sexta-feira, 27 de maio de 2022

Ruy Cinatti - Breve Encontro

 



BREVE ENCONTRO

Um amor de mulata atrai o corpo
habituado a lides extrínsecas.
Modela, circunspecto, as pernas, o rosto,
os seios-olhos, as partes oblíquas.
Quer falar
palavras sem medida, infecciosas.
Sorri.
Mede distâncias.
Retrai-se ao ínfimo
que separa ainda duas almas
coetâneas, mas só por momentos,
no bar frente à baía de Sto. António, ilha do Príncipe.

Ruy Cinatti


Lembranças para S. Tomé e Príncipe (1975) 



segunda-feira, 23 de maio de 2022

Ana Salomé - Ode Rimbaud




ODE RIMBAUD

eu sou absolutamente moderna, Rimbaud.
sei que nunca pensaste que uma rapariga de Portugal
se tornasse absolutamente moderna.
o caso é que nunca deitei o amor pela janela
mas a janela deitou-se pelo amor dentro.
não toco piano, não falo francês, nem faço fru-fru.
sou absolutamente moderna, Rimbaud.
tenho telemóvel, tenho blog, tenho carro
e até uma paixão que já não é platónica
agora para se ser absolutamente moderno
diz-se virtual, Rimbaud.
perdoa-me
dou-te a minha perna
um prato com bolinhos de canela
para te lembrares do tempo dela.
perdoa-me o sarcasmo, Rimbaud
o fatalismo azedo de rapariga absolutamente moderna
constructo humano, já não ser.
perdoa as minhas pernas a engordar de noite para noite
o fumo da chaminé comum do prédio
a minha imensa falta de árvores
a minha necessidade que devora um poema para o deitar fora.
perdoa-me não ter entendido uma única coisa que disseste
mesmo na tradução do Cesariny que é livre e bela
como uma rosa francesa desgrenhada em solo português.
perdoa-me escrever telegraficamente
ter deixado de respirar para todo o sempre
e continuar a pintar os lábios de vermelho
como se isso fosse possível num deserto sem beijos.
perdoa-me não ter conseguido manter a tua palavra
perdoa-me ter falhado e ser erro.

p.s. - se quiseres regressar a terra
como o Cristo da literatura do não
tomas café comigo?



Ana Salomé





segunda-feira, 16 de maio de 2022

Manuel Resende - Café Sampo



CAFÉ SAMPO

No Café Sampo, o café
é sumo de peúgas,
os bolos, borracha da Sibéria,
o vodka, metanol puro,
não há serviço às mesas,
mas, felizmente, o empregado
e caixa
é casmurro e malencarado,
calado como uma rena
a pastar neve,
e deixa-me remoer
em paz
a minha
depressão
tamanho familiar.
Ali estou sozinho
como numa
retrete.

Manuel Resende



Lido no blogue Coração Acordeão, de António Gregório.





segunda-feira, 9 de maio de 2022

Sophia de Mello Breyner Andresen - Espera

 

ESPERA

Deito-me tarde
Espero por uma espécie de silêncio
Que nunca chega cedo
Espero a atenção a concentração da hora tardia
Ardente e nua
É então que os espelhos acendem o seu segundo brilho
É então que se vê o desenho do vazio
É então que se vê subitamente
A nossa própria mão poisada sobre a mesa

É então que se vê passar o silêncio

Navegação antiquíssima e solene


Sophia de Mello Breyner Andresen


Geografia (1967)