sexta-feira, 27 de março de 2015

Nenhum olhar (José Luís Peixoto)




Hoje o tempo não me enganou. Não se conhece uma aragem na tarde. O ar queima, como se fosse um bafo quente de lume e não ar simples de respirar, como se a tarde não quisesse já morrer e começasse aqui a hora do calor. Não há nuvens, há riscos brancos, muito finos, desfiados de nuvens. E o céu, daqui, parece fresco, parece água limpa de um açude. Penso: talvez o céu seja um mar grande de água doce e talvez a gente não ande debaixo do céu mas em cima dele; talvez a gente veja as coisas ao contrário e a terra seja como um céu e quando a gente morre, quando a gente morre, talvez a gente caia e se afunde no céu. Um açude sem peixes, sem fundo, este céu. Nuvens, veios ténues. E o ar a arder por dentro, chamas quentes e abafadas na pele, invisíveis. Suspenso, como um homem cansado, ar. Há-de ser um instante em que não se veja um pardal, em que não se ouça senão o silêncio que fazem todas as coisas a observar-nos. Chegará. Hei-de o distinguir no horizonte. Tão bem quanto sei isto agora, sabia-o ontem quando entrei na venda do judas e pedi o primeiro copo e pedi o segundo e pedi o terceiro. Mais, sabia que por toda a planície se calarão as cigarras e os grilos. De encontro ao céu, as oliveiras e os sobreiros hão-de parar os ramos mais finos; num momento, hão-de tornar-se pedra.

José Luís Peixoto

Início do seu romance Nenhum olhar (1ª ed. 2000; 16ª ed. 2013). Esta obra foi galardoada com o Prémio Saramago e consagrou Peixoto nacional e internacionalmente.


Página de José Luís Peixoto






quinta-feira, 26 de março de 2015

"Li algures que os gregos antigos..." (Herberto Helder)



Li algures que os gregos antigos não escreviam necrológios,
quando alguém morria perguntavam apenas:
tinha paixão?
quando alguém morre também eu quero saber da qualidade da sua paixão:
se tinha paixão pelas coisas gerais,
água,
música,
pelo talento de algumas palavras para se moverem no caos,
pelo corpo salvo dos seus precipícios com destino à glória,
paixão pela paixão,
tinha?
e então indago de mim se eu próprio tenho paixão,
se posso morrer gregamente,
que paixão?
os grandes animais selvagens extinguem-se na terra,
os grandes poemas desaparecem nas grandes línguas que desaparecem,
homens e mulheres perdem a aura
na usura,
na política,
no comércio,
na indústria,
dedos conexos, há dedos que se inspiram nos objectos à espera,
trémulos objectos entrando e saindo
dos dez tão poucos dedos para tantos
objectos do mundo
e o que há assim no mundo que responda à pergunta grega,
pode manter-se a paixão com fruta comida ainda viva,

e fazer depois com sal grosso uma canção curtida pelas cicatrizes,
palavra soprada a que forno com que fôlego,
que alguém perguntasse: tinha paixão?
afastem de mim a pimenta-do-reino, o gengibre, o cravo-da-índia,
ponham muito alto a música e que eu dance,
fluido, infindável, apanhado por toda a luz antiga e moderna,
os cegos, os temperados, ah não, que ao menos me encontrasse a paixão
e eu me perdesse nela
a paixão grega.

Herberto Hélder


terça-feira, 24 de março de 2015

Morreu Herberto Helder


Morreu Herberto Helder, o poeta dos poetas

O maior poeta português da segunda metade do século XX morreu aos 84 anos.

Herberto Helder morreu esta segunda-feira, aos 84 anos, em Cascais. O poeta, nascido em 1930 no Funchal, morreu em casa, e as causas da morte não foram reveladas. Era considerado por muitos o maior poeta português da segunda metade do século XX. A cerimónia fúnebre realiza-se na quarta-feira e vai ser reservada à família, segundo comunicado da Porto Editora.

No ano passado, em Junho, publicou A Morte Sem Mestre, pela chancela da Porto Editora — numa edição que incluía um CD com cinco poemas ditos pelo autor. Em 2013 havia publicado Servidões. Desde a publicação de A Faca Não Corta o Fogo, em 2008, tornou-se um caso de consenso crítico quase absoluto. Tal como os anteriores livros de Herberto Helder, A Morte Sem Mestre teve apenas uma edição, tendo esgotado rapidamente.

A notícia completa no jornal Público


O mito de Herberto Helder

António Guerreiro - 24/03/2015 - 17:34

A poesia de Herberto Helder obriga a colocar esta questão: será que ainda é possível a poesia num mundo completamente secularizado?

Artigo completo no jornal Público




No sorriso louco das mães batem as leves
gotas de chuva. Nas amadas
caras loucas batem e batem
os dedos amarelos das candeias.
Que balouçam. Que são puras.
Gotas e candeias puras. E as mães
aproximam-se soprando os dedos frios.
Seu corpo move-se
pelo meio dos ossos filiais, pelos tendões
e orgãos mergulhados,
e as calmas mães intrínsecas sentam-se
nas cabeças filiais.
Sentam-se, e estão ali num silêncio demorado e apressado,
vendo tudo,
e queimando as imagens, alimentando as imagens,
enquanto o amor é cada vez mais forte.
E bate-lhes nas caras, o amor leve.
O amor feroz.
E as mães são cada vez mais belas.
Pensam os filhos que elas levitam.
Flores violentas batem nas suas pálpebras.
Elas respiram ao alto e em baixo.
São silenciosas.
E a sua cara está no meio das gotas particulares
da chuva,
em volta das candeias. No contínuo
escorrer dos filhos.
As mães são as mais altas coisas
que os filhos criam, porque se colocam
na combustão dos filhos. Porque
os filhos são como invasores dentes-de-leão
no terreno das mães.
E as mães são poços de petróleo nas palavras dos filhos,
e atiram-se, através deles, como jactos
para fora da terra.
E os filhos mergulham em escafandros no interior
de muitas águas,
e trazem as mães como polvos embrulhados nas mãos
e na agudez de toda a sua vida.
E o filho senta-se com a sua mãe à cabeceira da mesa,
e através dele a mãe mexe aqui e ali,
nas chávenas e nos garfos.
E através da mãe o filho pensa
que nenhuma morte é possível e as águas
estão ligadas entre si
por meio da mão dele que toca a cara louca
da mãe que toca a mão pressentida do filho.
E por dentro do amor, até somente ser possível amar tudo,
e ser possível tudo ser reencontrado
por dentro do amor.

Herberto Helder



segunda-feira, 23 de março de 2015

"Meu pai, dá-me os teus velhos sapatos..." (Vinicius de Moraes)




Meu pai, dá-me os teus velhos sapatos manchados de terra
Dá-me o teu antigo paletó sujo de ventos e de chuvas
Dá-me o imemorial chapéu com que cobrias a tua paciência
E os misteriosos papéis em que teus versos inscreveste.

Meu pai, dá-me a tua pequena chave das grandes portas
Dá-me a tua lamparina de rolha, estranha bailarina das insônias
Meu pai, dá-me os teus velhos sapatos.

Vinicius de Moraes




Meu Pai, baseado em um Poema sem nome de Vinicius de Moraes, mostra a trajetória de um sujeito, em busca das lembranças de Seu Pai. 

Produzido pelos Alunos do Ensino Médio Inovador - Oficina de AudioVisual

Colégio Estadual Professora Maria Aguiar Teixeira em comemoração ao centenário do branco mais preto do Brasil. (19 de outubro de 1913)

Página de Vinicius de Moraes



domingo, 22 de março de 2015

Pra comer depois (Adélia Prado)

Divinópolis (MG), cidade natal de Adélia Prado



PRA COMER DEPOIS

Na minha cidade, nos domingos de tarde,
as pessoas se põem na sombra com faca e laranjas.
Tomam a fresca e riem do rapaz de bicicleta,
a campainha desatada, o aro enfeitado de laranjas:
“Eh bobagem! “
Daqui a muito progresso tecno-ilógico,
quando for impossível detectar o domingo
pelo sumo das laranjas no ar e bicicletas,
em meu país de memória e sentimento,
basta fechar os olhos:
é domingo, é domingo, é domingo.

Adélia Prado 





sábado, 21 de março de 2015

Quando vier a Primavera (Alberto Caeiro / Fernando Pessoa)



Hoje celebra-se o Dia Mundial da Poesia.



Quando vier a Primavera,

Quando vier a Primavera,
Se eu já estiver morto,
As flores florirão da mesma maneira
E as árvores não serão menos verdes que na Primavera passada.
A realidade não precisa de mim.

Sinto uma alegria enorme
Ao pensar que a minha morte não tem importância nenhuma.

Se soubesse que amanhã morria
E a Primavera era depois de amanhã,
Morreria contente, porque ela era depois de amanhã.
Se esse é o seu tempo, quando havia ela de vir senão no seu tempo?
Gosto que tudo seja real e que tudo esteja certo;

E gosto porque assim seria, mesmo que eu não gostasse.
Por isso, se morrer agora, morro contente,
Porque tudo é real e tudo está certo.
Podem rezar latim sobre o meu caixão, se quiserem.
Se quiserem, podem dançar e cantar à roda dele.
Não tenho preferências para quando já não puder ter preferências.
O que for, quando for, é que será o que é.





(Um poema por semana - RTP)





quinta-feira, 19 de março de 2015

José Luís Peixoto presenta en Badajoz su última novela "Galveias"



José Luís Peixoto presenta en Badajoz su última novela "Galveias"

El próximo día 24 de Marzo, a las 11:30, en la Biblioteca Pública de Badajoz


El próximo día 24 de Marzo, a las 11:30, vendrá a la Biblioteca Pública de Badajoz José Luís Peixoto, un escritor portugués y uno de los nombres más destacados de la literatura contemporánea a hablar sobre su obra y, aprovechando el evento, presentar su última novela "Galveias".


Panorama-Extremadura







segunda-feira, 16 de março de 2015

Sê jovem (António Botto)




SÊ JOVEM

Sê jovem,
jovem, apenas.

Não faças literatura
nem ponhas o melancólico aspecto
de quem sabe
e se debruça
nos abismos
desta pobre humanidade
tão vil e tão desgraçada!

Sê natural como as rosas
que rebentaram ali nos canteiros do jardim,
-- e sê jovem!

Mas não queiras ser mais nada
quando estás ao pé de mim.

António Botto


António Botto (1897 — 1959) foi um poeta, contista e dramaturgo português - um dos mais originais e polémicos do seu tempo. A sua obra mais popular, Canções, compreende um conjunto de poemas líricos que expressam o drama do sentir homoerótico, de modo subtil mas explícito, e foi um marco na lírica portuguesa pela sua novidade e ousadia, causando grande escândalo e ultraje entre os meios reaccionários da época. Amigo de Fernando Pessoa, que foi seu editor, defensor crítico e tradutor, conheceu igualmente outras figuras cimeiras da literatura portuguesa. Ostracizado em Portugal, em 1947 viajou para o Brasil, onde viveu os últimos anos em grande atribulação e penúria. Morreu em 1959, no Rio de Janeiro.

(Wikipédia)




António Botto, o autor diferente





segunda-feira, 9 de março de 2015

Morreste-me (José Luís Peixoto)




Regressei hoje a esta terra agora cruel. A nossa terra, pai. E tudo como se continuasse. Diante de mim, as ruas varridas, o sol enegrecido de luz a limpar as casas, a branquear a cal; e o tempo entristecido, o tempo parado, o tempo entristecido e muito mais triste do que quando os teus olhos, claros de névoa e maresia distante fresca, engoliam esta luz agora cruel, quando os teus olhos falavam alto e o mundo não queria ser mais que existir. E, no entanto, tudo como se continuasse. O silêncio fluvial, a vida cruel por ser vida. Como no hospital. Dizia nunca esquecerei, e hoje lembro-me. Rostos tornados desconhecidos, desfigurados na minha certeza de perder-te, no meu desespero desespero. Como no hospital. Não acredito que possas ter esquecido. Enquanto esperava pela minha mãe e pela minha irmã, as pessoas passavam por mim como se a dor que me enchia não fosse oceânica e não as abarcasse também. As mulheres falavam, os homens fumavam cigarros. Como eu, esperavam; não a morte, que nós, seres incautos, fechamos-lhe sempre os olhos na esperança pálida de que, se não a virmos, ela não nos verá. Esperavam. Num carro demasiado rápido, a minha mãe, curvada de perder o que possuía, e a minha irmã. Os homens e as mulheres falavam e fumavam ainda quando subimos. No quarto, numa cama qualquer que não a tua, o teu corpo, pai. Talvez distante, preso num olhar entreaberto e amarelado, respiravas ofegante. O ar com que lutavas, lutavas sempre, gritava o seu caminho rouco. Pelo nariz, entrava o tubo que te sustinha. Aos pés da cama, a minha mãe calada, viúva de tudo. À cabeceira, a minha irmã, eu. Cortinas de plástico, biombos de banheira separavam-nos das outras camas. Pousei-te as mãos nos ombros fracos. Toda a força te esmorecera nos braços, na pele ainda pele viva. E menti-te. Disse aquilo em que não acreditava. Ao olhar amarelo, ofegante, disse que tudo serias e seríamos de novo. E menti-te. Disse vamos voltar para casa, pai; vamos que eu guio a carrinha, pai; só enquanto não puder, pai; vá, agora está fraco mas depois, pai, depois, pai. Menti-te. E tu, sincero, a dizeres apenas um olhar suplicante, um olhar para eu nunca mais esquecer. Pai. À hora, mandaram-nos sair. Quando saímos, agarrados como naúfragos, a luz abundante bebia-nos.


José Luís Peixoto


Início do livro Morreste-me (1ª edição: do autor, do ano 2000), "deu a conhecer o jovem escritor José Luís Peixoto (...) é o relato da morte do pai, o relato do luto, e ao mesmo tempo uma homenagem, uma memória redentora."







sexta-feira, 6 de março de 2015

Ruy Ventura na Aula de Poesia Díez Canedo



Na passada terça-feira, dia 3, o poeta português Ruy Ventura leu excertos da sua obra para os alunos de diferentes escolas secundárias de Badajoz. Foi apresentado por duas alunas da nossa escola (faltou a Ana, que tinha um teste a essa hora) através de um Powerpoint com alguns dados biobliobiográficos.

A obra de Ventura, escrita em forma de poema em prosa, foi lida e esclarecida por ele nalguns passos. Talvez não seja uma poesia fácil para os alunos, pela riqueza vocabular, pelas imagens... mas lá estavam eles a seguir as palavras pela brochura que edita e distribui a Aula de Poesia Díez Canedo.

Para aqueles que perguntaram pela razão de não ser uma edição bilingue, é preciso dizer que os diretores da Aula julgaram melhor ideia publicar só em português para incluir mais obra original.


Dentre as perguntas que os alunos fizeram ao poeta, fico com duas:

A poesia dele seria diferente se tivesse nascido fora do Alentejo? Ruy Ventura sublinhou a importância que para ele e a sua visão do mundo tem o facto de ter nascido numa zona de fronteira (como pode acontecer na Catalunha que fica perto de França) de ser raiano, como todos aqueles que nasceram em Badajoz, ou nas localidades vizinhas da fronteira, da raia/raya, são "rayanos".

Como e quando é que ele decidiu ser poeta? Ventura respondeu que ele não decidiu a certa altura ser poeta, mas que foi a poesia que o escolheu, que decidiu por ele...

E umas palavras que quem gosta de poesia. Esta aprecia-se melhor na leitura repetida daqueles versos que nos tocam, mesmo que não percebamos tudo o que lá se diz.

Para terminar, eis um trecho do seu livro Assim se deixa uma casa.

Nasce do medo desta cidade, vista entre dois táxis que param ao fundo da janela. Encontro um silêncio em que os passos são a residência possível depois da melancolia. 

A porta fecha-se para que o corpo encontre o seu próprio equilíbrio. É preciso descer até ao rio e, desse modo, virar sempre a página, continuar a contabilidade que regista o cansaço como uma pequena alegria.  





quarta-feira, 4 de março de 2015

J.L. Peixoto: Apresentação do romance "Galveias" em Badajoz



Todos temos um lugar onde a vida se acerta. Cada mundo tem um centro. O meu lugar não é melhor do que o teu, não é mais importante. Os nossos lugares não podem ser comparados porque são demasiado íntimos. Onde existem só nós os podemos ver. Há muitas camadas de invisível sobre as formas que todos distinguem. Não vale a pena explicarmos o nosso lugar, ninguém vai entendê-lo. As palavras não aguentam o peso dessa verdade, terra fértil que vem do passado mais remoto, nascente que se estende até ao futuro sem morte.


Trecho do último romance de José Luis Peixoto, Galveias, que será apresentado pelo próprio autor na Biblioteca Pública de Badajoz no próximo dia 24 de março.


Crítica deste romance na revista Visão (16-10-2014)