóbrios e simplificados, corrigidos para o próprio trabalho repetido em que andavam, havia também uma beleza de linhas e de formas à qual não era estranha a sua natureza feminina. O gesto de abaixarem-se para acertar a cabeça ao meio da canastra carregada, a marcha sobre a prancha com o peso todo à cabeça, o modo de despejar a canastra inclinando o corpo de lado pela cintura eram exactos e cheios de graça. As alcochetanas que descarregam das fragatas o carvão inglês nos cais de Lisboa por este mesmo processo não podem infelizmente ser-lhes comparadas. Se não lhes falta a graça, a sua graça é outra, mas não dispõem das ossaturas opulentas das mulheres do Norte e muito menos daquela dignidade externa, a qual me surpreendeu em mulheres de pé descalço. Eram umas dezenas de mulheres todas semelhantes. Por contraste com a sua actividade havia no cais uns homens sentados e outros deitados ao sol em sacas de sarapilheira cheias de mercadoria. Para um destes homens aquelas dezenas de mulheres não eram todas a mesma; esperava sempre que essa passasse mais perto donde ele estava para lhe dizer o que tinha a dizer-lhe. A rapariga não fazia caso e seguia como as outras. Era um dito qualquer e talvez sempre o mesmo de todas as vezes que acontecia chegar a altura de ela passar por onde ele estava. Centenas de vezes e não falhou uma! Mas de uma vez a rapariga vinha a meio da prancha com a canastra carregadinha, e ele começou logo como de costume a gracejar com ela; sem ninguém esperar, ali mesmo de cima da prancha, parou de repente, despejou a canastra no rio, apontou o braço livre em direcção ao tal homem e com o sangue todo nas faces disse-lhe esta única palavra:

— Desgraçador!

Nunca mais esquece esta palavra.

José de Almada Negreiros


Nome de Guerra [1938], edição de Fernando Cabral Martins, Luis Manuel Gaspar, Mariana Pinto Dos Santos e Sara Afonso Ferreira, 4.ª ed., revista pelo original de Almada entretanto localizado, Lisboa, Assírio & Alvim, 2016

(Lido em Aureas Tenebrae, de Luis Manuel Gaspar)


(Fotografia de Eduardo Vales - Postigo do Carvão, Ribeira, Porto, 2020)

 

segunda-feira, 28 de agosto de 2023

Vinicius de Moraes - Receita de mulher




RECEITA DE MULHER

As muito feias que me perdoem
Mas beleza é fundamental. É preciso
Que haja qualquer coisa de flor em tudo isso
Qualquer coisa de dança, qualquer coisa de haute couture
Em tudo isso (ou então
Que a mulher se socialize elegantemente em azul, como na República Popular Chinesa).
Não há meio-termo possível. É preciso
Que tudo isso seja belo. É preciso que súbito
Tenha-se a impressão de ver uma garça apenas pousada e que um rosto
Adquira de vez em quando essa cor só encontrável no terceiro minuto da aurora.
É preciso que tudo isso seja sem ser, mas que se reflita e desabroche
No olhar dos homens. É preciso, é absolutamente preciso
Que seja tudo belo e inesperado. É preciso que umas pálpebras cerradas
Lembrem um verso de Éluard e que se acaricie nuns braços
Alguma coisa além da carne: que se os toque
Como o âmbar de uma tarde. Ah, deixai-me dizer-vos
Que é preciso que a mulher que ali está como a corola ante o pássaro
Seja bela ou tenha pelo menos um rosto que lembre um templo e
Seja leve como um resto de nuvem: mas que seja uma nuvem
Com olhos e nádegas. Nádegas é importantíssimo. Olhos, então
Nem se fala, que olhem com certa maldade inocente. Uma boca
Fresca (nunca úmida!) é também de extrema pertinência.
É preciso que as extremidades sejam magras; que uns ossos
Despontem, sobretudo a rótula no cruzar as pernas, e as pontas pélvicas
No enlaçar de uma cintura semovente.
Gravíssimo é porém o problema das saboneteiras: uma mulher sem saboneteiras
É como um rio sem pontes. Indispensável
Que haja uma hipótese de barriguinha, e em seguida
A mulher se alteia em cálice, e que seus seios
Sejam uma expressão greco-romana, mais que gótica ou barroca
E possam iluminar o escuro com uma capacidade mínima de cinco velas.
Sobremodo pertinaz é estarem a caveira e a coluna vertebal
Levemente à mostra; e que exista um grande latifúndio dorsal!
Os membros que terminem como hastes, mas bem haja um certo volume de coxas
E que elas sejam lisas, lisas como a pétala e cobertas de suavíssima penugem
No entanto sensível à carícia em sentido contrário.
É aconselhável na axila uma doce relva com aroma próprio
Apenas sensível (um mínimo de produtos farmacêuticos!)
Preferíveis sem dúvida os pescoços longos
De forma que a cabeça dê por vezes a impressão
De nada ter a ver com o corpo, e a mulher não lembre
Flores sem mistério. Pés e mãos devem conter elementos góticos
Discretos. A pele deve ser fresca nas mãos, nos braços, no dorso e na face
Mas que as concavidades e reentrâncias tenham uma temperatura nunca inferior
A 37º centígrados, podendo eventualmente provocar queimaduras
Do primeiro grau. Os olhos, que sejam de preferência grandes
E de rotação pelo menos tão lenta quanto a da terra; e
Que se coloquem sempre para lá de um invisível muro de paixão
Que é preciso ultrapassar. Que a mulher seja em princípio alta
Ou, caso baixa, que tenha a atitude mental dos altos píncaros.
Ah, que a mulher dê sempre a impressão de que se se fechar os olhos
Ao abri-los ela não mais estará presente
Com seu sorriso e suas tramas. Que ela surja, não venha; parta, não vá
E que possua uma certa capacidade de emudecer subitamente e nos fazer beber
O fel da dúvida. Oh, sobretudo
Que ela não perca nunca, não importa em que mundo
Não importa em que circunstâncias, a sua infinita volubilidade
De pássaro; e que acariciada no fundo de si mesma
Transforme-se em fera sem perder sua graça de ave; e que exale sempre
O impossível perfume; e destile sempre
O embriagante mel; e cante sempre o inaudível canto
Da sua combustão; e não deixe de ser nunca a eterna dançarina
Do efêmero; e em sua incalculável imperfeição
Constitua a coisa mais bela e mais perfeita de toda a criação inumerável.

Rio de Janeiro, 1959

Vinicius de Moraes



(Fotografia:  © Mônica Silveira)




segunda-feira, 21 de agosto de 2023

Rui Knopfli - Mangas verdes com sal

 



MANGAS VERDES COM SAL

Mangas verdes com sal
sabor longínquo, sabor acre
da infância a canivete repartida
no largo semicírculo da amizade.

Sabor lento, alegria reconstituída
no instante desprevenido, na maré-baixa,
no minuto da suprema humilhação.

Sabor insinuante que retorna devagar
ao palato amargo, à boca ardida,
à crista do tempo,ao meio da vida.

Rui Knopfli


Mangas verdes com sal (1969)




Capa e ilustração de António Quadros (1933-1994)


segunda-feira, 14 de agosto de 2023

Fernando Assis Pacheco - Avé cheia de graça

 


AVÉ CHEIA DE GRAÇA

Passo o cano da Walter pelo peito.
Lá fora andam soldados, ouço a voz
de alguém abrindo a casa do correio.
Quem daria por coisa tão nenhuma?
Ó palmeiras adeus. Ó pedras negras
onde ficou um rasto de borracha.
E este rio também, que me ensinava
a descerrar os olhos prisioneiros.

Estou deitado no catre. A toda a volta
eu vejo roupa, roupa em malas, e uma estante
com livros, roupa ainda, sapatilhas.

Não é desta, já sei. O cano frio
acordou qualquer coisa nas costelas.
Avé cheia de graça, e o seu ventre.


Fernando Assis Pacheco, 1964


“Lote de salvados”,  in A Musa Irregular, Assírio & Alvim, 2006




quarta-feira, 9 de agosto de 2023

José Luís Peixoto - Abraço



Quando leio há uma voz que lê dentro de mim. Paro o olhar sobre o texto impresso, mas não acredito que seja o meu olhar que lê. O meu olhar fica embaciado. É essa voz que lê. Quando é séria, ouço-a falar-me de assuntos sérios. Às vezes, sussurra-me. Às vezes grita-me. Essa voz não é a minha voz. Não é a voz que, em filmagens de festas de anos e de natais, vejo sair da minha boca, do movimento dos meus lábios, a voz que estranho por, num rosto parecido com o meu, não me parecer minha. A voz que ouço quando leio existe dentro de mim, mas não é minha. Não é a voz dos meus pensamentos. (...)

Talvez já tenhas percebido que eu não sou eu. Eu sou a própria voz que ouves quando lês. Hoje, pela primeira vez, quero falar directamente contigo. Quero dizer que existo nestas palavras. Através delas, quero apenas dizer-te que existo. Estou aqui. As palavras que te digo desde que aprendeste a ler, a ouvir-me, são o meu corpo. Eu sou todas essas palavras. Sou as palavras que deixei dentro de ti e que sabes de cor. Sou as palavras que esqueceste...

José Luís Peixoto


Do seu romance Abraço. Quetzal Editores, 2011



(Fotografia de Eugenio García, Retrato de una lectora, 2011)



segunda-feira, 31 de julho de 2023

Nuno Júdice - Receita para fazer o azul




RECEITA PARA FAZER O AZUL

Se quiseres fazer azul,
pega num pedaço de céu e mete-o numa panela grande,
que possas levar ao lume do horizonte;
depois mexe o azul com um resto de vermelho
da madrugada, até que ele se desfaça;
despeja tudo num bacio bem limpo,
para que nada reste das impurezas da tarde.
Por fim, peneira um resto de ouro da areia
do meio-dia, até que a cor pegue ao fundo de metal.
Se quiseres, para que as cores se não desprendam
com o tempo, deita no líquido um caroço de pêssego queimado.
Vê-lo-ás desfazer-se, sem deixar sinais de que alguma vez
ali o puseste; e nem o negro da cinza deixará um resto de ocre
na superfície dourada. Podes, então, levantar a cor
até à altura dos olhos, e compará-la com o azul autêntico.
Ambas as cores te parecerão semelhantes, sem que
possas distinguir entre uma e outra.
Assim o fiz - eu, Abraão ben Judá Ibn Haim,
iluminador de Loulé - e deixei a receita a quem quiser,
algum dia, imitar o céu.

Nuno Júdice




(Fotografia de Jorge Cardim)

segunda-feira, 24 de julho de 2023

Carlos Drummond de Andrade - Os ombros suportam o mundo

 


OS OMBROS SUPORTAM O MUNDO

Tempo de absoluta depuração.
Tempo em que não se diz mais: meu amor.
Porque o amor resultou inútil.
E os olhos não choram.
E as mãos tecem apenas o rude trabalho.
E o coração está seco.

Em vão mulheres batem à porta, não abrirás.
Ficaste sozinho, a luz apagou-se,
mas na sombra teus olhos resplandecem enormes.
És todo certeza, já não sabes sofrer.
E nada esperas de teus amigos.

Pouco importa venha a velhice, que é a velhice?
Teus ombros suportam o mundo
e ele não pesa mais que a mão de uma criança.
As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios
provam apenas que a vida prossegue
e nem todos se libertaram ainda.
Alguns, achando bárbaro o espetáculo
prefeririam (os delicados) morrer.
Chegou um tempo em que não adianta morrer.
Chegou um tempo que a vida é uma ordem.
A vida apenas, sem mistificação.

Carlos Drummond de Andrade 


Sentimento do Mundo (1940)



segunda-feira, 17 de julho de 2023

Agostinho Neto - Civilização ocidental




CIVILIZAÇÃO OCIDENTAL

Latas pregadas em paus
fixados na terra
fazem a casa

Os farrapos completam
a paisagem íntima

O sol atravessando as frestas
acorda o seu habitante

Depois as doze horas de trabalho
Escravo

Britar pedra
acarretar pedra
britar pedra
acarretar pedra
ao sol
à chuva
britar pedra
acarretar pedra

A velhice vem cedo

Uma esteira nas noites escuras
basta para ele morrer
grato
e de fome.

Agostinho Neto



(Fotografía de Daniel P. Sobreira, Na estrada para Kalandula, 2014)



segunda-feira, 10 de julho de 2023

Fernando Pessoa / Bernardo Soares - “Uma só coisa me maravilha mais do que a estupidez..."



Uma só coisas me maravilha mais do que a estupidez com que a maioria dos homens vive a sua vida: é a inteligência que há nessa estupidez.

A monotonia das vidas vulgares é, aparentemente, pavorosa. Estou almoçando neste restaurante vulgar, e olho, para além do balcão, para a figura do cozinheiro, e, aqui ao pé de mim, para o criado já velho que me serve, como há trinta anos, creio, serve nesta casa. Que vidas são as destes homens? Há quarenta anos que aquela figura de homem vive quase todo o dia numa cozinha; tem umas breves folgas; dorme relativamente poucas horas; vai de vez em quando à terra, de onde volta sem hesitação e sem pena; armazena lentamente dinheiro lento, que se não propõe gastar; adoeceria se tivesse que retirar-se da sua cozinha (definitivamente) para os campos que comprou na Galiza; está em Lisboa há quarenta anos e nunca foi sequer à Rotunda, nem a um teatro, e há um só dia de Coliseu — palhaços nos vestígios interiores da sua vida. Casou não sei como nem porquê, tem quatro filhos e uma filha, e o seu sorriso, ao debruçar-se de lá do balcão em direcção a onde eu estou, exprime uma grande, uma solene, uma contente felicidade. E ele não disfarça, nem que razão para que disfarce. Se a sente é porque verdadeiramente a tem.

E o criado velho que me serve, e que acaba de depor ante mim o que deve ser o milionésimo café da sua deposição de café em mesas? Tem a mesma vida que a do cozinheiro, apenas com a diferença de quatro ou cinco metros — os que distam da localização de um na cozinha para a localização do outro na parte de fora da casa de pasto. No resto, tem dois filhos apenas, vai mais vezes à Galiza, já viu mais Lisboa que o outro, e conhece o Porto, onde esteve quatro anos, e é igualmente feliz.

Revejo, com um pasmo assustado, o panorama destas vidas, e descubro, ao ir ter horror, pena, revolta delas, que quem não tem nem horror, nem pena, nem revolta, são os próprios que teriam direito a tê-las, são os mesmos que vivem essas vidas. E o erro central da imaginação literária: supor que os outros são nós e que devem sentir como nós. Mas, felizmente para a humanidade, cada homem é só quem é, sendo dado ao génio, apenas, o ser mais alguns outros.

Tudo, afinal, é dado em relação àquilo em que é dado. Um pequeno incidente de rua, que chama à porta o cozinheiro desta casa, entretem-no mais que me entretem a mim a contemplação da ideia mais original, a leitura do melhor livro, o mais grato dos sonhos inúteis. E, se a vida é essencialmente monotonia, o facto é que ele escapou à monotonia mais do que eu. E escapa à monotonia mais facilmente do que eu. A verdade não está com ele nem comigo, porque não está com ninguém; mas a felicidade está com ele deveras. Sábio é quem monotoniza a existência, pois então cada pequeno incidente tem um privilégio de maravilha. O caçador de leões não tem aventura para além do terceiro leão Para o meu cozinheiro monótono uma cena de bofetadas na rua tem sempre qualquer coisa de apocalipse modesto. Quem nunca saiu de Lisboa viaja no infinito no carro até Benfica, e, se um dia vai a Sintra, sente que viajou até Marte. O viajante que percorreu toda a terra não encontra de cinco mil milhas em diante novidade, porque encontra só coisas novas; outra vez a novidade, a velhice do eterno novo, mas o conceito abstracto de novidade ficou no mar com a segunda delas. Um homem pode, se tiver a verdadeira sabedoria, gozar o espectáculo inteiro do mundo numa cadeira, sem saber ler, sem falar com alguém, só com o uso dos sentidos e a alma não saber ser triste.

Monotonizar a existência, para que ela não seja monótona. Tornar anódino o quotidiano, para que a mais pequena coisa seja uma distracção. No meio do meu trabalho de todos os dias, baço, igual e inútil, surgem-me visões de fuga, vestígios sonhados de ilhas longínquas, festas em áleas de parques de outras eras, outras paisagens, outros sentimentos, outro eu. Mas reconheço, entre dois lançamentos, que se tivesse tudo isso, nada disso seria meu. Mais vale, na verdade, o patrão Vasques que os Reis de Sonho; mais vale, na verdade, o escritório da Rua dos Douradores do que as grandes áleas dos parques impossíveis. Tendo o patrão Vasques, posso gozar o sonho dos Reis de Sonho; tendo o escritório da Rua dos Douradores, posso gozar a visão interior das paisagens que não existem. Mas se tivesse os Reis de Sonho, que me ficaria para sonhar? Se tivesse as paisagens impossíveis, que me restaria de impossível?

A monotonia, a igualdade baça dos dias mesmos, a nenhuma diferença de hoje para ontem — isto me fique sempre, com a alma desperta para gozar da mosca que me distrai, passando casual ante meus olhos, da gargalhada que se ergue volúvel da rua incerta, a vasta libertação de serem horas de fechar o escritório, o repouso infinito de um dia feriado. Posso imaginar-me tudo, porque não sou nada. Se fosse alguma coisa, não poderia imaginar. O ajudante de guarda-livros pode sonhar-se imperador romano; o Rei de Inglaterra não o pode fazer, porque o Rei de Inglaterra está privado de ser, em sonhos, outro rei que não o rei que é. A sua realidade não o deixa sentir.

s.d.

Fernando Pessoa


Livro do Desassossego por Bernardo Soares.Vol.I. Fernando Pessoa. (Recolha e transcrição dos textos de Maria Aliete Galhoz e Teresa Sobral Cunha. Prefácio e Organização de Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1982. - 56.

"Fase confessional", segundo António Quadros (org.) in Livro do Desassossego, por Bernardo Soares, Vol II. Fernando Pessoa. Mem Martins: Europa-América, 1986. 
 
Arquivo Pessoa

segunda-feira, 3 de julho de 2023

Ruy Duarte de Carvalho - Chagas de salitre



CHAGAS DE SALITRE

Olha-me este país a esboroar-se
em chagas de salitre
e os muros, negros, dos fortes
roidos pelo vegetar
da urina e do suor
a carne virgem mandada
cavar glórias e grandeza
do outro lado do mar.

Olha-me a história de um país perdido:
marés vazantes de gente amordaçada,
a ingénua tolerância aproveitada
em carne. Pergunta ao mar,
que é manso e afaga ainda
a mesma velha costa erosionada.

Olha-me as brutas construções quadradas:
embarcadouros, depósitos de gente.
Olha-me os rios renovados de cadáveres,
os rios turvos de espesso deslizar
dos braços e das mãos do meu país.

Olha-me as igrejas restauradas
sobre ruínas de propalada fé:
paredes brancas de um urgente brio
escondendo ferros de educar gentio.

Olha-me a noite herdada, nestes olhos
de um povo condenado a amassar-te o pão.
Olha-me amor, atenta podes ver
uma história de pedra a construir-se
sobre uma história morta a esboroar-se
em chagas de salitre.

Rua Duarte de Carvalho


 Chão de oferta, 1972


(Santarém, Portugal, 1941 - Swakopmund, Namibia, 2010) Radicado em Angola



(Fotografia de Luísa Cortesão, fui aprender as cores e são as minhas, Maputo, 2007)


sexta-feira, 30 de junho de 2023

Ruy Belo - Portugal sacro-profano (vii)




O lugar onde o coração se esconde
é onde o vento norte corta luas brancas no azul do mar
e o poeta solitário escolhe igreja pra casar
O lugar onde o coração se esconde
é em dezembro o sol cortado pelo frio
e à noite as luzes a alinhar o rio
O lugar onde o coração se esconde
é onde contra a casa soa o sino
e dia a dia o homem soma o seu destino
O lugar onde o coração se esconde
é sobretudo agosto vento música raparigas em cabelo
feira das sextas-feiras gado pó e povo
é onde se consente que nasça de novo
àquele que foi jovem e foi belo
mas o tempo a pouco e pouco arrefeceu
O lugar onde o coração se esconde
é o novo passado a ida pra o liceu
Mas onde fica e como é que se chama
a terra do crepúsculo de algodão em rama
das muitas procissões dos contra-luz no bar
da surpresa violenta desse sempre renovado mar?
O lugar onde o coração se esconde
e a mulher eterna tem a luz na fronte
fica no norte e é vila do conde

Ruy Belo



“Portugal sacro-profano – Vila do Conde” in «Homem de Palavra(s)» (1969). Reunido hoje no Vol. I da «Obra Poética de Ruy Belo», da Editorial Presença. O “Portugal sacro-profano” é um conjunto de sete poemas, repartidos pelo autor entre «Boca bilingue» (I a V) e «Homem de palavra(s)» (VI a VII)

Dito por Luís Miguel Cintra in «Poemas de Ruy Belo ditos por Luís Miguel Cintra», Assírio & Alvim, 2003

Audio: Michael Nyman, “Love doesn't end” in «The End of the Affair OST»

TSF




segunda-feira, 26 de junho de 2023

Vinicius de Moraes - Rosário



ROSÁRIO

E eu que era um menino puro
Não fui perder minha infância
No mangue daquela carne!
Dizia que era morena
Sabendo que era mulata
Dizia que era donzela
Nem isso não era ela
Era uma moça que dava.
Deixava... mesmo no mar
Onde se fazia em água
Onde de um peixe que era
Em mil se multiplicava
Onde suas mãos de alga
Sobre meu corpo boiavam
Trazendo à tona águas-vivas
Onde antes não tinha nada.
Quanto meus olhos não viram
No céu da areia da praia
Duas estrelas escuras
Brilhando entre aquelas duas
Nebulosas desmanchadas
E não beberam meus beijos
Aqueles olhos noturnos
Luzindo de luz parada
Na imensa noite da ilha!
Era minha namorada
Primeiro nome de amada
Primeiro chamar de filha...
Grande filha de uma vaca!
Como não me seduzia
Como não me alucinava
Como deixava, fingindo
Fingindo que não deixava!
Aquela noite entre todas
Que cica os cajus! travavam!
Como era quieto o sossego
Cheirando a jasmim-do-cabo!
Lembro que nem se mexia
O luar esverdeado
Lembro que longe, nos Ionges
Um gramofone tocava

Lembro dos seus anos vinte
Junto aos meus quinze deitados
Sob a luz verde da lua.
Ergueu a saia de um gesto
Por sobre a perna dobrada
Mordendo a carne da mão
Me olhando sem dizer nada
Enquanto jazente eu via
Como uma anêmona na água
A coisa que se movia
Ao vento que a farfalhava.
Toquei-lhe a dura pevide
Entre o pêlo que a guardava
Beijando-lhe a coxa fria
Com gosto de cana brava.
Senti à pressão do dedo
Desfazer-se desmanchada

Como um dedal de segredo
A pequenina castanha
Gulosa de ser tocada.
Era uma dança morena
Era uma dança mulata
Era o cheiro de amarugem
Era a lua cor de prata
Mas foi só naquela noite!
Passava dando risada
Carregando os peitos loucos
Quem sabe para quem, quem sabe?
Mas como me seduzia
A negra visão escrava
Daquele feixe de águas
Que sabia ela guardava
No fundo das coxas frias!
Mas como me desbragava
Na areia mole e macia!
A areia me recebia
E eu baixinho me entregava
Com medo que Deus ouvisse
Os gemidos que não dava!
Os gemidos que não dava...
Por amor do que ela dava
Aos outros de mais idade
Que a carregaram da ilha
Para as ruas da cidade
Meu grande sonho da infância
Angústia da mocidade.


                         Rio de Janeiro, 1946  
 
Vinicius de Moraes
 
 
(Fotografia de Ivan Alecrim, Larissa Albuquerque, 2013)





sexta-feira, 23 de junho de 2023

Fernando Pessoa / Alberto Caeiro - “Noite de S. João para além do muro do meu quintal…”

 

Noite de S. João para além do muro do meu quintal.
Do lado de cá, eu sem noite de S. João.
Porque há S. João onde o festejam.
Para mim há uma sombra de luz de fogueiras na noite,
Um ruído de gargalhadas, os baques dos saltos.
E um grito casual de quem não sabe que eu existo.

12-4-1919



“Poemas Inconjuntos”. In Poemas de Alberto Caeiro. Fernando Pessoa. (Nota explicativa e notas de João Gaspar Simões e Luiz de Montalvor.) Lisboa: Ática, 1946 (10ª ed. 1993). - 79. 1ª publ. in “Poemas Inconjuntos”. In Athena, nº 5. Lisboa: Fev. 1925. 

segunda-feira, 19 de junho de 2023

Manuel Resende - Também o que é eterno

 



TAMBÉM O QUE É ETERNO

Também o que é eterno morre um dia.
Eu tusso e sinto a dor que a tosse traz;
O doutor quer por força a ecografia,
Mas eu não estou pra tantas precisões.

Eu rio à morte com um riso largo:
Morrer é tão banal, tão tem que ser!
Disto ou daquilo, que me importa a mim?
Mas, ó horror, com fotos, não, nem documentos!

A tanta exactidão mata o mistério.
O pH, o índice quarenta...
Não quero as pulsações, os eritrócitos,
O temeroso alzaimer, ou o cancro,
Nem sequer o tão raro, do coração.

Ver o pulmão, o peito aberto, o coração,
A palpitar a cores no computador?
Eu morro, eu morro, não se preocupem,
Mas sem saber, de gripe, ou duma coisa,
Ou doutra coisa.

Manuel Resende

(1948 - 2020)



“Poesia reunida” de Manuel Resende em Antologia do Esquecimento.



terça-feira, 13 de junho de 2023

Fernando Pessoa - Liberdade


Já lemos e ouvimos este poema de Fernando Pessoa em 2014, e hoje voltamos a ler e ouvir, noutra versão. O autor português nasceu em Lisboa a 13 de junho de 1888.



LIBERDADE
(Falta uma citação de Séneca)

Ai que prazer
Não cumprir um dever,
Ter um livro para ler
E não o fazer!
Ler é maçada,
Estudar é nada.
O sol doira
Sem literatura.
O rio corre, bem ou mal,
Sem edição original.
E a brisa, essa,
De tão naturalmente matinal,
Como tem tempo não tem pressa...

Livros são papéis pintados com tinta.
Estudar é uma coisa em que está indistinta
A distinção entre nada e coisa nenhuma.

Quanto é melhor, quando há bruma,
Esperar por D. Sebastião,
Quer venha ou não!

Grande é a poesia, a bondade e as danças...
Mas o melhor do mundo são as crianças,
Flores, música, o luar, e o sol, que peca
Só quando, em vez de criar, seca.

E mais do que isto
É Jesus Cristo,
Que não sabia nada de finanças
Nem consta que tivesse biblioteca...



Fernando Pessoa - Não digas nada!



Não digas nada!
Não, nem a verdade!
Há tanta suavidade
Em nada se dizer
E tudo se entender —
Tudo metade
De sentir e de ver...
Não digas nada!
Deixa esquecer.

Talvez que amanhã
Em outra paisagem
Digas que foi vã
Toda esta viagem
Até onde quis
Ser quem me agrada...
Mas ali fui feliz...
Não digas nada.

Fernando Pessoa

23-8-1934


Poesias Inéditas (1930-1935). Fernando Pessoa. (Nota prévia de Jorge Nemésio.) Lisboa: Ática, 195.



(Fotografia de Alicia Idalustre)



sábado, 10 de junho de 2023

Camões em dialecto macaense

 



ESPARSA AO DESCONCERTO DO MUNDO

Os bons vi sempre passar
No mundo graves tormentos;
E para mais m´espantar,
Os maus vi sempre nadar
Em mar de contentamentos.
Cuidando alcançar assim
O bem tão mal ordenado.
Fui mau, mas fui castigado:
Assim que só para mim
Anda o mundo concertado

Luís de Camões


Tudo gente bom iou sempre olá passá
Na vida tánto grandi sofrimento;
Pa iou más espantá,
Olá mau gente mau tudo ora nadá
Na mar di tudo contentamento.
Pensá qui lô ganhá d’istunga manéra
Tudo bom ancuza assi mal regulado,
Iou ja ficá mau, mas ficá castigado:
Sô pa iou, sã divera,
Mundo ta andá indiretado.

(Versão de José dos Santos Ferreira) 


Planta de Macau desenhada por Barreto de Resende para uma das vias originais do Livro das Fortalezas da Índia Oriental do cronista António Bocarro (ms. Goa, 1635) (*)



terça-feira, 6 de junho de 2023

Fernanda Young - Votos de submissão

Fernanda Young


VOTOS DE SUBMISSÃO 

Caso você queira posso passar seu terno, aquele que você não usa por estar amarrotado.
Costuro as suas meias para o longo inverno...
Use capa de chuva, não quero ter você molhado.
Se de noite fizer aquele tão esperado frio poderei cobrir-lhe com o meu corpo inteiro.
E verás como minha a minha pele de algodão macio, agora quente, será fresca quando janeiro.
Nos meses de outono eu varro a sua varanda, para deitarmos debaixo de todos os planetas.
O meu cheiro te acolherá com toques de lavanda - Em mim há outras mulheres e algumas ninfetas -
Depois plantarei para ti margaridas da primavera e aí no meu corpo somente você e leves vestidos, para serem tirados pelo total desejo de quimera.
Os meus desejos irei ver nos teus olhos refletidos.
Mas quando for a hora de me calar e ir embora sei que, sofrendo, deixarei você longe de mim.
Não me envergonharia de pedir ao seu amor esmola, mas não quero que o meu verão resseque o seu jardim.
(Nem vou deixar - mesmo querendo - nenhuma fotografia.
Só o frio, os planetas, as ninfetas e toda a minha poesia).

Fernanda Young


(Lido em Cultura genial)



quinta-feira, 1 de junho de 2023

Sophia de Mello Breyner Andresen - Arte Poética I


Arte Poética I

Em Lagos em Agosto o sol cai a direito e há sítios onde até o chão é caiado. O sol é pesado e a luz leve. Caminho no passeio rente ao muro mas não caibo na sombra. A sombra é uma fita estreita. Mergulho a mão na sombra como se a mergulhasse na água.

A loja dos barros fica numa pequena rua do outro lado da praça. Fica depois da taberna fresca e da oficina escura do ferreiro.

Entro na loja dos barros. A mulher que os vende é pequena e velha, vestida de preto. Está em frente de mim rodeada de ânforas. À direita e à esquerda o chão e as prateleiras estão cobertos de louças alinhadas, empilhadas e amontoadas: pratos, bilhas, tigelas, ânforas. Há duas espécies de barro: barro cor-de-rosa pálido e barro vermelho-escuro. Barro que desde tempos imemoriais os homens aprenderam a modelar numa medida humana. Formas que através dos séculos vêm de mão em mão. A loja onde estou é como uma loja de Creta. Olho as ânforas de barro pálido poisadas em minha frente no chão. Talvez a arte deste tempo em que vivo me tenha ensinado a olhá-las melhor. Talvez a arte deste tempo tenha sido uma arte de ascese que serviu para limpar o olhar.

A beleza da ânfora de barro pálido é tão evidente, tão certa que não pode ser descrita. Mas eu sei que a palavra beleza não é nada, sei que a beleza não existe em si mas é apenas o rosto, a forma, o sinal de uma verdade da qual ela não pode ser separada. Não falo de uma beleza estética mas sim de uma beleza poética.

Olho para a ânfora: quando a encher de água ela me dará de beber. Mas já agora ela me dá de beber. Paz e alegria, deslumbramento de estar no mundo, religação.

Olho para a ânfora na pequena loja dos barros. Aqui paira uma doce penumbra. Lá fora está o sol. A ânfora estabelece uma aliança entre mim e o sol.

Olho para a ânfora igual a todas as outras ânforas, a ânfora inumeravelmente repetida mas que nenhuma repetição pode aviltar porque nela existe um princípio incorruptível.

Porém, lá fora na rua, sob o peso do mesmo sol, outras coisas me são oferecidas. Coisas diferentes. Não têm nada de comum nem comigo nem com o sol. Vêm de um mundo onde a aliança foi quebrada. Mundo que não está religado nem ao sol nem a lua, nem a Ísis, nem a Deméter, nem aos astros, nem ao eterno. Mundo que pode ser um habitat mas não é um reino.

O reino agora é só aquele que cada um por si mesmo encontra e conquista, a alianga que cada um tece.

Este é o reino que buscamos nas praias de mar verde, no azul suspenso da noite, na pureza da cal, na pequena pedra polida, no perfume do orégão. Semelhante ao corpo de Orpheu dilacerado pelas fúrias este reino está dividido. Nós procuramos reuni-lo, procuramos a sua unidade, vamos de coisa em coisa.

É por isso que eu levo a ânfora de barro pálido e ela é para mim preciosa. Ponho-a sobre o muro em frente do mar. Ela é ali a nova imagem da minha aliança com as coisas. Aliança ameaçada. Reino que com paixão encontro, reúno, edifico. Reino vulnerável. Companheiro mortal da eternidade.

Sophia de Mello Breyner Andresen


© 2011 Biblioteca Nacional de Portugal


(Fotografia de César Augusto V.R.)

segunda-feira, 29 de maio de 2023

Bruna Kalil Othero - “a vó de uma amiga se casou com 12 anos…”

 


a vó de uma amiga se casou com 12 anos.
teve o primeiro filho com 14, e não parou nunca mais.
(de ter filhos.)
era analfabeta. não sabia ler nem escrever,
assinava com a digital do dedão.
dizia que não se pode lavar o cabelo
durante a menstruação.
apanhava flores no jardim. também apanhava
do marido.
nasceu em 1933. um ano antes,
as mulheres haviam conseguido o voto. um ano depois,
graciliano ramos publicava são bernardo.
o nome dela era
odete.
fora deste poema que ninguém vai ler,
sua história
nunca será contada.
porque é só mais uma odete
entre tantas

outras.


Bruna Kalil Othero

(Belo Horizonte, 1995)



(Fotografia de Maicon Damasceno, minha vó)



segunda-feira, 22 de maio de 2023

Sá de Miranda - "Aquelas esperanças que eu, metido..."

 


Aquelas esperanças que eu, metido
A tormento, lancei fora por vans,
Que fazem ainda aqui co' as minhas sans
Contas, feito em pó já tudo, e bebido ?

Como? E será tam cego, e sem sentido
Amor, que uinas razões claras iam chans
Não ouça, e que não veja tantas cans,
Tanto tempo baldado, e não vivido ?

Esta alma, tantas vezes enganada.
Não tornará por si, não fará conta
Co'a despesa, c'o sol e co'a jornada?

Quem do mar escapou, quanto tnal conta
Que perigos sem fim! mas logo brada
Outra vez aos da nau na terra afronta!

Sá de Miranda





terça-feira, 16 de maio de 2023

Miguel Torga - Súplica



SÚPLICA

Agora que o silêncio é um mar sem ondas,
E que nele posso navegar sem rumo,
Não respondas
Às urgentes perguntas
Que te fiz.
Deixa-me ser feliz
Assim,
Já tão longe de ti, como de mim.

Perde-se a vida, a desejá-la tanto.
Só soubemos sofrer, enquanto
O nosso amor
Durou.
Mas o tempo passou,
Há calmaria…
Não perturbes a paz que me foi dada.
Ouvir de novo a tua voz seria
Matar a sede com água salgada.

Miguel Torga




(Fotografia de Kavya Hajra)



segunda-feira, 8 de maio de 2023

Jorge Barbosa - Ilha


 

ILHA

Quando o barco alemão vem à ilha carregar sal
há um sobressalto íntimo de contentamento
na gente que fica a ver de terra.

À varanda da antiga casa do lago
olhos curiosos em direcção ao mar
atravessam as lentes baças
do velho binóculo do tempo dos piratas.

Toma certo ar garboso e oficial
com a bandeira nacional à popa
o escaler a remos
ao partir apressado ao vapor
com as autoridades todas do porto
que leva uma grande pasta sob o braço...

Compram-se a bordo novidades
ouvem-se notícias de longe...
bebe-se
cerveja gelada...

O barco parte depois
e a Povoação resignada
retoma a monotonia habitual...
 
...à noitinha
à hora tagarela de em seguida ao jantar
os homens reúnem-se na rua principal
comentando as ocorrências do dia.

Vem então à baila aquela passageira de boca pintada
que seguia para o Congo Belga...

E da evocação da mulher estrangeira
ficou um sonho parado
em cada um...


Jorge Barbosa




(Fotografia de Cédric Lange - Bom dia, Cabo Verde. Mindelo, São Vicente, 2013)



segunda-feira, 1 de maio de 2023

Natália Correia - Projecto de Bodas





PROJECTO DE BODAS

Hoje apetece que uma rosa seja
o coração exterior do dia
e a tua adolescência de cereja
no meu bico de Isolda cotovia.

Hoje apetece a intuição dum cais
para a lucidez de não chegar a tempo
e ficarmos violetas nupciais
com a lua a celebrar o casamento.

Apetece uma casa cor-de-rosa
com um galo vermelho no telhado
e os degraus duma seda vagarosa
que nunca chegue à varanda do noivado.

Hoje apetece que o cigarro saiba
a ter fumado uma cidade toda.
Ser o anel onde o teu dedo caiba
e faltarmos os dois à nossa boda.

Hoje apetece um interior de esponja
E como estátua a que moldar o vento.
Deitar as sortes e, se sair monja,
Navegar ao acaso o meu convento.

Hoje apetece o mundo pelo modo
Como vai despenhar-se um trapezista.
Abrir mais uma flor no nosso lodo:
Pedir-lhe um salto e retirar-lhe a pista.

Hoje apetece que a cor dum automóvel
Seja o Egipto de novo em movimento;
E que no espaço duma gota imóvel
Caiba a possível capital do vento.

Hoje apetece ter nascido loiro
Como apetece ter havido Atenas;
E tu nas curvas rápidas de um toiro.
E eu quase intangível como as renas.

Hoje apetece que venhas no jornal
Como um anúncio. Sem fotografia.
E inventar-te uma lenda de cristal
Para reflectir a minha biografia.

Natália Correia


O Sol nas Noites e o Luar nos Dias (1993)


Lido no blogue Livros & Saltos


(Fotografia de Edgar V., La mariée du Pont des Arts)

quinta-feira, 27 de abril de 2023

Chico Buarque recebeu o prêmio Camões de 2019 no dia 24 de Abril de 2023



Quatro anos depois de ter sido anunciado vencedor, Chico Buarque recebeu o prêmio Camões, maior láurea da literatura em língua portuguesa, das mãos do presidente Luiz Inácio Lula da Silva.



Boa noite excelentíssimos senhores presidente de Portugal, Marcelo Rebelo de Sousa; presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva; primeiro ministro de Portugal, António Costa; ministra da cultura brasileira, minha amiga, Margareth Menezes; ministro da Cultura português, Pedro Adão e Silva; querida Janja da Silva; presidente do júri, professor Frias Martins; e tantos amigos e amigas aqui presentes, Fafá de Belém, Carminho, Mia Couto, Miguel de Sousa Tavares, Pilar del Río, meu editor brasileiro Luiz Schwarz, minha editora portuguesa, Clara Capitão, e minha mulher, Carol.

Eu estou emocionado porque hoje de manhã ela saiu do hotel, atravessou a avenida e foi comprar essa gravata. (Risos) Isso me emociona.

Ao receber esse Prêmio eu penso no meu pai, o historiador e sociólogo Sérgio Buarque de Hollanda, de quem herdei alguns livros e o amor pela língua portuguesa. Relembro quantas vezes interrompi seus estudos para lhe submeter meus escritos juvenis, que ele julgava sem complacência e sem excessiva severidade, para em seguida me indicar leituras que poderiam me valer numa eventual carreira literária.

Mais tarde, quando me bandeei para a música popular, não se aborreceu, longe disso, pois gostava de samba, tocava um pouco de piano e era amigo próximo de Vinicius de Moraes, para quem a palavra cantada talvez fosse simplesmente um jeito mais sensual de falar a nossa língua. Posso imaginar meu pai coruja ao me ver hoje aqui, se bem que, caso fosse possível nos encontrarmos neste salão, eu estaria na assistência e ele cá, no meu posto, a receber o prêmio Camões com muito mais propriedade.

Meu pai também contribuiu para minha formação política, ele que durante a ditadura do Estado Novo militou na esquerda democrática, futuro Partido Socialista Brasileiro. No fim dos anos 60 retirou-se da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo em solidariedade a colegas cassados pela ditadura militar. Mais para o fim da vida participou da fundação do Partido dos Trabalhadores, sem chegar a ver a restauração democrática do nosso país, nem muito menos pressupor que um dia cairemos num fosso, sob muitos aspectos, mais profundo.

O meu pai era paulista, meu avô pernambucano, meu bisavô mineiro e meu tataravô baiano. Tenho antepassados negros e indigenas, cujos nomes meus antepassados brancos trataram de suprimir da história familiar. Como a imensa maioria do povo prasileiro, trago nas veias o sangue do açoitado e do açoitador, o que ajuda a nos explicar um pouco.

Recuando no tempo, em busca das minhas origens, recentemente vim a saber que tive por decavós paternos o casal Shemtov ben Abraham, batizado como Diogo Pires, e Provida Fidalgo, oriundos da comunidade barcelense. A exemplo de tantos cristãos novos portugueses, sua prole exilou-se no nordeste brasileiro do século XVI. Assim, enquanto descendente de judeus sefarditas perseguidos pela inquisição, pode ser que algum dia, eu também alcance o direito à cidadania portuguesa a modo de reparação histórica. (Risos)

Já morei fora do Brasil e não pretendo repetir a experiência, mas é sempre bom saber que tem uma porta entreaberta em Portugal, onde mais ou menos me sinto em casa e esmero-me nas colocações pronominais. Conheci Lisboa, Coimbra e Porto em 1966 ao lado de João Cabral de Melo Neto, quando aqui foi encenado seu poema “Morte e vida Severina” com músicas minhas. Ele, um poeta consagrado e eu um atrevido estudante de arquitetura.

O grande João Cabral, o primeiro brasileiro a receber o Prêmio Camões, sabidamente não gostava de música e nem sei se chegou a folhear algum livro meu.

Escrevi meu primeiro romance “Estorvo”; em 1990, e publicá-lo foi para mim como me arriscar novamente no escritório do meu pai em busca de sua aprovação. Contei dessa vez com padrinhos como Rubem Fonseca, Raduan Nassar e José Saramago, hoje meus colegas de Prêmio Camões. De vários autores aqui premiados, fui amigo de outros tantos de Brasil, Portugal, Angola, Moçambique, Cabo Verde... Sou leitor e admirador. Esqueci de citar antes o nosso grande Manuel Alegre, aqui presente, que também foi premiado com Camões.

Por mais que eu leia e fale de literatura, por mais que eu publique romances e contos, por mais que eu receba prêmios literários, faço gosto de ser reconhecido no Brasil como compositor popular, e em Portugal como o “gajo” que um dia pediu que lhe mandassem um cravo e um cheirinho de alecrim. Valeu a pena esperar por esta cerimônia marcada, não por acaso, para a véspera do dia em que os portugueses dessem a avenida Liberdade a festejar a revolução dos cravos.

Lá se vão quatro anos que meu prêmio foi anunciado e eu já me perguntava se não o haviam esquecido. Porque sabe-se: prêmios também são perecíveis, tem data de validade.

Quatro anos com uma pandemia no meio davam às vezes a impressão que um tempo bem mais longo havia transcorrido. No que se refere ao meu país, quatro anos de governo funesto duraram uma eternidade, porque foi um tempo em que o tempo parecia andar para trás. Aquele governo foi derrotado nas urnas mas nem por isso podemos nos distrair, pois a ameaça facista persiste, no Brasil e por toda parte. Hoje, porém nessa tarde de celebração, reconforta-me lembrar que o ex-presidente teve a rara fineza de não sujar o diploma do meu Prêmio Camões, deixando seu espaço em branco para assinatura do nosso presidente Lula.

Recebo esse prêmio menos como uma honraria pessoal e mais como um desagravo a tantos autores e artistas brasileiros humilhados e ofendidos nesses últimos anos de estupidez e obscurantismo. Muito obrigado.