quinta-feira, 1 de abril de 2021

Manoel de Barros - A boca

© Monica Silveira

 

A BOCA

"Por mim passavas
- a água mais pura -
e eu sofri sede.

Agora penso
nessa abertura
com que por anos
me envenenaste,
com que por anos
a minha infância
tornaste impura,
tornaste indigna
de andar ao lado
de outras infâncias...
Agora penso
deixar na fenda
de tua boca,
dissimulada,
todo o veneno
de que me inundas.
Porém és morta
resignada,
ó boca amarga
de namorada
nunca atingida,
sempre ane
boca perdida
para as saudades,
jamais beijada.

Dorme entre flores.

(Será dos anjos?)

Vai para os anjos
vai para os pássaros
do firmamento,
ó boca amarga,
que me enganavas
com aquele riso
posto no canto!

Por mim passavas
- a água mais pura -
e eu sofri quanto.

Estás no seio
da morte, quente
como na terra;
me conturbavas
como na rua
tu exibias
teus belos dentes...

Vai, grota rasa!

Flor obscura
na minha infância
desabrochada,
continuada
na adolescência
perto de casa,
na vizinhança,
solta na rua
como uma fruta
covil aberto
de mil acenos,
cobra na rua
que me mordia,
que me injetava
sutis venenos...

Vai, pesadelo,
noites de insônia,
pura miragem
de minha sede;
vai para o diabo
que te carregue,
não me persiga:
sai, boca morta!"

Manoel de Barros