segunda-feira, 19 de dezembro de 2022

Inês Lourenço - "Disfarçar-se de relâmpago ou de outras coisas impossíveis..."



Disfarçar-se de relâmpago ou de outras coisas impossíveis, comer todos os chocolates, ter uma bicicleta igual à do estúpido do vizinho, fazer as coisas que os adultos escondem atrás da porta dos quartos, retribuir a bofetada aos nossos legítimos superiores, querer morder com justa causa tanta gente no mundo e só poder no escuro morder uma almofada.

Inês Lourenço

Coisas que nunca, Ed. & etc, Lisboa, 2010



(Fotografia de Eduard Valentin)




terça-feira, 13 de dezembro de 2022

Jorge de Sena - Aviso de porta de livraria

 



AVISO DE PORTA DE LIVRARIA

Não leiam delicados este livro,
sobretudo os heróis do palavrão doméstico,
as ninfas machas, as vestais do puro,
os que andam aos pulinhos num pé só,
com as duas castas mãos uma atrás e outra adiante,
enquanto com a terceira vão tapando a boca
dos que andam com dois pés sem medo das palavras.
E quem de amor não sabe fuja dele:
qualquer amor desde o da carne àquele
que só de si se move, não movido
de prémio vil, mas alto e quase eterno.
De amor e de poesia e de ter pátria
aqui se trata: que a ralé não passe
este limiar sagrado e não se atreva
a encher de ratos este espaço livre
onde se morre em dignidade humana
a dor de haver nascido em Portugal
sem mais remédio que trazê-lo n’alma.

Jorge de Sena


Primeiro poema do livro Exorcismos (1972)  


(Fotografia de Mário Novais)



sexta-feira, 9 de dezembro de 2022

Clarice Lispector - Era uma vez

O casarão onde Clarice Lispector morou,
na praça Maciel Pinheiro, em Recife



ERA UMA VEZ

Respondi que gostaria mesmo era de poder um dia afinal escrever uma história que começasse assim: "era uma vez...". Para crianças? perguntaram. Não, para adultos mesmo, respondi já distraída, ocupada em me lembrar de minhas primeiras histórias aos sete anos, todas começando com "era uma vez"; eu as enviava para a página infantil das quintas-feiras do jornal de Recife, e nenhuma, mas nenhuma, foi jamais publicada. E era fácil de ver porquê. Nenhuma contava propriamente uma história com os fatos necessários a uma história. Eu lia as que eles publicavam, e todas relatavam um acontecimento. Mas se eles eram teimosos, eu também. Mas desde então eu havia mudado tanto, quem sabe eu agora já estava pronta para o verdadeiro "era uma vez". Perguntei-me em seguida: e por que não começo? agora mesmo? Seria simples, senti eu.

E comecei. Ao ter escrito a primeira frase, vi imediatamente que ainda me era impossível. Eu havia escrito: "Era uma vez um pássaro, meu Deus".

Clarice Lispector

Para não esquecer, - 5ª ed. - Siciliano - São Paulo, 1992




segunda-feira, 5 de dezembro de 2022

Natália Correia - Cântico do País Emerso



Não sou daqui. Mamei em peitos oceânicos
Minha mãe era ninfa, meu pai chuva de lava
Mestiça de onda e de enxofres vulcânicos,
sou de mim mesma, pomba húmida e brava

De mim mesma e de vós, ó Capitães trigueiros,
barbeados pelo sol, penteados pela bruma!
Que extraístes do ar dessa coisa nenhuma
a genesis, a pluma do meu país natal.

Não sou daqui, das praias da tristeza,
do insone jardim dos glaciares
Levai minha nudez, minha beleza,
e colocai-a à sombra dos palmares.

Não sou daqui. A minha pátria não é esta
bússola quebrada dos impulsos.
Sou rápida, sou solta, talvez nuvem.
Nuvens, minhas irmãs, que me argolais os pulsos!
Tomai os meus cabelos. Levai-os para a floresta.

Natália Correia

Cântico do País Emerso (1961)




quinta-feira, 1 de dezembro de 2022

Luiza Neto Jorge - O poema ensina a cair




O POEMA ENSINA A CAIR

O poema ensina a cair
sobre os vários solos
desde perder o chão repentino sob os pés
como se perde os sentidos numa
queda de amor, ao encontro
do cabo onde a terra abate e
a fecunda ausência excede

até à queda vinda
da lenta volúpia de cair,
quando a face atinge o solo
numa curva delgada e subtil
uma vénia a ninguém de especial
ou especialmente a nós numa homenagem
póstuma.

Luiza Neto Jorge

O Seu a Seu Tempo (1966)



(Ilustração de Fernando de Castro Lopes)


segunda-feira, 28 de novembro de 2022

Cláudio Manuel da Costa - Soneto V

Igreja em Ouro Preto, de Rodrigo Augusto Soares

 
SONETO V

Se sou pobre pastor, se não governo
Reinos, nações, províncias, mundo, e gentes;
Se em frio, calma, e chuvas inclementes
Passo o verão, outono, estio, inverno;

Nem por isso trocara o abrigo terno
Desta choça, em que vivo, coas enchentes
Dessa grande fortuna: assaz presentes
Tenho as paixões desse tormento eterno.

Adorar as traições, amar o engano,
Ouvir dos lastimosos o gemido,
Passar aflito o dia, o mês, e o ano;

Seja embora prazer; que a meu ouvido
Soa melhor a voz do desengano,
Que da torpe lisonja o infame ruído.

Cláudio Manuel da Costa

(1729 - 1789) 

Cláudio Manuel da Costa nasceu em Minas Gerais, na circunvizinhança da cidade de Mariana, em junho de 1729. Teve seus primeiros estudos com os jesuítas, logo depois, estudou humanidades no Rio de Janeiro e Direito na Universidade de Coimbra. Por volta de 1749, teve contato com as idéias iluministas e também com o arcadismo. Quando retornou ao Brasil, participou da Inconfidência Mineira ao lado de Tiradentes. O autor tinha um pseudônimo árcade: Glauceste Satúrnio, o qual era um pastor que se inspirava em sua musa Nise. Contudo, suas poesias ainda apresentavam indícios do Quinhentismo e do Barroco..

Continua em Brasil Escola



segunda-feira, 21 de novembro de 2022

Pepetela - Mandioca de Feitiço



MANDIOCA DE FEITIÇO

                                                                                                   Para Miguel Torga


FAUSTINO E FIRMO, personagens saídos dos «Contos da Montanha», foram por artes mágicas parar a Angola, na década de quarenta. Por artes de magia ou da literatura, o que vai dar tudo no mesmo, pois se sabe que a palavra leva consigo muitos feitiços.

Quanto a Firmo, andarilho compulsivo, não seria de admirar, embora o seu terreno de eleição fosse o Brasil, a Argentina e outras vizinhanças da América hispânica. Todos sabiam, sobretudo na sua aldeia de Vilarinho, que ele desconseguia de ficar parado muito tempo e o mundo o atraia como música de sereia. Por uma única vez trocou de lado no Atlântico e foi encalhar em Luanda. Anos depois de se ter deliciado com a terra e as gentes, reconheceu o patrício Faustino, acabadinho de chegar de Abaças, uma aldeia vizinha nas fragas de Trás-os-Montes. A principio manteve certas reservas, pois sobre Faustino corriam estórias não muito abonatórias de furtos menores praticados nas redondezas das suas aldeias. Já quanto a Faustino, poderia causar alguma estranheza tão comprido percurso para fugir ao destino. Mas nem tanto assim, se pensarmos na miséria em que vivia na montanha, condenado a roubar ninhos de passarinhos, pois pouco mais havia de que suas mãos ávidas e ágeis se pudessem locupletar. A decisão de Faustino veio depois da terrível aventura de, numa noite de tempestade, ter assaltado a desvalida capela da Senhora da Saúde, de onde só retirou uma broncopneumonia que o ia levando desta para melhor. Disse para a mulher quando estava mais recomposto, aqui não fico, é uma vergonha termos uma capela onde nada há para nosso orgulho, apenas uma caixa de esmolas permanentemente vazia e nem um cruci-fixo de prata ou um cálice, nada de jeito, assim também é demais, vou masé roubar para outras freguesias. Um parente afastado mandou-lhe uma providencial carta de chamada e lá embarcou para Luanda na terceira classe do paquete «S. Tomé».

Firmo e Faustino costumavam se encontrar na Pensão Flaviense, para beber um copo e matar saudades da terra. Sobretudo para compararem Vilarinho e Abaças, chegando sempre ao consenso de que se igualavam na miséria e na falta de perspectivas. No entanto, Firmo já morria de saudades e mostrava muita inquietação com a sua permanência parada em Luanda, embora tivesse um bom emprego, do qual ia amealhando uma razoável maquia. Na altura em que Faustino lhe confidenciou que tinha finalmente arranjado trabalho numa roça de café no Uíje, onde certamente ia enriquecer pois o café era o futuro, Firmo revelou que comprara passagem num barco zarpando daí a dias, voltando à terra por tempo incerto mas o suficiente para fazer mais um filho na mulher. Deixava em Luanda os dois mulatitos que entretanto gerara na Rosa, sua lavadeira. Estes dois filhos de Firmo cresceriam nas ruas, um pouco ao abandono, embora tivessem todo o carinho da mãe, que os criou sozinha e sem nunca mais rever o transmontano. Cresceram revoltados contra a sua condição de filhos de pai incógnito, como era de esperar, e foram um dia engrossar o exército que libertaria o pais.

Quanto a Faustino, a estória foi outra.

Partiu para o Uíje, terra de montanhas também, mas sendo as urzes substituídas por densas florestas, onde, na sombra das grandes árvores, crescia o arbusto do café, riqueza para uns poucos colonos, maldição escrava para muitos. Começou como capataz na roça, mas em breve ficou uma espécie de gerente, pois o anterior foi evacuado para Luanda por causa de um paludismo fulminante e o patrão não tinha mais ninguém em quem confiar. Confiar no Faustino? O problema foi mesmo esse. O homem não podia ver dinheiro à sua frente. Aprendeu rapidamente o que tinha a fazer e era suficientemente activo para contentar o patrão, também ele um pouco desleixado, mais preocupado emir jogar às cartas na cidade do que em permanecer na roça para controlar as coisas. E o Faustino acabou por ter acesso ao dinheiro das compras de comida para os trabalhadores ou para material urgente. E foi desviando umas migalhas. Temos de compreender, era demais para quem tinha sempre convivido com a fome mais absoluta e sem saber o que lhe iria acontecer no dia seguinte. Foi escondendo aqueles trocados na mala de folha que tinha trazido da Metrópole, era o seu seguro de vida, a sua pensão reforma.

Faustino ainda não tinha aprendido com os outros colonos que em Portugal se habituavam a só ter gente acima deles e, de repente, caídos em África, descobriam ter muita gente abaixo deles afinal. E exerciam até à exaustão sobre esses deserdados da vida o pequenino poder com que de repente se maravilhavam. Faustino só tivera tempo de aprender as tarefas exigidas no serviço e a guardar de lado alguma pequena fortuna para o que desse e viesse. Por isso ainda tratava os trabalhadores da roça como seres humanos. E arranjou uma relação mais chegada, senão amizade, com o ajudante do cozinheiro da casa grande, um jovem esperto que se chamava Ndozi.

Estava a sua vida correndo pelo melhor, apesar do calor a que não estava habituado e dos mosquitos que lhe furavam a pele. Mas num repente lhe desabou o mundo em cima da cabeça. Falta de habilidade nas contas, demasiada confiança, não sabemos ao certo qual o erro, mas o facto é que o patrão foi alertado pelo Costa, seu ajudante na contabilidade e secretaria, da provável existência de algum desvio nos dinheiros destinados à comida dos trabalhadores. Investigaram os dois, no segredo que deve envolver essas coisas, até chegarem ao Faustino. E daí até à mala de folha, onde estava uma quantia que ultrapassava os salários entretanto recebidos pelo capataz-quase-gerente. Patrão e Costa a revistarem a mala e o Ndozi a avisar o Faustino, é melhor fugir, ouvi tudo, o patrão vai chamar a polícia da cidade.

Faustino nem teve muito tempo para pensar, ainda por cima com Ndozi a pressionar, é melhor fugir, é melhor fugir. De facto, nunca se tinha confrontado com a polícia. Os peque-nos delitos em Portugal foram resolvidos entre as suas mãos e a sua consciência, com a excepção da tentativa na capela da Senhora da Saúde, que dessa vez se resolveu entre o seu corpo e os poderes da santa, que lhe pregaram aquela valente broncopneumonia para não mais esquecer. Mas tinha sempre ficado longe da polícia. Por isso o terror de Ndozi, que esse apesar da juventude sabia bem como era brutal a polícia colonial, encontrou terreno fértil no seu temor. E também devemos referir que Faustino tinha uma ponta de vergonha em relação ao patrão, que nele confiara. Mas fugir para onde? Para o mato, claro, onde havia de ser, lhe explicou Ndozi, todo nervoso, como se de liberdade própria se tratasse. Faustino se viu naquele mato do Uíje, florestas atrás de florestas, refúgio de todas as cobras, desde a terrível surucucu à pequena mas fulminante buta, cuja picada matava num minuto. Os trabalhadores do café já lhe tinham mostrado cotos decepados, pois quando na colheita a buta, escondida entre as folhas e parecendo um raminho seco vulgar, mordia a mão que procurava os bagos da fortuna, o homem só tinha tempo de cortar o braço com a catana mais próxima, antes que o veneno começasse a circular no sangue e paralisasse o coração. Hesitava no seu medo e Ndozi teve de o empurrar para o mato, o esconder numa casota abandonada ainda dentro dos limites da roça, fique aqui por um tempo, que eu vou à casa grande falar com o patrão, arranjar uma desculpa para ficar uns dias fora, depois levo-o para algum lado. Faustino nem teve acesso ao seu quarto, ficou assim sem o dinheiro, a mala e toda a roupa. Horas depois veio Ndozi explicar que o patrão lhe tinha concedido três dias para visitar os parentes. Para isso lhe contou que acabava de receber a notícia da morte de um tio e tinha de ir assistir ao óbito. Relatou ainda Ndozi que a polícia tinha chegado à roça para constatar o roubo mas sobretudo o desaparecimento do Faustino, prova mais do que suficiente da sua culpabilidade. Teria pois de ir para outra província, que certa¬mente as buscas se limitariam à cidade, não chegariam ao Kuanza-Norte ou ao Zaire, províncias vizinhas. Leva-me então até lá, não importa qual, olha, a que ficar mais perto de Luanda, a qual era o Kuanza-Norte mas Ndozi não o levaria até lá, apenas até uma estrada onde ele pudesse apanhar uma boleia de algum camião.

Assim combinados, meteram pelo mato e se afastaram da roça, evitando os caminhos e sobretudo as picadas. Levavam apenas uma cabaça cheia de água, que o rapaz trouxera da roça. Segundo este, bastaria dormirem uma noite na caminhada, pois no dia seguinte já Faustino poderia apanhar alguma boleia, quem ia negar levar um branco em estado de necessidade? E como mandava a tradição, até teria direito a ir na cabina, que a carroçaria e a poeira eram destinadas aos negros. Ndozi voltaria logo para a roça, que não lhe convinha ter três dias descontados no ordenado, se o pudesse evitar.

À tarde a fome apertava, porém. Tinham saído cedo da roça, só com algum café tomado. E Faustino não parava de se lamentar, agora que comia três refeições por dia, uma delas sempre de carne, do que nos seus tempos de Portugal nem o cheiro lhe chegava, é que tinha tido o azar de ser apanhado com a massa na mala. Gomo podia o desgraçado do Costa ter descoberto tudo, eram quantias insignificantes de cada vez, mas todos os dias, ou quase todos, é certo, esse Gosta era um coca-bichinhos, umas míseras diferenças lhe chamaram a atenção, estupor. E antes que fosse ele o acusado, tratou de o acusar, só podia ser isso. O Ndozi tinha razão, o patrão ia deixar o caso por ali, nem se ia queixar para Luanda, e ele podia ir viver para outra terra. O problema seria arranjar um emprego tão bom e num sitio tão bonito como é uma montanha de café, com os nevoeiros matinais que são afastados pelo Sol nascente, espalhando luz pelos verdes de todas as cores.

Andaram pelo mato até ao fim da tarde e nessa altura meteram por um caminho que os conduziu a umas lavras de mandioca. Havia aldeia por perto. Ndozi não queria arriscar, pois o branco ia embora, mas ele ficava. Podia acontecer por um azar que algum dos habitantes da aldeia mais tarde soubesse do desaparecimento do Faustino e ligasse os factos. Se fosse contar ao patrão que Ndozi servira de guia, ainda acabava por ser acusado de cúmplice, quando só fazia isto por pena de alguém que sempre o tratara bem, caso raro com os brancos. Tinha pois de evitar ser visto com Faustino. E só havia uma alternativa, dormir com fome.

Mas o outro reconheceu as lavras de mandioca e a barriga roncou mais alto. — Essa mandioca é da que se come?

De facto era a qualidade que não tem veneno e por isso não precisa de ficar em água durante uns dias. Podia ser imediata¬mente consumida e assim Ndozi explicou. Mas logo a seguir apontou para os fiapos de pano vermelho que estavam amarrados nalgumas hastes.

— Tem feitiço. Quem come morre.

E afastou Faustino da lavra, avançando de novo para o mato. Parou pouco depois para descansar.
— É melhor dormirmos aqui. De manhã lhe levo até à estrada, já não fica longe.

E sentou no chão, encostado a um tronco de árvore, descansando. Faustino, apesar de muito fatigado, permaneceu de pé, olhando para o caminho que tinham abandonado. Não conseguia despegar a vista dos troncos finos mas convidativos das mandioqueiras jovens. E a barriga roncava, roncava, mal habituada já àquelas fomes que noutros tempos eram a normalidade. Num repente pegou no facão que levava à cintura e investiu contra a lavra.

— Não faz isso, só Faustino, não faz isso.

Inútil gritar, inútil correr atrás dele, inútil demovê-lo. O português foi mesmo ao primeiro pé de mandioca, com o facão removeu o chão e desenterrou um tubérculo grosso como um braço. Desenterrou outro e voltou para onde estava Ndozi.

— Tens a certeza que esta mandioca não tem veneno?
— Não tem. Mas tem feitiço. E pior.
— Deixa-te disso.
— Esses panos vermelhos que se amarram em cima é para avisar. Essa lavra foi enfeitiçada. Só os donos podem tirar.
— Essas crenças são pagãs, nem devias dizer isso. É pecado.
Ndozi recusou o tubérculo que Faustino lhe estendeu. Este começou a descascar o seu, sentado agora junto de outra árvore.
— Não és católico, ó Ndozi? Não costumas ir à missa?
— Às vezes.
— Então como acreditas nestes feitiços? Disparate.
E meteu à boca um pedaço cortado da mandioca. Doce, suculento, uma delícia para a sua fome.
— Hum, maravilha.

Derrotou o tubérculo inteiro e descascou o outro. Ndozi só olhava, enquanto escurecia à volta deles. Para se entreter, o angolano juntou paus secos que havia à profusão ali perto e fez uma fogueira. Não estava frio, mas era mais aconchegante. E afastava os bichos. Faustino entretanto tinha comido a outra mandioca e bebido água da que Ndozi trouxera da casa grande. A fome tinha passado, se deitou perto da fogueira o mais comodamente que pôde.

A meio da noite, Ndozi foi acordado pelos gemidos do companheiro. Porra, porra, que dores. Faustino se agarrava à barriga, porra, que dores. Tinha vómitos, mas só ar saia. Bem que se torcia, e vomitava, nem saia nada, nem a dor passava.

— Faz alguma coisa, porra, pá.
— Fazer o quê? — disse Ndozi. — Não há nada a fazer. É o feitiço.
— Só a Senhora da Saúde me pode valer, ela é muito mais forte que qualquer feitiço — ainda disse Faustino no meio dos gemi¬dos. — Ai valei-me, Senhora da Saúde.

Não lhe valeu. Ndozi ficou ao lado dele, assistindo impotente e pesaroso à agonia. De manhã, usou o facão de Faustino para cavar uma sepultura no meio do mato. E lá ficou para sempre o ladrão de Abaças. No mais completo segredo.

Fevereiro de 2001

Pepetela


(in «Para Miguel Torga», Câmara Municipal de Sintra, 2001)


(Fonte: Blogue Contos de aula)


domingo, 13 de novembro de 2022

Manoel de Barros - O menino que ganhou um rio


 

O MENINO QUE GANHOU UM RIO

Minha mãe me deu um rio.
Era dia de meu aniversário e ela não sabia o que me presentear.
Fazia tempo que os mascates não passavam naquele lugar esquecido.
Se o mascate passasse a minha mãe compraria rapadura
Ou bolachinhas para me dar.
Mas como não passara o mascate, minha mãe me deu um rio.
Era o mesmo rio que passava atrás de casa.
Eu estimei o presente mais do que fosse uma rapadura do mascate.
Meu irmão ficou magoado porque ele gostava do rio igual aos outros.
A mãe prometeu que no aniversário do meu irmão
Ela iria dar uma árvore para ele.
Uma que fosse coberta de pássaros.
Eu bem ouvi a promessa que a mãe fizera ao meu irmão
E achei legal.
Os pássaros ficavam durante o dia nas margens do meu rio
E de noite eles iriam dormir na árvore do meu irmão.
Meu irmão me provocava assim: a minha árvore deu flores lindas em setembro.
E o seu rio não dá flores!
Eu respondia que a árvore dele não dava piraputanga.
Era verdade, mas o que nos unia demais eram os banhos nus no rio entre pássaros.
Nesse ponto nossa vida era um afago!

Manoel de Barros



https://m.youtube.com/watch?v=GTVGan927Z8


segunda-feira, 7 de novembro de 2022

Reinaldo Ferreira - Receita para fazer um herói




RECEITA PARA FAZER UM HERÓI

Tome-se um homem,
Feito de nada, como nós,
E em tamanho natural.
Embeba-se-lhe a carne,
Lentamente,
Duma certeza aguda, irracional,
Intensa como o ódio ou como a fome.
Depois, perto do fim,
Agite-se um pendão
E toque-se um clarim.

Serve-se morto.

Reinaldo Ferreira




(Fotografia de Léo Eloy)


terça-feira, 1 de novembro de 2022

Manuel António Pina - Os meus mortos

 



OS MEUS MORTOS

   Durante grande parte da nossa vida, a morte é uma coisa alheia e distante que só vaga e incertamente nos diz respeito. Até que, um dia, damos subitamente com ela à porta da nossa própria casa e descobrimos então que sempre ali esteve.
   Quando somos jovens e morrem os avós, ou os pais, ou os amigos dos pais, não é ainda a morte. Mesmo se um amigo morre, morre por acidente, morre por acaso, morre antes do tempo de morrer. A morte apenas começa a ter um rosto, o nosso rosto, quando, à volta, os amigos morrem tão-só de morrer e os motivos por que morrem são uma explicação, não uma razão. A mãe de minha mulher costumava dizer: «Os meus mortos...», e eu não compreendia. Hoje, porém, também eu tenho mortos. Quando o Chico morreu escrevi um poema a que pus o título de «O mundo sem o Chico», porque, descobri, a sua morte tinha levado o mundo consigo e o que me restava era um outro mundo, desconhecido e desabrigado, onde penosamente aprendia a viver outra vida, a minha vida. Depois disso, muitos mais mundos se foram desfazendo diante de mim e, de cada vez, fiquei mais só do lado de cá de qualquer coisa.
   Antes de morrer com 16 facadas, numa longínqua auto-estrada da Turquia, Sérgio escreveu-me uma última vez. Uma carta trivial, dizendo coisas triviais sobre coisas triviais, como se não tivesse ainda morrido. A notícia da sua morte chegara, no entanto, primeiro do que a carta. Que podia eu fazer com ela, com a carta, com tanto peso, com tanta desmesura? Também Fernando me escreveu antes de se enforcar. Mandou-me um cheque. Emprestara-lhe em tempos dinheiro e ele esquecera-se de que já mo havia pago e pagava-mo de novo. Que podia eu fazer com um dinheiro tão insustentável como aquele?
   E com os seus nomes, que poderei fazer agora com os seus nomes? E que outro nome terão agora o Fernando, o Sérgio, o Chico, o Assis, o Arnaldo, a Marcela, o Luís, o Manuel Hermínio e os outros? Abro a minha agenda telefónica e estão ainda todos paradamente lá, os nomes que um dia tiveram. Que poderei fazer com eles? Riscá-los? Apagá-los? São agora aparentemente inúteis, esses nomes e esses números. E, contudo, ali permanecem, alguns há vários anos. Porque se trata, cada um, de uma questão comigo mesmo, uma questão insolúvel, ainda não encerrada. Todos os anos copio outra vez os seus nomes. Porque ainda não me conformei. Há de facto na morte algo de injusto e de inaceitável, e as nossas lágrimas são, acho eu, tanto de revolta quanto de dor. Assisti outro dia ao enterro do Manuel Hermínio. Meteram-no num buraco fundo e imenso e, enquanto o Sol declinava lentamente atrás dos pinheiros, três homens despejaram sobre ele terra húmida e pedras. Como poderia conformar-me?
   Os meus mortos levaram consigo, de mim, palavras, memórias, dias, lugares, desígnios, incertezas; os seus olhos guardam para sempre o meu rosto, os seus ouvidos a minha voz. Também eu morri com eles, e também eu, o que fiquei, me perdi fora de mim. Onde quer que eles estejam agora, quem quer que sejam, estou, pois, junto deles. E pertencem-me, tanto quanto provavelmente eu lhes pertenço.


Manuel António Pina

Visão, 14/06/2001


(Fotografia de Moitas Moitas, Arronches, a paz do cemitério num fim de tarde de Verão)




Mario Quintana - Este quarto




ESTE QUARTO

Este quarto de enfermo, tão deserto
de tudo, pois nem livros eu já leio
e a própria vida eu a deixei no meio
como um romance que ficasse aberto…

Que me importa este quarto, em que desperto
como se despertasse em quarto alheio?
Eu olho é o céu! Imensamente perto,
o céu que me descansa como um seio.

Pois só o céu é que está perto, sim,
tão perto e tão amigo que parece
um grande olhar azul pousado em mim.

A morte deveria ser assim:
um céu que pouco a pouco anoitecesse
e a gente nem soubesse que era o fim…

Mario Quintana




(Fotografia de Sotiris Lamprou, 2022)



segunda-feira, 31 de outubro de 2022

Carlos Drummond de Andrade - Ainda que mal



AINDA QUE MAL

Ainda que mal pergunte,
ainda que mal respondas;
ainda que mal te entendas,
ainda que mal repitas;
ainda que mal insista,
ainda que mal desculpes;
ainda que mal me exprima,
ainda que mal me julgues;
ainda que mal me mostre,
ainda que mal me vejas;
ainda que mal te encare,
ainda que mal te furtes;
ainda que mal te siga,
ainda que mal te voltes;
ainda que mal te ame,
ainda que mal o saibas;
ainda que mal te agarre,
ainda que mal te mates;
ainda, assim, pergunto:
me amas?

E me queimando em teu seio,
me salvo e me dano...

... de amor.

Carlos Drummond de Andrade



(Thayná, Rio de Janeiro, Flamengo 2011. Copyright Martin Lazarev)


Carlos Drummond de Andrade - Confidência do Itabirano

Itabira, Minas Gerais

 

CONFIDÊNCIA DO ITABIRANO 

Alguns anos vivi em Itabira.
Principalmente nasci em Itabira.
Por isso sou triste, orgulhoso: de ferro.
Noventa por cento de ferro nas calçadas.
Oitenta por cento de ferro nas almas.
E esse alheamento do que na vida é porosidade e comunicação.

A vontade de amar, que me paralisa o trabalho,
vem de Itabira, de suas noites brancas, sem mulheres e sem horizontes.
E o hábito de sofrer, que tanto me diverte,
é doce herança itabirana.

De Itabira trouxe prendas diversas que ora te ofereço:
esta pedra de ferro, futuro aço do Brasil,
este São Benedito do velho santeiro Alfredo Duval;
este couro de anta, estendido no sofá da sala de visitas;
este orgulho, esta cabeça baixa…

Tive ouro, tive gado, tive fazendas.
Hoje sou funcionário público.
Itabira é apenas uma fotografia na parede.
Mas como dói!

Carlos Drummond de Andrade


Sentimento do Mundo (1940)



segunda-feira, 24 de outubro de 2022

Alexandre O'Neill - Letra a letra




LETRA A LETRA

Há palavras que nos beijam
Como se tivessem boca.
Palavras de amor, de esperança, 
De imenso amor, de esperança louca.

Palavras nuas que beijas
Quando a noite perde o rosto;
Palavras que se recusam
Aos muros do teu desgosto.

De repente coloridas
Entre palavras sem cor,
Esperadas inesperadas
Como a poesia ou o amor.

(O nome de quem se ama
Letra a letra revelado
No mármore distraído
No papel abandonado)

Palavras que nos transportam
Aonde a noite é mais forte,
Ao silêncio dos amantes
Abraçados contra a morte.

Alexandre O'Neill



(Fotografia de Giovanni Picuti, Sussurrariam-me teus segredos)


segunda-feira, 17 de outubro de 2022

Eugénio de Andrade - “A chuva cai na poeira...”

 


A chuva cai na poeira como no poema
de Li Bai. No sul
os dias têm olhos grandes
e redondos; no sul o trigo ondula,

as suas crinas dançam no vento,
são a bandeira
desfraldada da minha embarcação;

no sul a terra cheira a linho branco,
a pão na mesa,
o fulvo ardor da luz invade a água,
caindo na poeira, leve, acesa,

Como no poema.

Eugénio de Andrade



(Fotografia de Rosa Gambóias)


segunda-feira, 10 de outubro de 2022

João Cabral de Melo Neto - "Catar feijão se limita com escrever..."

 


1.

Catar feijão se limita com escrever:
Jogam-se os grãos na água do alguidar
E as palavras na folha de papel;
e depois, joga-se fora o que boiar.
Certo, toda palavra boiará no papel,
água congelada, por chumbo seu verbo;
pois catar esse feijão, soprar nele,
e jogar fora o leve e oco, palha e eco.


2.

Ora, nesse catar feijão entra um risco,
o de que, entre os grãos pesados, entre
um grão imastigável, de quebrar dente.
Certo não, quando ao catar palavras:
a pedra dá à frase seu grão mais vivo:
obstrui a leitura fluviante, flutual,
açula a atenção, isca-a com risco.

1965


João Cabral de Melo Neto


"O belíssimo Catar feijão pertence ao livro A educação pela pedra, que foi publicado em 1965. O poema, dividido em duas partes, tem como tema central o ato criador, o processo de composição por trás da escrita.

Ao longo dos versos, o poeta desvenda para o leitor como é a sua maneira pessoal de construir um poema, desde a escolha das palavras até a combinação do texto para construir os versos.

Pela delicadeza do poema percebemos que o ofício do poeta tem também qualquer coisa do trabalho do artesão. Ambos exercitam o ofício com zelo e paciência, em busca da melhor combinação para a criação de uma peça única e bela."


Fonte: Cultura genial



(Fotografia de Roberto Guerra, Feijão guandu)


segunda-feira, 3 de outubro de 2022

Inês Lourenço - Porta de armas

 



PORTA DE ARMAS

Os teus dentes emboscados atrás
dos lábios entreabertos no indício
do sorriso, esse pré-aviso de facas,
anunciam a tua humana condição capaz
de morder e mastigar. A explicação
do mundo recomeça aí, nessa
porta de armas.

Inês Lourenço 




(Fotografia de Kimberley Tell)


segunda-feira, 26 de setembro de 2022

Ana Hatherly - Um português adoçado

 


UM PORTUGUÊS ADOÇADO

A língua que se fala
No Brasil
É um português adoçado:

A sua dureza
Trabalhada
No engenho dos séculos
Deu essa doçura
Essa macieza pura.

A língua é o tigre
O falante o domador
Os séculos o percurso
O caminho a eterna descoberta.

Como num largo oceano
Há sempre novas vagas.

Ana Hatherly

(Porto, 1929 - Lisboa, 2015)


Itinerários (2003) 



(Fotografia de Maxwell Mariano: São Luís, Maranhão, Brasil, 2017)


segunda-feira, 19 de setembro de 2022

Sá de Miranda - "O sol é grande, caem co´a calma as aves..."




O sol é grande, caem co´a calma as aves
Do tempo em tal sazão que soe ser fria.
Esta água que d´alto cai acordar-me-ia
Do sono não, mas de cuidados graves.

Ó cousas todas vão, todas mudaves!
Qual é tal coração qu´em vós confia?
Passam os tempos, vai dia trás dia,
Incertos muito mais que ao vento as naves.

Eu vira já aqui sombras, vira flores,
Vi tantas águas, vi tanta verdura,
As aves todas cantavam d´amores.

Tudo é seco e mudo, e de mestura,
Também mudando-m´eu fiz d´outras cores,
E tudo o mais renova: isto é sem cura.

Sá de Miranda





segunda-feira, 12 de setembro de 2022

Paulo Leminski - Sossegue coração




SOSSEGUE CORAÇÃO

sossegue coração
ainda não é agora
a confusão prossegue
sonhos afora

calma calma
logo mais a gente goza
perto do osso
a carne é mais gostosa

Paulo Leminski


segunda-feira, 5 de setembro de 2022

Paulina Chiziane




Celebro o amor e a vida. Danço sobre a vida e a morte. Danço sobre a tristeza e a solidão. Piso para o fundo da terra todos os males que me torturaram. A dança liberta a mente das preocupações do momento. A dança é uma prece. Na dança celebro a vida enquanto aguardo a morte. Dançar. Dançar a derrota do meu adversário. Dançar na festa do meu aniversário. Dançar sobre a coragem do inimigo. Dançar no funeral do ente querido. Dançar à volta da fogueira na véspera do grande combate. Dançar é orar. Eu também quero dançar. A vida é uma grande dança.

Paulina Chiziane






(Fotografia de Luca Gargano, Moçambique, 2008)


quinta-feira, 1 de setembro de 2022

Miguel Torga - Alvorada




ALVORADA

Foi tudo simples:aconteceu.
O dia amanhceu,
Acordei.
E reparei no milagre concreto de viver.
E cantei
Como um galo feliz.
O que esse canto diz
É que não sei.

Miguel Torga, Diário XII




(Alvorada, fotografia de João Caetano Dias)


segunda-feira, 22 de agosto de 2022

Manuel de Freitas - Becherovka

 



BECHEROVKA

Norueguesa, alta, de um moreno
duvidoso que sorria muito.
Pedia-me insistentemente para não estar
triste como deveras estava.
E pagou-me, creio, o último copo,
antes de me perguntar “o que fazia”.

Escrever, sobre a morte, não é
exactamente uma profissão.
Mas foi a resposta que lhe dei,
enquanto um guardanapo qualquer
abreviava, só para ela, a minha “obra”.

Nunca saberei se percebeu a letra,
se comprou os livros, se chegou
a ouvir o que em péssimo francês
lhe tentei dizer nessa noite, a mais perdida.

Os versos são quase sempre isto: um modo
inaceitável de dizer que não tocámos o corpo
que esteve, por uma vez, tão próximo
de nós – e que nem um nome breve nos deixou

Manuel de Freitas


A Flor dos Terramotos (2005)




(Karlovy Vary - Karlsbad: Becherovka, fotografia de Helgoland01)


domingo, 31 de julho de 2022

Miguel Torga - “Tens agora outro rosto, outra beleza...”

 


Tens agora outro rosto, outra beleza:
Um rosto que é preciso imaginar,
E uma beleza mais furtiva ainda...
Assim te modelaram caprichosas,
Mãos irreais que tornam irreal
O barro que nos foge da retina.
Barro que em ti passou de luz carnal
A bruma feminina...

Mas nesse novo encanto
Te conjuro
Que permaneças.
Distante e preservada na distância.
Olímpica recusa, disfarçada
De terrena promessa
Feita aos olhos tentados e descrentes.
Nenhum mito regressa....
Todas as deusas são mulheres ausentes…

Miguel Torga




(Fotografia de Miguel & Strogoff)


sábado, 30 de julho de 2022

José Tolentino Mendonça - Da verdade do amor



DA VERDADE DO AMOR

Da verdade do amor se meditam
relatos de viagens confissões
e sempre excede a vida
esse segredo que tanto desdém
guarda de ser dito

pouco importa em quantas derrotas
te lançou
as dores os naufrágios escondidos
com eles aprendeste a navegação
dos oceanos gelados

não se deve explicar demasiado cedo
atrás das coisas
o seu brilho cresce
sem rumor

José Tolentino Mendonça




Baldios, 1999



(Giorgio Morandi (1890-1964) - Autoritratto, 1917-1919)


sexta-feira, 29 de julho de 2022

João Miguel Fernandes Jorge - Vivi nesta casa muitos anos




Vivi nesta casa muitos anos

Agora mudaram já de certo a fechadura
e as pequenas coisas que fazem uma casa.
As chaves já não as trago
ao lado dos meus gestos.
Mudaram os móveis
deitaram fora as cortinas
e as paredes
trazem agora um calendário novo.
Uma casa é sempre
caliça cheiros alianças.
Eu avanço sobre o silêncio de
ainda esperar por ti.

João Miguel Fernandes Jorge



(Fotografia de André Pipa, Azulejos, Lisboa)


quinta-feira, 28 de julho de 2022

Manuel Bandeira - Último poema

 

Fotografia de Aurelio Candido 


ÚLTIMO POEMA

Assim eu quereria o meu último poema.
Que fosse terno dizendo as coisas mais simples e menos intencionais
Que fosse ardente como um soluço sem lágrimas
Que tivesse a beleza das flores quase sem perfume
A pureza da chama em que se consomem os diamantes mais límpidos
A paixão dos suicidas que se matam sem explicação.

Manuel Bandeira




Jorge de Sena - "Conheço o sal da tua pele seca..."

 


 

Conheço o sal da tua pele seca
depois que o estio se volveu inverno
da carne repousada em suor nocturno.

Conheço o sal do leite que bebemos
quando das bocas se estreitavam lábios
e o coração no sexo palpitava.

Conheço o sal dos teus cabelos negros
ou louros ou cinzentos que se enrolam
neste dormir de brilhos azulados.

Conheço o sal que resta em minhas mãos
como nas praias o perfume fica
quando a maré desceu e se retrai.

Conheço o sal da tua boca, o sal
da tua língua, o sal de teus mamilos,
e o da cintura se encurvando de ancas.

A todo o sal conheço que é só teu,
ou é de mim em ti, ou é de ti em mim,
um cristalino pó de amantes enlaçados.
 

                                          Madrid, 16 de março de 1973

Jorge de Sena



(Fotografia de Marcos Souza)


terça-feira, 26 de julho de 2022

Jorge Sousa Braga - Dióspiros

 



DIÓSPIROS

Há frutos que é preciso
acariciar
com os dedos com
a língua

e só depois
muito depois

se deixam morder

Jorge Sousa Braga



(Fotografia de Griffin & Sabine)


quinta-feira, 21 de julho de 2022

João José Cochofel - Sol

 

SOL

É o sol que flameja
ou o teu cabelo
que incendeia o ar?

É a tua boca
que segura nos dentes
o sabor do dia?

É a tua pele
que vem redourar
a fome da vida?

João José Cochofel



Lido em Rua das Pretas

(Fotografía de Marina Alfaya - beleza de creuza, 2009)


segunda-feira, 18 de julho de 2022

Gonçalves Crespo - Odor di femina

 

ODOR DI FEMINA

Era austero e sisudo; não havia
Frade mais exemplar nesse convento;
No seu cavado rosto macilento
Um poema de lágrimas se lia.

Uma vez que na extensa livraria
Folheava o triste um livro pardacento,
Viram-no desmaiar, cair do assento,
Convulso e torvo sobre a lagea fria.

De que morrera o venerando frade?
Em vão busco as origens da verdade,
Ninguém ma disse, explique-a quem puder.

Conste que um bibliófilo comprara
O livro estranho, e que ao abri-lo achara
Uns dourados cabelos de mulher…

Gonçalves Crespo


António Cândido Gonçalves Crespo (Rio de Janeiro, 1846 — Lisboa, 1883) foi um jurista e poeta português de influência parnasiana, membro das tertúlias intelectuais portuguesas do último quartel do século XIX. Nascido nos arredores da cidade do Rio de Janeiro, filho de mãe escrava, fixou-se em Lisboa aos 14 anos de idade e estudou Direito na Universidade de Coimbra. Dedicou-se essencialmente à poesia e ao jornalismo.

(Wikipédia)


sexta-feira, 15 de julho de 2022

Fernando Pessoa - “Como inútil taça cheia…”

 

Como inútil taça cheia
Que ninguém ergue da mesa
Transborda de dor alheia
Meu coração sem tristeza

Sonhos de mágoa figura
Só para ter que sentir
E assim não tem a amargura
Que se temeu a fingir

Ficção num palco sem tábuas
Vestida de papel seda
Mima uma dança de mágoas
Para que nada suceda.

Fernando Pessoa

19-08-1930



Poesía: 1918-1930, edição Manuela Parreira da Silva, Ana Maria Freitas, Madalena Dine, Lisboa, Assírio & Alvim, 2005



segunda-feira, 11 de julho de 2022

Bénédicte Houart - "já penélope não sou..."


 

já penélope não sou
nem ulisses regressa
mudo de nome noite
a noite ao sabor da saliva
dos meus amantes
de dia troco lençóis
coso bainhas
descanso os olhos
dantes tecia para
enganar a corte que
me servia de prisão
agora chamo-me eu
não tenho estado civil e
na cela que me tem cativa
tornei-me finalmente livre

Bénédicte Houart




(Anthony Frederick Augustus Sandys (1829-1904) - Penelope, 1878)


segunda-feira, 4 de julho de 2022

Daniel Filipe - Romance de Tomasinho Cara-Feia


ROMANCE DE TOMASINHO CARA-FEIA

Farto de sol e de areia
Que é o mais que a terra dá,
Tomasinho Cara-Feia
vai prá pesca da baleia.
Quem sabe se tornará?

Torne ou não torne, que tem?
Vai cumprir o seu destinho.
Só nha Fortunata, a mãe,
Que é velha e não tem ninguém,
Chora pelo seu menino.

Torne ou não torne, que importa?
Vai ser igual ao avô.
Não volta a bater-me à porta;
Deixou para sempre a horta,
que a longa seca matou.

Tomasinho Cara-Feia
(outro nome, quem lho dá?),
farto de sol e de areia,
foi prá pesca da baleia.

— E nunca mais voltará!

Daniel Filipe


Lêdo Ivo - A capa


 

A CAPA

No chão da infância vou encontrar
todos os objetos que perdi:
a capa azul, o livro de gravuras,
o retrato do irmão morto
e tua boca fria, tua boca fria.

Minha capa azul, no chão da infância,
cobre os objetos e alucinações.
É uma capa azul, de um azul profundo
que em tempo algum será encontrado.
Azul como este não existe mais.
E a todos vocês que são puros ou relapsos,
virgens no inverno e repulsivos no verão,
faço meu pedido de um azul profundo:
cubram-me com esta capa no dia em que eu morrer.

Quando eu estiver morrendo, podem ter certeza,
uma capa azul, de um azul profundo,
envolverá meu corpo da cabeça aos pés.

Lêdo Ivo

 


sexta-feira, 1 de julho de 2022

Vinicius de Moraes - A Anunciação

Fotografia de Iasmin Santiago



A ANUNCIAÇÃO
 
Virgem! filha minha
De onde vens assim
Tão suja de terra
Cheirando a jasmim
A saia com mancha
De flor carmesim
E os brincos da orelha
Fazendo tlintlin?

Minha mãe querida
Venho do jardim
Onde a olhar o céu
Fui, adormeci.
Quando despertei
Cheirava a jasmim
Que um anjo esfolhava
Por cima de mim...

                   Rio de Janeiro, 1962


Vinicius de Moraes



segunda-feira, 27 de junho de 2022

Ana Hatherly - Auto-retrato

Fotografia de arquivo. Museo Vostell



AUTO-RETRATO

Este que vês, de cores desprovido,
o meu retrato sem primores é
e dos falsos temores já despido
em sua luz oculta põe a fé.

Do oculto sentido dolorido,
este que vês, lúcido espelho é
e do passado o grito reduzido,
o estrago oculto pela mão da fé.

Oculto nele e nele convertido
do tempo ido escusa o cruel trato,
que o tempo em tudo apaga o sentido;

E do meu sonho transformado em acto,
do engano do mundo já despido,
este que vês, é o meu retrato.

Ana Hatherly




segunda-feira, 20 de junho de 2022

Alberto Costa e Silva - Imitação de Botticelli

 

 

IMITAÇÃO DE BOTICELLI

Como a luz numa caixa de laranjas
ou a chuva sobre a mesa de verduras no mercado,
desce a manhã neste jardim, descalça,

e as flores que traz, na involuntária beleza,
parecem, contra seu corpo de verão enfunado,
musgo, limo, ferrugem, as feridas que os pássaros

abrem na casca lisa e perfeita de um fruto.

Alberto Costa e Silva


(Lido em Acontecimentos)



(Paul Himmel - Botticelli Girl, Patricia MacBride on the shores of Fire Island, 1951)




sexta-feira, 17 de junho de 2022

Fernando Echevarria - “Descalça de viver, andava sempre...”


Descalça de viver, andava sempre.
Enchia a rua quando não passava.
Mas, se passava, desfazia o tempo
e apagava a rua, os homens e as lágrimas.

Nem ela própria já vivia dentro
de si. A roupa que levava
tinha uma cor de triste e pensamento
que não se sente e não se vê. E nada

dela se via que não fosse um vento.
Nem um silvo ou perfume a denunciava.
Sabia-se, de certo, que vivia

porque o dia, a certas horas se quedava
pronto, parado, como não sendo dia.
Ela, descalça de viver, passava...
Fernando Echevarria 



segunda-feira, 13 de junho de 2022

Fernando Pessoa / Ricardo Reis - "Cada coisa a seu tempo tem seu tempo..."




Cada coisa a seu tempo tem seu tempo.
Não florescem no Inverno os arvoredos,
Nem pela Primavera
Têm branco frio os campos.

À noite, que entra, não pertence, Lídia,
O mesmo ardor que o dia nos pedia.
Com mais sossego amemos
A nossa incerta vida.

À lareira, cansados não da obra
Mas porque a hora é a hora dos cansaços,
Não puxemos a voz
Acima de um segredo,

E casuais, interrompidas sejam
Nossas palavras de reminiscência
(Não para mais nos serve
A negra ida do sol).

Pouco a pouco o passado recordemos
E as histórias contadas no passado
Agora duas vezes
Histórias, que nos falem

Das flores que na nossa infância ida
Com outra consciência nós colhíamos
E sob uma outra espécie
De olhar lançado ao mundo.

E assim, Lídia, à lareira, como estando,
Deuses lares, ali na eternidade
Como quem compõe roupas
O outrora compúnhamos

Nesse desassossego que o descanso
Nos traz às vidas quando só pensamos
Naquilo que já fomos,
E há só noite lá fora.

30-7-1914

Ricardo Reis / Fernando Pessoa


Fernando Pessoa - O menino da sua mãe




O MENINO DA SUA MÃE

No plaino abandonado
Que a morna brisa aquece,
De balas trespassado
— Duas, de lado a lado —,
Jaz morto e arrefece.

Raia-lhe a farda o sangue.
De braços estendidos,
Alvo, louro, exangue,
Fita com olhar langue
E cego os céus perdidos.

Tão jovem! que jovem era!
(Agora que idade tem?)
Filho único, a mãe lhe dera
Um nome e o mantivera:
«O menino da sua mãe».

Caiu-lhe da algibeira
A cigarreira breve.
Dera-lha a mãe. Está inteira
E boa a cigarreira.
Ele é que já não serve.

De outra algibeira, alada
Ponta a roçar o solo,
A brancura embainhada
De um lenço... Deu-lho a criada
Velha que o trouxe ao colo.

Lá longe, em casa, há a prece:
«Que volte cedo, e bem!»
(Malhas que o império tece!)
Jaz morto, e apodrece,
O menino da sua mãe.


s.d.

Fernando Pessoa 








Fernando Pessoa - “Eu amo tudo o que foi…”



Eu amo tudo o que foi,
Tudo o que já não é,
A dor que já me não dói,
A antiga e errônea fé,
O ontem que a dor deixou,
O que deixou alegria
Só porque foi, e voou
E hoje é já outro dia.

Fernando Pessoa

1931

Poesias Inéditas (1930-1935). Fernando Pessoa. (Nota prévia de Jorge Nemésio.) Lisboa: Ática, 1955 (imp. 1990).



sexta-feira, 10 de junho de 2022

Luís de Camões - "Descalça vai para a fonte..."

 
Fotografia de Professor Bop
 
 
 
Descalça vai para a fonte
Lianor pela verdura;
Vai fermosa, e não segura.

Leva na cabeça o pote,
O testo nas mãos de prata,
Cinta de fina escarlata,
Sainho de chamelote;
Traz a vasquinha de cote,
Mais branca que a neve pura.
Vai fermosa e não segura.

Descobre a touca a garganta,
Cabelos de ouro entrançado
Fita de cor de encarnado,
Tão linda que o mundo espanta.
Chove nela graça tanta,
Que dá graça à fermosura.
Vai fermosa e não segura.

Luís de Camões



quarta-feira, 8 de junho de 2022

A Elisabeth foi-se embora (Adília Lopes)



A ELISABETH FOI-SE EMBORA

                                                                           com algumas coisas de Anne Sexton)


Eu que já fui do pequeno-almoço à loucura
eu que já adoeci a estudar morse
e a beber café com leite
não posso passar sem a Elisabeth
porque é que a despediu senhora doutora?
que mal me fazia a Elisabeth?
eu só gosto que seja a Elisabeth
a lavar-me a cabeça
não suporto que a senhora doutora me toque na cabeça
eu só venho cá senhora doutora
para a Elisabeth me lavar a cabeça
só ela sabe as cores os cheiros a viscosidade
de que eu gosto nos shampoos
só ela sabe como eu gosto da água quase fria
a escorrer-me pela cabeça abaixo
eu não posso passar sem a Elisabeth
não me venha dizer que o tempo cura tudo
contava com ela para o resto da vida
a Elisabeth era a princesa das raposas
precisava das mãos dela na minha cabeça
ah não haver facas que lhe cortem o
pescoço senhora doutora eu não volto
ao seu anti-séptico túnel
já fui bela uma vez agora sou eu
não quero ser barulhenta e sozinha
outra vez no túnel o que fez à Elisabeth?
a Elisabeth foi-se embora
é só o que tem para me dizer senhora doutora
com uma frase dessas na cabeça
eu não quero voltar à minha vida

Adília Lopes 

Mariposa Azual (2000)




segunda-feira, 6 de junho de 2022

Mário Cesariny - De profundis amamus



DE PROFUNDIS AMAMUS

Ontem às onze
fumaste
um cigarro
encontrei-te
sentado
ficámos para perder
todos os teus eléctricos
os meus
estavam perdidos
por natureza própria

Andámos
dez quilómetros
a pé
ninguém nos viu passar
excepto
claro
os porteiros
é da natureza das coisas
ser-se visto
pelos porteiros

Olha
como só tu sabes olhar
a rua os costumes
O Público
o vinco das tuas calças
está cheio de frio
é há quatro mil pessoas interessadas
nisso

Não faz mal abracem-me
os teus olhos
de extremo a extremo azuis
vai ser assim durante muito tempo
decorrerão muitos séculos antes de nós
mas não te importes
não te importes
muito
nós só temos a ver
com o presente
perfeito
corsários de olhos de gato intransponível
maravilhados maravilhosos únicos
nem pretérito nem futuro tem
o estranho verbo nosso

Mário Cesariny




domingo, 5 de junho de 2022

Eugénio de Andrade - A poesia não vai




A poesia não vai à missa,
não obedece ao sino da paróquia,
prefere atiçar os seus cães
às pernas de deus e dos cobradores
de impostos.
Língua de fogo do não,
caminho estreito
e surdo da abdicação, a poesia
é uma espécie de animal
no escuro recusando a mão
que o chama.
Animal solitário, às vezes
irónico, às vezes amável,
quase sempre paciente e sem piedade.
A poesia adora
andar descalça nas areias do Verão.

Eugénio de Andrade


O Sal da Língua (1995)



sexta-feira, 27 de maio de 2022

Ruy Cinatti - Breve Encontro

 



BREVE ENCONTRO

Um amor de mulata atrai o corpo
habituado a lides extrínsecas.
Modela, circunspecto, as pernas, o rosto,
os seios-olhos, as partes oblíquas.
Quer falar
palavras sem medida, infecciosas.
Sorri.
Mede distâncias.
Retrai-se ao ínfimo
que separa ainda duas almas
coetâneas, mas só por momentos,
no bar frente à baía de Sto. António, ilha do Príncipe.

Ruy Cinatti


Lembranças para S. Tomé e Príncipe (1975) 



segunda-feira, 23 de maio de 2022

Ana Salomé - Ode Rimbaud




ODE RIMBAUD

eu sou absolutamente moderna, Rimbaud.
sei que nunca pensaste que uma rapariga de Portugal
se tornasse absolutamente moderna.
o caso é que nunca deitei o amor pela janela
mas a janela deitou-se pelo amor dentro.
não toco piano, não falo francês, nem faço fru-fru.
sou absolutamente moderna, Rimbaud.
tenho telemóvel, tenho blog, tenho carro
e até uma paixão que já não é platónica
agora para se ser absolutamente moderno
diz-se virtual, Rimbaud.
perdoa-me
dou-te a minha perna
um prato com bolinhos de canela
para te lembrares do tempo dela.
perdoa-me o sarcasmo, Rimbaud
o fatalismo azedo de rapariga absolutamente moderna
constructo humano, já não ser.
perdoa as minhas pernas a engordar de noite para noite
o fumo da chaminé comum do prédio
a minha imensa falta de árvores
a minha necessidade que devora um poema para o deitar fora.
perdoa-me não ter entendido uma única coisa que disseste
mesmo na tradução do Cesariny que é livre e bela
como uma rosa francesa desgrenhada em solo português.
perdoa-me escrever telegraficamente
ter deixado de respirar para todo o sempre
e continuar a pintar os lábios de vermelho
como se isso fosse possível num deserto sem beijos.
perdoa-me não ter conseguido manter a tua palavra
perdoa-me ter falhado e ser erro.

p.s. - se quiseres regressar a terra
como o Cristo da literatura do não
tomas café comigo?



Ana Salomé





segunda-feira, 16 de maio de 2022

Manuel Resende - Café Sampo



CAFÉ SAMPO

No Café Sampo, o café
é sumo de peúgas,
os bolos, borracha da Sibéria,
o vodka, metanol puro,
não há serviço às mesas,
mas, felizmente, o empregado
e caixa
é casmurro e malencarado,
calado como uma rena
a pastar neve,
e deixa-me remoer
em paz
a minha
depressão
tamanho familiar.
Ali estou sozinho
como numa
retrete.

Manuel Resende



Lido no blogue Coração Acordeão, de António Gregório.





segunda-feira, 9 de maio de 2022

Sophia de Mello Breyner Andresen - Espera

 

ESPERA

Deito-me tarde
Espero por uma espécie de silêncio
Que nunca chega cedo
Espero a atenção a concentração da hora tardia
Ardente e nua
É então que os espelhos acendem o seu segundo brilho
É então que se vê o desenho do vazio
É então que se vê subitamente
A nossa própria mão poisada sobre a mesa

É então que se vê passar o silêncio

Navegação antiquíssima e solene


Sophia de Mello Breyner Andresen


Geografia (1967)



quinta-feira, 21 de abril de 2022

Paulo Leminski - "Nunca sei ao certo..."



Nunca sei ao certo
se sou um menino de dúvidas
ou um homem de fé

certezas o vento leva
só dúvidas ficam de pé

Paulo Leminski


segunda-feira, 11 de abril de 2022

Fernando Pessoa / Álvaro de Campos - Notas sobre Tavira



NOTAS SOBRE TAVIRA

Cheguei finalmente à vila da minha infância.
Desci do comboio, recordei-me, olhei, vi, comparei.
(Tudo isto levou o espaço de tempo de um olhar cansado).
Tudo é velho onde fui novo.
Desde já — outras lojas, e outras frontarias de pinturas nos mesmos prédios —
Um automóvel que nunca vi (não os havia antes)
Estagna amarelo escuro ante uma porta entreaberta.
Tudo é velho onde fui novo.
Sim, porque até o mais novo que eu é ser velho o resto.
A casa que pintaram de novo é mais velha porque a pintaram de novo.
Paro diante da paisagem, e o que vejo sou eu.
Outrora aqui antevi-me esplendoroso aos 40 anos — Senhor do mundo —
É aos 41 que desembarco do comboio [indolentão?].
O que conquistei? Nada.
Nada, aliás, tenho a valer conquistado.
Trago o meu tédio e a minha falência fisicamente no pesar-me mais a mala...
De repente avanço seguro, resolutamente.
Passou roda a minha hesitação
Esta vila da minha infância é afinal uma cidade estrangeira.
(Estou à vontade, como sempre, perante o estranho, o que me não é nada)
Sou forasteiro tourist, transeunte.
E claro: é isso que sou.
Até em mim, meu Deus, até em mim.

8-12-1931


Álvaro de Campos - Livro de Versos. Fernando Pessoa. (Edição crítica. Introdução, transcrição, organização e notas de Teresa Rita Lopes.) Lisboa: Estampa, 1993. - 154.