segunda-feira, 26 de setembro de 2022

Ana Hatherly - Um português adoçado

 


UM PORTUGUÊS ADOÇADO

A língua que se fala
No Brasil
É um português adoçado:

A sua dureza
Trabalhada
No engenho dos séculos
Deu essa doçura
Essa macieza pura.

A língua é o tigre
O falante o domador
Os séculos o percurso
O caminho a eterna descoberta.

Como num largo oceano
Há sempre novas vagas.

Ana Hatherly

(Porto, 1929 - Lisboa, 2015)


Itinerários (2003) 



(Fotografia de Maxwell Mariano: São Luís, Maranhão, Brasil, 2017)


segunda-feira, 19 de setembro de 2022

Sá de Miranda - "O sol é grande, caem co´a calma as aves..."




O sol é grande, caem co´a calma as aves
Do tempo em tal sazão que soe ser fria.
Esta água que d´alto cai acordar-me-ia
Do sono não, mas de cuidados graves.

Ó cousas todas vão, todas mudaves!
Qual é tal coração qu´em vós confia?
Passam os tempos, vai dia trás dia,
Incertos muito mais que ao vento as naves.

Eu vira já aqui sombras, vira flores,
Vi tantas águas, vi tanta verdura,
As aves todas cantavam d´amores.

Tudo é seco e mudo, e de mestura,
Também mudando-m´eu fiz d´outras cores,
E tudo o mais renova: isto é sem cura.

Sá de Miranda





segunda-feira, 12 de setembro de 2022

Paulo Leminski - Sossegue coração




SOSSEGUE CORAÇÃO

sossegue coração
ainda não é agora
a confusão prossegue
sonhos afora

calma calma
logo mais a gente goza
perto do osso
a carne é mais gostosa

Paulo Leminski


segunda-feira, 5 de setembro de 2022

Paulina Chiziane




Celebro o amor e a vida. Danço sobre a vida e a morte. Danço sobre a tristeza e a solidão. Piso para o fundo da terra todos os males que me torturaram. A dança liberta a mente das preocupações do momento. A dança é uma prece. Na dança celebro a vida enquanto aguardo a morte. Dançar. Dançar a derrota do meu adversário. Dançar na festa do meu aniversário. Dançar sobre a coragem do inimigo. Dançar no funeral do ente querido. Dançar à volta da fogueira na véspera do grande combate. Dançar é orar. Eu também quero dançar. A vida é uma grande dança.

Paulina Chiziane






(Fotografia de Luca Gargano, Moçambique, 2008)


quinta-feira, 1 de setembro de 2022

Miguel Torga - Alvorada




ALVORADA

Foi tudo simples:aconteceu.
O dia amanhceu,
Acordei.
E reparei no milagre concreto de viver.
E cantei
Como um galo feliz.
O que esse canto diz
É que não sei.

Miguel Torga, Diário XII




(Alvorada, fotografia de João Caetano Dias)