quinta-feira, 31 de janeiro de 2019

Onde começa a felicidade (Rui Zink)


Felicidade, fotografia de Vanessa Lira


ONDE COMEÇA A FELICIDADE

«Aurea mediocritas» - dizia Horácio, um dos poetas latinos que faz a base da nossa civilização. As palavras com o tempo corrompem-se, alteram-se, adulteram-se. «Mediocritas» em português deu mediocridade, tal como «parvus» deu parvo, ao contrário do castelhano em que apenas significa pequeno, ou «sinistra» em italiano quer apenas dizer esquerda.

A «Aurea mediocritas» que cantava Horácio era a doce e suave mediania entre as emoções, um equilíbrio quase bucólico na vida a ter e nos negócios a ter na vida. Não, Horácio, romano educado, não era adepto dos desportos radicais. Equilíbrio entre o quê? Distorcendo Horácio, a dois mil anos de distância, podemos dizer, talvez, equilíbrio entre o sonho e a realidade. A felicidade não pode ser só o que há, senão apodrecemos, mas também não pode ser só o que desejamos, senão ficamos com uma neurose de tanto ansiar pelo que há-de vir.

O resto é com cada qual. Alguns gostam da felicidade bovina de não pensar muito, outros gostam de estar sozinhos no deserto, outros ficam felizes com a desgraça alheia. Estes três exemplos são, cá para mim, desgraçados, mas o que sei eu dos outros? É por não saber nada dos outros que escrevo histórias sobre os outros. Para aprender. Haverá outra razão para fazer as coisas?

Felicidade é, pois, como o Natal - é quando um homem quiser. Nunca me canso de fazer versões sobre este mote do grande Paulo de Carvalho. Hei-de levar isto para a cova e se não me ocorrer mais nada (pode acontecer) esta será a minha última frase. E depois do adeus logo se verá.

*

Agora uma pergunta: por que motivo os adolescentes são tão infelizes? A resposta está, uma vez mais, em Horácio: porque não se encontraram. Não sabem nem quem são nem para onde vão, ou desejam ir. Felicidade começará, então, por ser estas duas coisas: saber o que se é, com um grau de aproximação razoável, e ter pelo menos uma vaga ideia do que se quer. E uma terceira característica: não saber que se é feliz. O excesso de autoconsciência estraga os alimentos.

Homens e mulheres felizes? Conheço bastantes. Todos eles, em comum, tinham estes três traços distintivos: aceitavam-se como eram, sabiam ao que iam, não pensavam demasiado em si próprios.

Rui Zink


Luto pela Felicidade dos Portugueses (2012)



segunda-feira, 28 de janeiro de 2019

De Profundis, Valsa Lenta (José Cardoso Pires)



Janeiro de 1995, quinta-feira. Em roupão e de cigarro apagado nos dedos, sentei-me à mesa do pequeno-almoço onde já estava a minha mulher com a Sylvie e o António que tinham chegado na véspera a Portugal. Acho que dei os bons-dias e que, embora calmo, trazia uma palidez de cera. Foi numa manhã cinzenta que nunca mais esquecerei, as pessoas a falarem não sei de quê e eu a correr a sala com o olhar, o chão, as paredes, o enorme plátano por trás da varanda. Parei na chávena de chá e fiquei. Sinto-me mal, nunca me senti assim, murmurei numa fria tranquilidade.

Silêncio brusco. Eu e a chávena debaixo dos meus olhos. De repente viro-me para a minha mulher: «Como é que tu te chamas?»

Pausa. «Eu? Edite.» Nova pausa. «E tu?»

«Parece que é Cardoso Pires», respondi então.


DE PROFUNDIS, Valsa Lenta

“E agora, José?
[...] você marcha, José!
José, para onde?”

Carlos Drummond de Andrade


Ainda hoje estou a ouvir aquele “é”. Espantoso como bruscamente o meu eu se transformou ali noutro alguém, noutro personagem menos imediato e menos concreto.

Nesta introdução à perda de identidade que um transtorno do cérebro tinha acabado de desencadear, o que me parece desde logo implacável e irreversível é a precisão com que em tão rápido espaço de tempo fui desapossado das minhas relações com o mundo e comigo próprio. Como se acabasse de dar início a um processo de despersonalização, eu tinha-me transferido para um sujeito na terceira pessoa (Ele, ou o meu nome, é) que ainda por cima se tornava mais alheio e mais abstracto pela imprecisão parece que. Além disso, a circunstância de ter respondido à Edite com o apelido e não com o meu primeiro nome, o mais cúmplice entre marido e mulher e o único que nos era natural, é outro indício do distanciamento provocado pelo golpe de azar que me destituirá de memória e de passado.

Ele, o Outro. O outro de mim. Em menos de nada, já a Edite falava ao telefone com o médico sobre esse alguém impessoal que eu estava a começar a ser. Ouvia-a do meio do hall em grande serenidade. Sabia, tenho essa ideia, que alguma coisa se estava a passar comigo, uma coisa oculta, activa, mas nessa altura já principiava a ouvir e a sentir só de passagem, sem registar. (Mesmo assim tinha algum conhecimento da ansiedade que me rodeava: Isto não vai ser nada, creio ter dito à Sylvie quando a descobri no corredor, atenta aos telefonemas da Edite.)

Lembro-me de que essa manhã foi invadida por um aguaceiro desalmado, ouvia- se uma chuva grossa e pesada lá fora mas deve ter sido passageira porque quando acabou a Edite ainda estava ao telefone. A partir de então tudo o que sei é que me pus ao espelho da casa de banho a barbear-me com a passividade de quem está a barbear um ausente e foi ali.

Sim, foi ali. Tanto quanto é possível localizar-se uma fracção mais que secreta de vida, foi naquele lugar e naquele instante que eu, frente a frente com a minha imagem no espelho mas já desligado dela, me transferi para um Outro sem nome e sem memória e por consequência incapaz da menor relação passado-presente, de imagem-objecto, do eu com outro alguém ou do real com a visão que o abstracto contém. Ele. O mesmo que a mulher (Edite, chama-se ela mas nada garante que esse homem ainda lhe conheça o nome, que não a considere apenas um facto, uma presença) exacto, esse mesmo Ele, o tal que a Edite irá encontrar, não tarda muito, a pentear-se com uma escova de dentes antes de partirem de urgência para o Hospital de Santa Maria e o mesmo que, dias depois, uma enfermeira surpreenderá em igual operação ao espelho do lavatório do quarto.

Dias depois, quando?

Sem memória esvai-se o presente que simultaneamente já é passado morto. Perde-se a vida anterior. E a interior, bem en tendido, porque sem referências do passado morrem os afectos e os laços sentimentais. E a noção do tempo que relaciona as imagens do passado e que lhes dá a luz e o tom que as datam e as tornam significantes, também isso. Verdade, também isso se perde porque a memória, aprendi por mim, é indispensável para que o tempo não só possa ser medido como sentido. Assim, ao ver o meu Outro eu a pentear -se com uma escova de dentes num quarto de hospital (conforme me contaram depois) pergunto-me quantas vezes lhe aconteceu aquilo e logo de instante vejo uma enfermeira a aparecer-lhe por trás e a trocar-lhe a escova pelo pente, sem um comentário, sem uma palavra sequer, pura e simplesmente na prática de quem executa uma rotina. E ele a obedecer-lhe sem a menor resistência, ele como que a cumprir a parte que lhe compete nessa rotina. Sempre este jogo?, pergunto.

 José Cardoso Pires


De Profundis, Valsa Lenta (1997)



"Em 1995, o autor, notável escritor português, sofre um sério acidente vascular-cerebral. Internado às pressas num hospital de Lisboa, passou a viver na terceira pessoa do singular, identificando-se por Ele, perdendo totalmente a memória e seu passado. Totalmente recuperado, quis registrar a sensação de presença-ausente"

(Google Books)


José Cardoso Pires (1925 - 1998) no Portal da literatura



sexta-feira, 25 de janeiro de 2019

Sou provinciano (Manuel Bandeira)

Bandeira a ler um jornal (Foto: Obvious)



SOU PROVINCIANO

Sou provinciano. Com os provincianos me sinto bem. Se com estas palavras ofendo algum mineiro requintado peço desculpas. Me explico: as palavras “província”, “provinciano”, “provincianismo” são geralmente empregadas pejorativamente por só se enxergar nelas as limitações do meio pequeno. Há, é certo, um provincianismo detestável. Justamente o que namora a “Corte”. O jornaleco de município que adota a feição material dos vespertinos vibrantes e nervosos do Rio, - eis um exemplo de provincianismo bocó. É provinciano, mas provinciano do bom, aquele que está nos hábitos do seu meio, que sente as realidades, as necessidades do seu meio. Esse sente as excelências da província. Não tem vergonha da província, - tem é orgulho. Conheço um sujeito de Pernambuco, cujo nome não escrevo porque é tabu e cultiva grandes pudores esse provincianismo. Formou-se em sociologia na Universidade de Colúmbia, viajou a Europa, parou em Oxford, vai dar breve um livrão sobre a formação da vida social brasileira... Pois timbra em ser provinciano, pernambucano, do Recife. Quando dirigiu um jornal lá, fez questão de lhe dar feitio e caráter bem provincianos. Nele colaborei com delícia durante uns dois anos. Foi nas páginas de A Província que peguei este jeito provinciano de conversar. No Rio lá se pode fazer isso? É só o tempo de passar, dar um palpite, “uma bola”, como agora se diz, nem se acredita em nada, salvo no primeiro boato...

Manuel Bandeira


(Crônica escrita para o Estado de Minas em 12.3.33, reproduzida com o título "Sou provinciano" em Andorinha, Andorinha, textos de Manuel Bandeira, seleção e coordenação de textos de Carlos Drummond de Andrade, Rio de Janeiro, Editora José Olympio, pg. 04.)


Lido no blogue Na dança das palavras



quarta-feira, 23 de janeiro de 2019

A pessoa sem nome (Duarte Paiva)

Fotografia de Rodrigo Soldon Souza


A PESSOA SEM NOME

Na minha cidade natal nos Açores, havia uma pessoa sem-abrigo, quando ainda era eu criança e passava o tempo a correr na rua com o meu cão amarelo de nome "Jáki". Esse senhor era a única pessoa em situação de sem-abrigo, um gigante de barbas e vestes compridas até aos pés, que vagueava pelas ruas sozinho em silêncio. A maior marca de imagem desta pessoa era um bastão que o apoiava no andar, como se de um velho mago se tratasse. Ele sempre me fascinou durante a minha infância, mas ninguém me dizia nada sobre ele e eu nada sabia dele. Eu devia ter oito anos, ou talvez nove ou dez, na realidade não sei bem situar-me no tempo.

Naquela altura, em criança, não percebia bem estas coisas da pobreza e da riqueza. Sabia que os meus vizinhos da frente, do lado e do outro lado eram todos ricos, pois tinham umas casas grandes, ao contrário da minha. Sabia que as crianças do orfanato perto da minha casa eram pobres, pois não tinham família e vestiam roupa usada. E depois havia esse homem que nem casa nem nome tinha. Na minha pouca sabedoria de criança, decidi que o queria ajudar! Assim fui ter com a minha mãe e disse:

- "Mãe quero ajudar aquele senhor."

- "Filho, podes levar comida."

Comida. Isso mesmo! Levar comida, pois ele precisa de comer, deve ter fome! Enchi um saco de pão e levei. Corri ferozmente pela rua como se tivesse encontrado o sentido da vida. Quando lá cheguei, parei e fiquei a olhar para ele, como um anão olha para um gigante. O sentido da vida estava assim mais para o congelado.

- Que queres, disse ele num tom rouco e forte.

- Aah, trago comida...

- É pão?

- Sim...

- Então deixa aí (no mesmo tom rouco e com o olhar desviado).

Deixei o saco de pão e corri para casa como se tivesse ganho um bilhete de regresso à realidade. Qual sentido da vida? Perdi-o logo! O pior é que não tinha percebido nada daquilo e no caminho vim a pensar que aquele homem não queria pão. Essa era uma imagem tão forte na minha cabeça que rapidamente se transformou numa pergunta: "Mas o que quereria ele?". No fim de tudo isto e mais do que tudo, mais do que ajudá-lo, mais do que sentir que fui útil, mais do que qualquer grandeza, senti que o humilhei, dando-lhe aquele pão seco.

Não sei quando vi essa pessoa pela última vez. Talvez dias depois, talvez nunca mais, mas o sentimento acompanhou-me ao longo da minha vida até ao dia em que escrevo este texto. É muito fácil humilharmos as pessoas mesmo com a melhor vitalidade solidária. Mas não há nenhuma dignidade na pobreza nem numa caridade desempoderadora (a chamada "caridadezinha"), ainda muito presente em nós e nas nossas organizações. Os pobres são como que adotados nesta caridade que lhes retira, muitas vezes, qualquer réstia de identidade. Por vezes nem o nome sabemos e se o sabemos pronunciamos com um tom condescendente e infantil. E quando alguém almeja mais do que uma sopa e um canto para dormir, é pobre e mal-agradecido, dizemos com facilidade.

Esta expressão ainda ecoa bem na nossa consciência coletiva enquanto sociedade e quando confrontados com pessoas que, apesar da sua situação de pobreza, ainda querem ser alguém, querem ter escolhas e mostram que tem desejos, como eu e o leitor. É bom ter desejos e sonhos, mostrar que os temos e lutar por eles. É bem mais importante isso do que o pão seco que eu pensava dar àquele homem todos os dias. É isso que nos tira da pobreza.

Então, e por fim, respondendo à questão "o que quereria ele?", encontrei a resposta perguntando a mim mesmo "o que quero eu para mim".

Duarte Paiva

Fundador da Associação Conversa Amiga


Publicado a 18 de setembro de 2015 aqui


segunda-feira, 21 de janeiro de 2019

Somos a primeira pessoa do plural (José Luís Peixoto)

Vendo a vida passar (Fotografia de _bia)


Somos a primeira pessoa do plural
14.12.11

Estamos tão perto uns dos outros. Somos contemporâneos, podemos juntar-nos na mesma frase, conjugarmo-nos no mesmo verbo e, no entanto, carregamos um invisível que nos afasta. Ouvimos os vizinhos de cima a arrastarem cadeiras, a atravessarem o corredor com sapatos de salto alto, a sua roupa molhada pinga sobre a nossa roupa a secar; ouvimos a voz dos vizinhos de baixo, dão gargalhadas, a nossa roupa molhada pinga sobre a roupa deles a secar; cheiramos as torradas dos vizinhos do lado, ouvimo-los a chamar o elevador e, no entanto, o nosso maior problema não é apenas não nos reconhecermos na rua. O nosso problema grande é estarmos convencidos que os problemas deles não nos dizem respeito. A nossa tragédia é acharmos que não temos nada a ver com isso.

Há três ou quatro anos, caminhava com um conhecido no aeroporto. De repente, ouviu-se um estalido. Ele agarrou-se ao peito com as duas mãos, caiu de joelhos e, pálido, esperou por morrer. Não morreu. Tinha-lhe rebentado um isqueiro no bolso da camisa. Aliviado, encostado a um balcão, a beber um copo de água, explicou que esse ardor repentino e esse susto pareceram-lhe um ataque cardíaco. Nunca tinha tido um ataque cardíaco antes, por isso confiou em descrições vagas, a que nunca tinha realmente prestado muita atenção.

Há alguns anos também, talvez um pouco mais do que três ou quatro, tinha acabado de participar num jantar cordial, reconfortante. Toda a gente estava bem disposta, à porta dos anfitriões, longa despedida, graças, à espera de táxi. De repente, tocou o telefone de um senhor com quem tinha estado a conversar durante todo o serão. Ninguém reparou nesse telefonema até ao momento em que o senhor começou a chorar convulsivamente. Ficámos todos a olhar sem saber como chegar até ele. Tínhamos braços, estendíamo-los na sua direcção, mas continuavam distantes.

Irritamo-nos com a existência uns dos outros. Fazemos sinais de luzes àquele homem com setenta anos, num carro dos anos setenta, que anda a setenta quilómetros por hora na auto-estrada. Contrariados, esperamos por aquela pessoa que atravessa a passadeira, enchemos as bochechas de ar e sopramos. Impacientes, batemos no volante. Daí a minutos, depois de estacionarmos o carro, somos essa pessoa a atravessar a passadeira. Da mesma maneira, daqui a algum tempo, não muito, seremos esse homem com setenta, dos setenta, a setenta. O tempo passa. Se deitarmos lixo para o chão, alguém o apanhará.

Um amigo que teve um AVC, que passou por uma reabilitação profunda, que enfrentou a morte e a paralisia, depois de anos de fisioterapia, depois de esforço gigante e sofrimento gigante, falou-me da forma como esse susto muda tudo. Passa-se a apreciar aquilo que realmente importa. A imensa maioria das preocupações transformam-se em luxos ridículos, desprezíveis, alimentados pela cegueira. Após essa experiência de quase morte, ganha-se uma nitidez invulgar, que, no entanto, esteve sempre lá. Para percebê-la, bastava levar a sério a promessa de transitoriedade de tudo e, também, levar a sério essa palavra, esse planeta: o amor. Ao ouvi-lo, fui capaz de entender aquilo que dizia. Depois, também fui capaz de entender quando me disse: mas, sabes, ao fim de algum tempo, esquecemo-nos, voltamos a tomar tudo por garantido e voltamos a cometer os mesmos erros.

Repito para mim próprio: estamos tão perto uns dos outros. Não há nenhum motivo para acreditarmos que ganhamos se os outros perderem. Os outros não são outros porque levam muito daquilo que nos pertence e que só pode existir sendo levado por eles. Eles definem-nos tanto quanto nós os definimos a eles. Eles são nós. Eles somos nós. Se tivermos essa consciência, podemos usar todo o seu tamanho. Mesmo que pudéssemos existir sozinhos, de olhos fechados, com os ouvidos tapados, seríamos já bastante grandes, mas existe algo muito maior do que nós. Fazemos parte dessa imensidão. Somos essa imensidão que, vista daqui, parece infinita.

José Luís Peixoto

(joseluispeixoto.net)


sábado, 19 de janeiro de 2019

Eunice Munoz recita Eugénio de Andrade



CANÇÃO

Tinha um cravo no meu balcão;
Veio um rapaz e pediu-mo
- mãe, dou-lho ou não?

Sentada, bordava um lenço de mão;
Veio um rapaz e pediu-mo
- mãe, dou-lho ou não?

Dei um cravo e dei um lenço,
Só não dei o coração;
Mas se o rapaz mo pedir
- mãe, dou-lho ou não?

Eugénio de Andrade

Do seu livro Primeiros Poemas


("A obra do autor inicia-se em 1942 com «Adolescente», livro que acaba por renegar, tal como «Pureza», de 1945. Desses dois livros faz mais tarde uma breve seleção intitulada «Primeiros Poemas»")


Eugénio de Andrade, pseudónimo de José Fontinhas (19 de janeiro de 1923, Fundão - 13 de junho de 2005, Porto)





quinta-feira, 17 de janeiro de 2019

Mulher ao espelho (Cecília Meireles)

Fotografia de Rui Romão


MULHER AO ESPELHO

Hoje que seja esta ou aquela,
pouco me importa.
Quero apenas parecer bela,
pois, seja qual for, estou morta.

Já fui loura, já fui morena,
já fui Margarida e Beatriz.
Já fui Maria e Madalena.
Só não pude ser como quis.

Que mal faz, esta cor fingida
do meu cabelo, e do meu rosto,
se tudo é tinta: o mundo, a vida,
o contentamento, o desgosto?

Por fora, serei como queira
a moda, que me vai matando.
Que me levem pele e caveira
ao nada, não me importa quando.

Mas quem viu, tão dilacerados,
olhos, braços e sonhos seus
e morreu pelos seus pecados,
falará com Deus.

Falará, coberta de luzes,
do alto penteado ao rubro artelho.
Porque uns expiram sobre cruzes,
outros, buscando-se no espelho.

Cecília Meireles




segunda-feira, 14 de janeiro de 2019

"Adeus, futuro": Poesia e cifrões (Maria do Rosário Pedreira)





"Adeus, futuro": Poesia e cifrões

Os meus pais quase nunca cantavam (o meu pai até dizia que só conhecia duas músicas: o hino e as outras); mas, em compensação, sabiam de cor dezenas de textos - e é, portanto, plausível que me tenham embalado com poemas (mesmo quando eu não passava de um embrião).

O bicho da literatura mordeu-me cedo e, por isso, aprendi a ler e escrever com uma febre que não pus em mais nada o resto da vida: fui sempre um zero a Matemática, nunca tracei duas paralelas que não se encontrassem, sou uma nódoa (literalmente) na cozinha, só passei no exame de condução com 40 anos e mesmo nas coisas do amor fui bastante trôpega, só conseguindo que alguém se casasse comigo aos 45 (a minha poesia, aliás, fala muito disto).

Da aprendizagem da leitura guardo, porém, recordações muito vivas, como a da primeira frase que li em voz alta numa aula («Pela vila vai movimento desusado»), de um texto intitulado «Tourada à vara larga» (hoje decerto banido de qualquer manual escolar), num livro de capa verde que dizia nas costas «Ó Pedro, que é do Livro de Capa Verde que te deu o Avô a guardar?» e estava cheiinho de poemas (quase todos de João de Deus).

Além de aos meus pais, devo, pois, à escola primária a minha escrita mais bonita - e não estou a falar de caligrafia (embora não me esqueça daquele calo azul por causa da caneta de tinta permanente), mas de aprender a dar música e emprestar imagens às palavras, o que se revelou de extrema utilidade quando, por ser a última da ninhada e nunca ter tempo de antena, fiz umas quadras que impressionaram os adultos e os levaram a conceder-me um nadinha mais de atenção. (Mal eu sabia que inaugurava então a minha carreira nas letras.)

Hoje contam-me que a poesia é um bicho-de-sete-cabeças para qualquer estudante, mesmo no Secundário. Recentemente, um professor pediu-me que fosse explicar aos seus alunos do 11.o ano que a poesia não é nenhum papão. Tentei, juro. Mostrei-lhes como se podia dizer uma coisa banalíssima com a máxima beleza e, vendo-os sem reacção, avancei com o golpe baixo de que um poema até serve para seduzir ou, em caso de tampa, lamber feridas, lendo vários exemplos com o cuidado de evitar a palavra «seios», que habitualmente dá azo a risinhos. A seguir, passei-lhes a bola: que perguntassem o que lhes apetecesse. Pois só quiseram saber quanto se ganhava com a poesia, se o trabalho que se tinha a encontrar rimas compensava e porque não passava eu a escrever em inglês, podendo assim vender livros em todo o mundo e receber mais dinheiro. Adeus, futuro.

Maria do Rosário Pedreira

Editora e escritora, escreve de acordo com a antiga ortografia.


Publicado no Diário de Notícias no dia 2 de outubro de 2018



Nota. nódoa (Infopédia) 3. coloquial pessoa que não sabe nada ou é incompetente.




sexta-feira, 11 de janeiro de 2019

"Contei noutro lugar como e porquê me chamo Saramago" (José Saramago)



Contei noutro lugar como e porquê me chamo Saramago. Que esse Saramago não era um apelido do lado paterno, mas sim a alcunha por que a família era conhecida na aldeia. Que indo o meu pai a declarar no Registo Civil da Golegã o nascimento do seu segundo filho, sucedeu que o funcionário (chamava-se ele Silvino) estava bêbado (por despeito, disso o acusaria sempre meu pai), e que, sob os efeitos do álcool e sem que ninguém se tivesse apercebido da onomástica fraude, decidiu, por sua conta e risco, acrescentar Saramago ao lacónico José de Sousa que meu pai pretendia que eu fosse. E que, desta maneira, finalmente, graças a uma intervenção por todas as mostras divina, refiro-me, claro está, a Baco, deus do vinho e daqueles que se excedem a bebê-lo, não precisei de inventar um pseudónimo para, futuro havendo, assinar os meus livros. Sorte, grande sorte minha, foi não ter nascido em qualquer das famílias da Azinhaga que, naquele tempo e por muitos anos mais, tiveram de arrastar as obscenas alcunhas de Pichatada, Curroto e Caralhana. Entrei na vida marcado com este apelido de Saramago sem que a família o suspeitasse, e foi só aos sete anos, quando, para me matricular na instrução primária, foi necessário apresentar certidão de nascimento, que a verdade saiu nua do poço burocrático, com grande indignação de meu pai, a quem, desde que se tinha mudado para Lisboa, a alcunha desgostava. Mas o pior de tudo foi quando, chamando-se ele unicamente José de Sousa, como ver se podia nos seus papéis, a Lei, severa, desconfiada, quis saber por que bulas tinha ele então um filho cujo nome completo era José de Sousa Saramago. Assim intimado, e para que tudo ficasse no próprio, no são e no honesto, meu pai não teve outro remédio que proceder a uma nova inscrição do seu nome, passando a chamar-se, ele também, José de Sousa Saramago. Suponho que deverá ter sido este o único caso, na história da humanidade, em que foi o filho a dar o nome ao pai. Não nos serviu de muito, nem a nós nem a ela, porque meu pai, firme nas suas antipatias, sempre quis e conseguiu que o tratassem unicamente por Sousa.

José Saramago

As Pequenas Memórias (2006)




quarta-feira, 9 de janeiro de 2019

Quando (Sophia de Mello Breyner Andresen)



Sophia de Mello Breyner Andresen nasceu a 6 de setembro de 1919. É este, pois, o ano do seu centenário e vamos ouvir, e ler, muito dela. Também neste blogue.


QUANDO

Quando o meu corpo apodrecer e eu for morta,
continuará o jardim, o céu e o mar,
e como hoje igualmente hão-de bailar
as quatro estações à minha porta.

Outros em Abril passarão no pomar
em que tantas vezes passei,
haverá longos poentes sobre o mar,
outros amarão as coisas que eu amei.

Será o mesmo brilho, a mesma festa,
será o mesmo jardim à minha porta
e os cabelos doirados da floresta,
como se eu não estivesse morta.