segunda-feira, 29 de maio de 2023

Bruna Kalil Othero - “a vó de uma amiga se casou com 12 anos…”

 


a vó de uma amiga se casou com 12 anos.
teve o primeiro filho com 14, e não parou nunca mais.
(de ter filhos.)
era analfabeta. não sabia ler nem escrever,
assinava com a digital do dedão.
dizia que não se pode lavar o cabelo
durante a menstruação.
apanhava flores no jardim. também apanhava
do marido.
nasceu em 1933. um ano antes,
as mulheres haviam conseguido o voto. um ano depois,
graciliano ramos publicava são bernardo.
o nome dela era
odete.
fora deste poema que ninguém vai ler,
sua história
nunca será contada.
porque é só mais uma odete
entre tantas

outras.


Bruna Kalil Othero

(Belo Horizonte, 1995)



(Fotografia de Maicon Damasceno, minha vó)



segunda-feira, 22 de maio de 2023

Sá de Miranda - "Aquelas esperanças que eu, metido..."

 


Aquelas esperanças que eu, metido
A tormento, lancei fora por vans,
Que fazem ainda aqui co' as minhas sans
Contas, feito em pó já tudo, e bebido ?

Como? E será tam cego, e sem sentido
Amor, que uinas razões claras iam chans
Não ouça, e que não veja tantas cans,
Tanto tempo baldado, e não vivido ?

Esta alma, tantas vezes enganada.
Não tornará por si, não fará conta
Co'a despesa, c'o sol e co'a jornada?

Quem do mar escapou, quanto tnal conta
Que perigos sem fim! mas logo brada
Outra vez aos da nau na terra afronta!

Sá de Miranda





terça-feira, 16 de maio de 2023

Miguel Torga - Súplica



SÚPLICA

Agora que o silêncio é um mar sem ondas,
E que nele posso navegar sem rumo,
Não respondas
Às urgentes perguntas
Que te fiz.
Deixa-me ser feliz
Assim,
Já tão longe de ti, como de mim.

Perde-se a vida, a desejá-la tanto.
Só soubemos sofrer, enquanto
O nosso amor
Durou.
Mas o tempo passou,
Há calmaria…
Não perturbes a paz que me foi dada.
Ouvir de novo a tua voz seria
Matar a sede com água salgada.

Miguel Torga




(Fotografia de Kavya Hajra)



segunda-feira, 8 de maio de 2023

Jorge Barbosa - Ilha


 

ILHA

Quando o barco alemão vem à ilha carregar sal
há um sobressalto íntimo de contentamento
na gente que fica a ver de terra.

À varanda da antiga casa do lago
olhos curiosos em direcção ao mar
atravessam as lentes baças
do velho binóculo do tempo dos piratas.

Toma certo ar garboso e oficial
com a bandeira nacional à popa
o escaler a remos
ao partir apressado ao vapor
com as autoridades todas do porto
que leva uma grande pasta sob o braço...

Compram-se a bordo novidades
ouvem-se notícias de longe...
bebe-se
cerveja gelada...

O barco parte depois
e a Povoação resignada
retoma a monotonia habitual...
 
...à noitinha
à hora tagarela de em seguida ao jantar
os homens reúnem-se na rua principal
comentando as ocorrências do dia.

Vem então à baila aquela passageira de boca pintada
que seguia para o Congo Belga...

E da evocação da mulher estrangeira
ficou um sonho parado
em cada um...


Jorge Barbosa




(Fotografia de Cédric Lange - Bom dia, Cabo Verde. Mindelo, São Vicente, 2013)



segunda-feira, 1 de maio de 2023

Natália Correia - Projecto de Bodas





PROJECTO DE BODAS

Hoje apetece que uma rosa seja
o coração exterior do dia
e a tua adolescência de cereja
no meu bico de Isolda cotovia.

Hoje apetece a intuição dum cais
para a lucidez de não chegar a tempo
e ficarmos violetas nupciais
com a lua a celebrar o casamento.

Apetece uma casa cor-de-rosa
com um galo vermelho no telhado
e os degraus duma seda vagarosa
que nunca chegue à varanda do noivado.

Hoje apetece que o cigarro saiba
a ter fumado uma cidade toda.
Ser o anel onde o teu dedo caiba
e faltarmos os dois à nossa boda.

Hoje apetece um interior de esponja
E como estátua a que moldar o vento.
Deitar as sortes e, se sair monja,
Navegar ao acaso o meu convento.

Hoje apetece o mundo pelo modo
Como vai despenhar-se um trapezista.
Abrir mais uma flor no nosso lodo:
Pedir-lhe um salto e retirar-lhe a pista.

Hoje apetece que a cor dum automóvel
Seja o Egipto de novo em movimento;
E que no espaço duma gota imóvel
Caiba a possível capital do vento.

Hoje apetece ter nascido loiro
Como apetece ter havido Atenas;
E tu nas curvas rápidas de um toiro.
E eu quase intangível como as renas.

Hoje apetece que venhas no jornal
Como um anúncio. Sem fotografia.
E inventar-te uma lenda de cristal
Para reflectir a minha biografia.

Natália Correia


O Sol nas Noites e o Luar nos Dias (1993)


Lido no blogue Livros & Saltos


(Fotografia de Edgar V., La mariée du Pont des Arts)