quarta-feira, 28 de maio de 2014

A rapariga de Cambridge (Ruy Belo)



A RAPARIGA DE CAMBRIDGE

Queria conhecer intimamente conhecer
a rapariga anónima estendida no relvado
ao sol distante de um colégio de cambridge
Perdida na distância nem sei bem
se é uma mulher se rapariga
mais uma das amadas raparigas
Sei apenas que lê não sei o quê
e é simples objecto recortado
na margem verde intensamente verde
após a água mansa que reflecte os edifícios
Urgente é conhecer aquela que só veio num postal
mandado por alguém que certamente não sabia
o que essa rapariga ao sol para mim significaria
Ela devia saber um português profundíssimo
ou talvez as coisas que eu tinha para lhe dizer
as conseguisse de repente dizer num inglês
que fosse a melhor parte de mim
Definitivamente todo este dia-a-dia
contra o qual esmago a minha melhor lança
como que um sobressalto passaria
O meu reino pela rapariga de cambridge
Se eu a conhecesse mas no momento da fotografia
sentindo agora o que à distância sinto
pode dizer-se que seria feliz
Só assim o seria finalmente
há uma força obscura que mo diz.

Ruy Belo, in Homem de Palavra(s) (1969)




segunda-feira, 26 de maio de 2014

Mais uma citação de Agostinho da Silva




"Cada vez mais o homem se tem posto e considerado como dono do mundo, com o direito de destruir os animais e as plantas, de escravizar os irmãos homens, de transformar a vida inteira nalguma coisa que não tem outro fim senão o de sustentar a sua vida material. (…) A vida tornou-se feroz, implacável e, o que é pior ainda, sem sentido nenhum que eleve a vida além da vida. É uma série de momentos em que se produz para se consumir e se consome para se poder produzir de novo"

Agostinho da Silva, A Comédia Latina.


Agostinho da Silva por Fernando Lemos © Colecção Fundação Cupertino de Miranda


Agostinho da Silva (Porto, 1906 — Lisboa, 1994) foi um filósofo, poeta e ensaísta português. O seu pensamento combina elementos de panteísmo, milenarismo e ética da renúncia, afirmando a Liberdade como a mais importante qualidade do ser humano. Agostinho da Silva pode ser considerado um filósofo prático empenhado, através da sua vida e obra, na mudança da sociedade. Passou considerável tempo de sua vida no Brasil.


Portal Agostinho da Silva




sexta-feira, 23 de maio de 2014

"Quando um anel salva um homem..." (Luís Filipe Borges)



Luís Filipe Borges, mais conhecido por Boinas, é o vencedor do Grant's True Tales 2012 para o Festival Fringe de Edimburgo. "Quando um anel salva um homem...", uma história de ironias e muita acção que felizmente termina bem e o ensinou a não julgar as pessoas pelos seus "adereços".




Rotas (Fernando Sylvan)

Mar de fogo, Díli


ROTA

Não sei se o mar tem voz
Mas a sua voz
Desde pequeno me falava lento.

E eu via nele
O que não existia na memória.
Ninguém sabia
De meus avós e bisavós
Se era quadrado ou redondo
Se tinha vida ou não.

Mas sem saber se tinha voz o mar
Ouvia a sua voz.
E sem saber se tinha vida ou não
Sentia a sua vida.

Foi ele que me disse
Que havia Espaço e Tempo.

E comecei a viajar sem medo da viagem.

E nunca mais parei
Com medo da paragem.

Fernando Sylvan


Fernando Sylvan, pseudônimo de Abílio Leopoldo Motta-Ferreira (1917 - 1993), foi um poeta, prosador e ensaísta timorense.

Nasceu em Díli, capital de Timor-Leste, contudo, passou a maior parte de sua vida em Portugal, onde morreu, na vila de Cascais. A distância geográfica entre Portugal e Timor não impediu Sylvan de continuar escrevendo sobre o seu país de origem, dissertando sobre suas lendas, tradições e folclore. Um de seus temas preferidos é a infância, período de sua vida que lhe deixou muitas saudades de Timor.

(Wikipédia)


Em Parque dos poetas lemos:

Esteve muitos anos ligado à oposição portuguesa no tempo de Salazar e Caetano. Representou, depois de 1975, várias vezes, os escritores Timorenses em fóruns internacionais e criou o Dia Internacional da Língua Portuguesa. A sua poesia tem duas componentes distintas: a de referência timorense com uma estilística entre modernista e panfletária e a de referência genérica e autobiográfica. Desenvolve um conceito dinâmico de Pátria, colocando-o na dependência de um exercício de pensamento, cidadania e fraternidade que lhe permitia reclamar da colonização e do racismo europeus e justificar os processos de independência, desde que fossem autênticos.





quinta-feira, 22 de maio de 2014

Desventuras de um dendrólatra (Rubem Fonseca)


 Um ipê amarelo - Fotografia de Lenynha


Desventuras de um dendrólatra

É possível existir alguém que não goste de árvore? Não falo do sujeito, índio ou não, que faz a queimada para plantar mandioca, soja, cana-de-açúcar ou lá o que for. Esse vai direto para o inferno, mesmo jurando para São Pedro que fazia isso para conseguir o leite das crianças. Falo das pessoas que me cercam, que vivem na minha cidade e não têm qualquer razão para destruir, desprezar, ou até mesmo ignorar a existência das árvores.

O poeta polonês Czeslaw Milosz tem um poema denominado “Anelo” (ou “Desejo ardente”) que diz “não quero ser um deus ou um herói, apenas tornar-me uma árvore, crescer um longo tempo, e não ferir ninguém”.

São assim as árvores. Não ferem ninguém, e ainda dão sombra e frutos. Os druidas acreditavam que quando nos aproximávamos de uma árvore, nos acercávamos de um ser sagrado que nos podia ensinar sobre o amor e nos dar conhecimento e sabedoria. O termo druida tem origem céltica e acredita-se que seja um cognato da palavra grega drus que significa carvalho, essa árvore de grande porte.

Nosso nome, brasileiro, é proveniente de uma árvore de cerne vermelho, manchado de escuro, o pau-brasil, de onde veio o nome do nosso país. Somos, assim, parecidos com os druidas, eles se relacionam com o carvalho, nós com o pau-brasil. Apenas não acreditamos, como eles, que as árvores possam nos transmitir conhecimento ou sabedoria.

Moro numa praça onde periodicamente a Fundação Parques e Jardins planta algumas árvores, de maneira tão precária, que morrem em pouco tempo. São sustentadas por pedaços finos de bambu, que mal se mantêm em pé e não têm nenhuma proteção de metal em torno. Da última vez, plantaram oito árvores dessa maneira tosca e apenas uma sobreviveu, um ipê, que cresceu não obstante alguns mendigos bêbados, malucos ou vândalos cretinos, quebrassem constantemente os seus galhos.

Notando que ela não resistiria por muito tempo, pois a sua raiz não estava muito firme, telefonei para a Fundação Parques e Jardins. Dei o meu nome e endereço e falei da situação periclitante daquela árvore, expliquei que ela necessitava de uma proteção de metal, como as que existem na Praça Nossa Senhora da Paz. Eles prometeram uma providência. Um mês depois, como nada tivesse ocorrido, liguei novamente e disse que estava disposto a pagar pela proteção de metal. Aquilo deixou a pessoa que me atendeu meio perturbada, pediu para eu esperar na linha pois ia consultar alguém. Quando voltou disse que eles mesmos providenciariam a proteção.

Sei que a Fundação Parques e Jardins é integrada por pessoas dedicadas, que têm o maior interesse em preservar as árvores da cidade. Entretanto, a Fundação dispõe de um orçamento tão parcimonioso que tem dificuldades para atender às inúmeras solicitações que lhe fazem.

Toda noite, munido de várias garrafas grandes de plástico cheias de água, eu ia regar o ipê. Mas a sua raiz continuava bamba. Decidi solicitar o auxílio da BodyTech, uma academia de ginástica, que anunciava, com cartazes, que estava tomando conta da praça. Consegui que uma petição, assinada por vários sócios, fosse enviada à direção da academia solicitando providências em relação àquela árvore. Aconteceu alguma coisa? Nada. Aqueles cartazes da academia eram apenas propaganda.

Então decidi contratar uma pessoa para tomar conta da árvore. Esse indivíduo colocou vários quilos de terra adubada na raiz da árvore, improvisou uma proteção de madeira em torno do seu caule e borrifa, periodicamente, líquidos protetores em suas folhas.

Devido à influência do jornalista Agostinho Vieira, que tem uma coluna no GLOBO, Economia Verde, a Fundação Parques e Jardins colocou em torno da minha árvore uma proteção metálica.

Sei que existe quem diga que é uma coisa idiota fazer esse estardalhaço por causa de uma árvore. É devido a esse tipo de pensamento que uma, duas, três, milhões de árvores são incessantemente destruídas em nosso país. E isso me preocupa, quer seja um milhão de árvores, quer seja apenas uma. Sou um dendrólatra incorrigível.

Não posso deixar de citar trecho de um poema de Joyce Kilmer: “I think that I shall never see a poem lovely as a tree. [...] Poems are made by fools like me, but only God can make a tree.” (Em tradução livre: “Creio que nunca verei um poema lindo como uma árvore... Poemas são feitos por idiotas como eu, mas uma árvore só pode ser feita por Deus.”).

Essa praça, acrescento eu agora, deve ter todas as suas árvores, ou pelo menos a imensa maioria delas, destruídas pelo nocivo planejamento do metrô. A Praça Nossa Senhora da Paz em Ipanema vai sofrer a mesma violência. Realmente, como disse o poeta e filósofo alemão Schiller, “contra a estupidez humana até os deuses lutam em vão”. Mas quero deixar claro que não sou contra o metrô, como meio de transporte. Sou contra a destruição das árvores.


Rubem Fonseca


(Carta do escritor brasileiro a um jornal lida no Blog de Alberto Renault)


segunda-feira, 19 de maio de 2014

A lei da metamorfose - blogue 'Insónia'



A LEI DA METAMORFOSE

E este é o maior elogio que se pode fazer a uma obra: nunca mais o burro foi o mesmo depois de Platero y yo ter sido lido; nunca mais as baratas foram as mesmas depois de Adília as ter metido em verso; nunca mais a mosca foi a mesma depois de O’Neill; nunca mais os porcos depois de Animal Farm; nunca mais o lobo foi o mesmo depois de, ainda em criança, me ter sido contada a história de Pedro e o Lobo; nunca mais o peixinho vermelho foi vermelho depois de Herberto; nunca mais a baleia depois de Herman Melville; nunca mais tanta bicharada foi olhada do mesmo modo depois de Esopo e de Ovídio e de La Fontaine e de Ambrose Bierce; nunca mais o rinoceronte após Ionesco ou as vespas após Aristófanes ou as moscas após Sartre; nunca mais senti os pássaros da mesma maneira depois de ter visto o filme de Hitchcock ou o tubarão depois de Spielberg; nunca mais os cisnes depois do lago; o rato depois de Mickey; nunca mais tanta coisa foi a mesma depois da lei da metamorfose. Mas do que eu gosto mesmo, mesmo, mesmo é do crepúsculo, de figuras como o Minotauro, o vampiro, o lobisomem ou dessa magnífica figura que é o centauro. E é o canto das sereias aquele que mais me atrai neste mundo. 


Lido em Insónia
(17.3.2009)


sexta-feira, 16 de maio de 2014

Soneto do Amor e da Morte (Vasco Graça Moura)




Soneto do Amor e da Morte

quando eu morrer murmura esta canção
que escrevo para ti. quando eu morrer
fica junto de mim, não queiras ver
as aves pardas do anoitecer
a revoar na minha solidão.

quando eu morrer segura a minha mão,
põe os olhos nos meus se puder ser,
se inda neles a luz esmorecer,
e diz do nosso amor como se não

tivesse de acabar, sempre a doer,
sempre a doer de tanta perfeição
que ao deixar de bater-me o coração
fique por nós o teu inda a bater,
quando eu morrer segura a minha mão.

Vasco Graça Moura, in Antologia dos Sessenta Anos


Lido no blogue da Livraria Pó dos livros


Vasco Graça Moura faleceu no passado dia 27 de abril





segunda-feira, 12 de maio de 2014

A lição do aprendiz (Mia Couto)


Fotografia de José Carlos Costa


A LIÇÃO DO APRENDIZ

Apresentou-se com uma carta na mão. O barbeiro Lázaro interrompeu a tesouração e foi à porta. O miúdo estendeu a carta, com a mão esquerda segurando respeitos no braço direito. Era uma missiva triste, com notícias escuras dos lados da guerra. O rapaz que ali se apresentava ficara sem ninguém, a família dele era só pena dos outros.
O barbeiro fingiu demorar-se na leitura. Tinha receio de enfrentar aqueles olhos orfãos, parentes da morte.
- Quem escreveu este bilhete foi meu primo Ezequiel?
O miúdo acenou com a cabeça, dispensando a voz.
- E queres trabalhar aqui comigo, aprender o serviço de barbeiro?
Agora foram os ombros que responderam um encolhimento.
- Como te chamas?
Chamava-se Antoninho. O barbeiro aprontou-lhe na condição. Pequena mas constante. Antoninho trabalharia ali mesmo, ajudante. Dormiria na própria barbearia. Chegada a hora de fechar, retiravam-se as almofadas da cadeira e estendiam-se no chão. Ele deitava naquele sossego frio, até dava jeito para espantar a ladroeira.
O menino foi ficando, vassourando os intervalos da clientela, lustrando o espelho, sacudindo os panos. Nunca de sua língua se confeccionava palavra. Lázaro empurrava-lhe para a vontade, com ordem amiga:
- Está atentinho, veja como eu faço. Um dia desses vais poder cortar o cabelo, tu também.
Mas o miúdo parecia sempre longe, dissidente da infância, olhos exilados na rua por onde a vida se derramava quente e luminosa. Fazia ate medo contemplar aqueles olhos cheios dele. Toda a alma daquele pequeno corpo estava ali naqueles dois luzeiros, pareciam feitos de água incendiada. Antoninho amealhava silêncios, sem que ninguém suspeitasse que sonho brincava dentro dele.
Uma manhã, mais cedo que a hora habituada, Lázaro surpreendeu o miúdo deitado por baixo da cadeira, de alicate na mão. - Que estas a fazer?
O moço gaguejou: a razão por que alicateava era a cadeira que estava a soltar-se dos parafusos. Um dia desses, o cliente se descompunha, placando contra a vontade. Assim se explicou Antoninho, com a vergonha adoçando-lhe as maneiras da voz. Lázaro espreitou a obra, abanou a cadeira. A dita estava agora bem fixa. O raio do miúdo até que teve boa iniciativa. Dali em diante, sucederam-se as surpresas mecânicas. As dobradiças da porta foram reparadas, as tesouras afinadas. Antoninho revelava seus dotes de consertador.
- Você bem podia consertar este espelho, adaptar posição dele. Os clientes têm de esticar os pescoços para se verem.
Mas o suporte do espelho era obra demasiada, pedia habilitações superiores. Antoninho pediu tempo para se instruir dos serviços requeridos. Só um tempo que os dias estão cheios de semanas inúteis.
O tio começou a nutrir admiração pelo rapaz. Uma ideia lhe nasceu: o sobrinho merecia um futuro, quem sabe ele não dava um mecânico de primeira. Falou com o Manjate, proprietário da oficina lá do bairro.
Ficou assente. Depois de despegar da barbearia, Antoninho passou a frequentar a oficina, apreciar técnicas e segredos da mecânica. O jovem tinha olhos aprendizes, reparando em tudo com grande velocidade. Cedo se acostumou às intimidades dos motores, cirurgião dos ferros.
O barbeiro começou a pensar ainda mais alto. A barbearia, com essa coisa da Sida, estava adoecida, aflita de clientes. Talvez nem fosse má ideia aproveitar as tendências do miúdo e abrir ele próprio um negócio de oficina. Uma manhã, a loja repleta, Lázaro anunciou bem alto o seu plano. Na cadeira, Serafindo Matine, estudante de economia, esticou bem seu português:
- É um projecto de pequena dimensão, mas se tiver financiamento garantido, meios técnicos, viabilizados, então a reprodução do capital investido...
Levantando a mão, o barbeiro interrompeu os ditos. Nem ele suspeitava que sua simples ideia merecesse tamanha palavreação. E enquanto o futuro economista prosseguia xiricando sabedoria, Lázaro chamou o miúdo e lançou-lhe a proposta. Seriam sócios, o dinheiro seria por conta dele, mas as receitas não demorariam. E encheu a língua de promessas. Então?
- Não quero sociedade, tio
- Não queres?
- É que eu vou voltar na minha terra.
Lázaro estranhou. Mas então ele não via que aqui é que se ganham os tacos, enquanto lá, com essa porcaria dos bandidos, ninguém pára descansado? Mas o miúdo insistia:
- Já decidi, vou voltar. Lá sou muito precisado. Há tanta coisa que é preciso reparar lá, você nem imagina, tio.
No dia seguinte, o miúdo se abraçou à viagem, com um saco cheio de ferramentas compradas de sua economia. O barbeiro deu conta da sua ausência e foi logo à caixa ver se desaparecera dinheiro. A caixa estava intacta, virgem de maldades. Então o barbeiro reparou que um novo suporte, de haste flexível, sustentava o espelho. Sentou-se na cadeira e, horas perdidas, ficou remirando seu rosto, agora mais antigo, mais longínquo, como se houvesse na ausência do sobrinho uma lição que ele lentamente decifrasse.

Mia Couto


(Conto completo, do seu livro Cronicando)





terça-feira, 6 de maio de 2014

Alentejo (Miguel Torga)

 Anoitecer em Arronches, Alentejo
(Fotografia de Emílio Moitas)



ALENTEJO

A luz que te ilumina,
Terra da cor dos olhos de quem olha!
A paz que se adivinha
Na tua solidão
Que nenhuma mesquinha
Condição
Pode compreender e povoar!
O mistério da tua imensidão
Onde o tempo caminha
Sem chegar!...

Miguel Torga



quinta-feira, 1 de maio de 2014

Viagem pela ideia de crise (João de Melo)

Fotografia de Renato Monteiro


Viagem pela ideia de crise

Não sei há quantos anos ouço falar de crise - a ideológica, a religiosa , a sentimental, a artística, a literária, e também a social, a económica, a financeira, a laboral, a politica, a mundial ou a universal. Uma crise sem paredes que circula entre todos os espaços em branco - esta espécie invasora que já não se detém no limiar de nenhuma fronteira; que não precisa de passaporte nem de santo e senha para entrar, insinuar-se, insurgir-se e instalar-se sentada no meio de nós, ou erguida no pavor sombrio dos nossos sonhos, na roupa, na pele, na alma (para quem ainda a possua ou nela creia, obviamente).

Nenhuma ideia de felicidade nos pertence (seria no mínimo ridículo que um escritor ousasse confessar-se uma pessoa feliz). Nascemos portugueses, mas para sobreviver a um permanente e absoluto estado de crise, em Portugal. ... Para mim, a única e verdadeira crise dá pelo nome de hiperidentidade - ao mesmo tempo individual e colectiva. Assistem-me portanto o direito e o dever de a invocar. Não sei que fazer de mim, do meu excesso de identidade. Sei muito bem quem sou, mas ignoro a minha missão e não sei em que morada deixei esquecida a chave do meu próximo destino.

Nenhuma possibilidade de se ser feliz em Portugal? Seja pelo facto de nada de bom ou de extremamente mau nos acontecer, seja porque em Portugal simplesmente já não acontece nada. Falamos pouco, mas ouvimos muito. Come-se mal, bebe-se melhor. O resto é uma chaga, uma deriva, um sentimento de que nada aqui nos pertence. Não sei quem veio de fora , nem por que motivo as coisas deixaram de ser nossas - mas voga por aí uma presença estranha, o rosto invisível e absoluto de um qualquer ocupante estrangeiro. Ele mudou o nome das coisas e a precisão doméstica dos nossos sítios. Tomou conta dos lugares públicos. Aquartelou-se nas casas, nas tribunas e nos templos. E agora impõe-nos uma ordem social e espiritual que nunca foi nossa: ou seja, uma religião sem princípios , a confraria da imoralidade, o coro, as matinas, as vésperas de um convento para as almas. E uma sabatina histórica que não nos deixa regras nem palavras. Mas se de facto não acontece nada , tudo porém se vai fazendo em nome de uma imensa maioria silenciosa, a mesma que dá sustento e legitimidade aos diques de que é feita a conjura, digo , a conjuntura do medo e do regime.

Hoje, em Portugal, é Deus quem parte e reparte com o Diabo, ficando este com a melhor parte. São populares e risonhos os amanuenses e os ditadores do país onde já não acontece nada. Basta-nos, para que isto ainda exista, haver lá no alto um cardeal primeiro-ministro , alguns bispos e curas nos ministérios e uns quantos noviços por secretários de Estado - mantendo-se assim a nossa ilusão acerca da existência do país. Bastam-lhe os lugares sentados no Parlamento e um talentoso orador a gritar ao povo; bastam-lhe dois escritores e meio para falar por todos; 12 actores de teatro e cinema, dez policias e um general, um maestro de batuta erguida ante as 52 cabeças de uma orquestra, zero vírgula um arrependidos políticos confessos, dois vírgula zero seis professores e sindicalistas, três médicos e meio engenheiro, um cantor de fados e 13 guarda-costas, um agricultor e oito industriais, um futebolista e três quartos de outro, um careca idoso e outro careca que ainda exibe o cartão jovem ou o título de novo empreendedor - e fica completo o comício.

Não posso nem devo queixar-me de um país que já não existe. Lamento tudo aquilo que aqui me cerca: este território de ocupação e de gente possuída, este novo "silêncio do mar" de que falou um dia o proscrito Vercors, e o tempo de agora que parece eterno enquanto dura, como diria o poeta Vinicius; o tempo em que, em silêncio oficial, vão morrendo (indignados, desgostosos) mulheres e homens de cultura, gente honrada que assistiu à nova invasão dos Hunos e à sua barbárie e que ainda assim permaneceu honrada.

Vão-se os homens desta terra que em tudo deixou de valer a pena desde que a sua alma se fez pequena. Vão-se os anéis e os dedos, os pomares e as vinhas, as searas de trigo e os pinhos, os pássaros e o milho - e calam-se pouco a pouco as vozes e os sinos. Já tudo foi dito e escrito, ó André Guide; mas, visto que a memória é tão breve, deve-se escrever e dizer tudo de novo. E aprender no vento os nomes de tudo aquilo que agora é e que dantes não estava aqui. Havia agricultura e os campos, o canto e a lida (Fernando Pessoa), a poesia e o sonho, os barcos, as veredas e as sombras. Havia algo por que ainda fosse possível e preciso gritar. Não este silêncio e este sepulcro, nem este desmazelo prepotente, nem esta arte de que usam e abusam eles, os ocupantes, para nos fazerem calar a boca e ter paciência.


O caso é que eu aprendi a revolução e a história na escola primária . Vivi-as no gesto largo dos heróis, colhi-as como as flores do mal e do vinho em Baudelaire. Não vim para assistir a isto de chegar uma gente sem idade nem memória de nada e obrigar-me a crer que tudo aquilo que vivi e amei não passou afinal de uma ficção ou de uma mentira. No meu tempo, havia livros escritos só para que os comessem os subalimentados do sonho, ó Natália Correia, e não esta gente que nos vira a cara, que cospe para o lado e diz entre dentes que a cultura é cega surda e muda como a pedra, como a "mula da cooperativa".

João de Melo


(Jornal de Letras -Março 2014)