sexta-feira, 20 de dezembro de 2013

Uma pequenina luz (Jorge de Sena)



UMA PEQUENINA LUZ

Uma pequenina luz bruxuleante
não na distância brilhando no extremo da estrada
aqui no meio de nós e a multidão em volta
une toute petite lumière
just a little light
una picolla... em todas as línguas do mundo
uma pequena luz bruxuleante
brilhando incerta mas brilhando
aqui no meio de nós
entre o bafo quente da multidão
a ventania dos cerros e a brisa dos mares
e o sopro azedo dos que a não vêem
só a adivinham e raivosamente assopram.
Uma pequena luz
que vacila exacta
que bruxuleia firme
que não ilumina apenas brilha.
Chamaram-lhe voz ouviram-na e é muda.
Muda como a exactidão como a firmeza
como a justiça.
Brilhando indeflectível.
Silenciosa não crepita
não consome não custa dinheiro.
Não é ela que custa dinheiro.
Não aquece também os que de frio se juntam.
Não ilumina também os rostos que se curvam.
Apenas brilha bruxuleia ondeia
indefectível próxima dourada.
Tudo é incerto ou falso ou violento: brilha.
Tudo é terror vaidade orgulho teimosia: brilha.
Tudo é pensamento realidade sensação saber: brilha.
Tudo é treva ou claridade contra a mesma treva: brilha.
Desde sempre ou desde nunca para sempre ou não:
brilha.
Uma pequenina luz bruxuleante e muda
como a exactidão como a firmeza
como a justiça.
Apenas como elas.
Mas brilha.
Não na distância. Aqui
no meio de nós.
Brilha.

Jorge de Sena

Fidelidade (1959)

Aqui dito por Tânia Pinto.




quinta-feira, 19 de dezembro de 2013

Manoel de Barros faz 97 anos

Cartoon de André Costa


O poeta brasileiro Manoel de Barros faz hoje 97 anos. Desejamos-lhe um ótimo dia, enquanto neste reino maravilhoso continuamos a ler os seus versos.


O PUNHAL

Eu vi uma cigarra atravessada pelo sol – como se um punhal atravessasse o corpo.
Um menino foi, chegou perto da cigarra, e disse que ela nem gemia.
Verifiquei com os meus olhos que o punhal estava atolado no corpo da cigarra
E que ela nem gemia!
Fotografei essa metáfora.
Ao fundo da foto aparece o punhal em brasa.

Manoel de Barros


Poesia Completa (Manoel de Barros). Editorial Caminho, Lisboa, 2010.


Poemas concebidos sem pecado, blogue em homenagem do poeta de Cuiabá.


Manoel de Barros na Wikipédia.





quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

o portugal futuro (Ruy Belo)



O PORTUGAL FUTURO

O portugal futuro é um país
aonde o puro pássaro é possível
e sobre o leito negro do asfalto da estrada
as profundas crianças desenharão a giz
esse peixe da infância que vem na enxurrada
e me parece que se chama sável
Mas desenhem elas o que desenharem
é essa a forma do meu país
e chamem elas o que lhe chamarem
portugal será e lá serei feliz
Poderá ser pequeno como este
ter a oeste o mar e a espanha a leste
tudo nele será novo desde os ramos à raiz
À sombra dos plátanos as crianças dançarão
e na avenida que houver à beira-mar
pode o tempo mudar será verão
Gostaria de ouvir as horas do relógio da matriz
mas isso era o passado e podia ser duro
edificar sobre ele o portugal futuro

Ruy Belo (1933-1978), Homem de Palavra(s), 1970


Nota. O portugal futuro (sic)


"Um poema para ler sempre, até (ou especialmente?) nos tempos difíceis em que nos dizem que não temos futuro.

O portugal futuro é ou será? O poeta oscila no tempo. Como se a única possibilidade de felicidade futura estivesse no passado, nas crianças, nas aldeias ... Escolha segura: assim, será impossível não ser feliz.

Nesse passado-presente-futuro, gostaríamos que o leito negro para desenhar a giz fosse o do quadro da escola da nossa infância. Mas desses já não há, terá mesmo que servir o leito igualmente negro do asfalto da autoestrada.

De qualquer forma, sempre será melhor para o puro pássaro, que terá mais espaço para pousar."


Palavras lidas no blogue O linguado .








terça-feira, 17 de dezembro de 2013

Família (José Luís Peixoto)




Família

A toalha de mesa era nova e só se usava nesses almoços de domingo. Havia uma garrafa de laranjada de vidro grosso ao centro da mesa, ao lado do vinho. Antes, o meu pai tinha-me mandado à venda. Levava uma alcofa com duas garrafas vazias. O cheiro do vinho tinto estava entranhado nas paredes. Nessas horas, fim da manhã de domingo, atravessava as fitas e não estava ninguém na venda, só a caixa das pastilhas de mentol e uma cadela que não se incomodava com a minha presença. Tinha de bater com a palma da mão no balcão, que me chegava à altura dos ombros, e, meio tímido, tinha de chamar: Ti Lourenço, Ti Lourenço. Quando chegava, trazia a sua calma e o seu bigode. Trocava a garrafa vazia de laranjada por uma cheia e acertava o gargalo da outra garrafa na torneira do barril. Eu pagava com o número certo de notas de vinte e moedas de cinco escudos.

Nesses dias, não faltava sol no quintal. Agora, parece-me que eram sempre domingos de uma primavera em que já se imaginava o verão. E as galinhas debatiam um assunto calmo na capoeira, as coelhas ameigavam os filhos na coelheira, os pombos atiravam-se em voos desde o pombal. A claridade desse tempo entrava pela janela e pousava sobre a mesa posta, a melhor terrina com canja, os melhores copos, os guardanapos dos dias de festa. A televisão a cores brilhava. Estava ligada e não importa o que estivesse a dar, programas religiosos, concertos em Viena, grandes prémios intermináveis de automobilismo, qualquer coisa era boa e acrescentava cor à nossa tarde. Eu tinha entre seis e treze anos (1980-1987).

Depois, chegou uma altura em que essa toalha de mesa, já mais desbotada, começou a ser usada nas refeições dos dias de semana. Lavada muitas vezes, tornou-se mais suave ao toque. Ganhou nódoas que já não saíam e, um dia, tornou-se demasiado velha até para esse uso. Então, a minha mãe rasgou-a e transformou-a num esfregão. Agora, até esse dia é remoto. Até o dia em que a minha mãe decidiu pôr o esfregão no lixo é remoto.

Esses almoços de domingo moldaram a minha vida.

Quando era pequeno, qualquer tarefa me absorvia por completo. Se decidia fazer uma torre de lego, não tinha mais pensamentos enquanto escolhia as peças e as encaixava umas nas outras. Hoje, não há nada que seja capaz de me prender a atenção dessa forma. Aconteceram muitas coisas ao meu olhar.

Tenho a idade que os meus pais tinham durante esses almoços e pergunto-me se eles olhariam para mim da maneira que eu, agora, olho para os meus filhos. Nesse tempo, os meus filhos e as minhas sobrinhas não existiam. A parte do mundo em que eles não existiam era cruel. Talvez os meus pais já fossem capazes de imaginar este momento, eu crescido, estas crianças à mesa, a minha mãe com setenta anos e o meu pai sem estar cá.

Pergunto-me como é que a minha mãe, que foi menina num tempo que imagino a partir de poucas fotografias, que tratou de todos os almoços de quando eu era pequeno, vê este tempo, sentada no seu lugar, a ser tratada por avó pela voz destas crianças à espera de crescerem e de, também elas, ocuparem todos os lugares da mesa.

Chego a casa de uma das minhas irmãs. A televisão está ligada num dos canais de desenhos animados. As vozes fingidas dos bonecos misturam-se com as nossas vozes, reais, a dizerem palavras que, para mim, com trinta e oito anos, são demasiado nítidas.

Sinto-me culpado. Diante de todas as escolhas, como diante de cruzamentos, quando escolhi caminhos que me afastavam dos almoços de domingo, senti-me sempre culpado. Os almoços nunca são na minha casa. Não tenho casa para almoços de domingo.

Recebo mensagens no telemóvel a lembrarem-me de trabalhos que tenho de fazer até amanhã. Não os tinha esquecido, claro. As minhas sobrinhas e os meus filhos falam de algo que não entendo, um jogo de computador, o Justin Bieber ou um lutador de wrestling. As minhas irmãs entram nas divisões com travessas saídas do forno. A minha mãe pergunta-me se já paguei a segurança social. Está preocupada. Depois de lhe garantir que vou pagar amanhã, repete esse pedido três vezes, quatro vezes. Olho para ela e, em silêncio, peço-lhe para não envelhecer mais.

A toalha de mesa é nova. A toalha de mesa é sempre nova.


José Luís Peixoto 

(Fonte: Revista Visão, Sexta feira, 12 de Abril de 2013)



segunda-feira, 16 de dezembro de 2013

A China fica ao lado (Maria Ondina Braga)


Natal chinês

A senhora Tung chegava dois dias antes da consoada. Costumava vê-la logo de manhã, com a irmã jardineira, no pátio maior, a admirar as laranjeiras anãs nos vasos de loiça. Via-a casualmente a contemplar, embevecida, o presépio do convento. Encontrava-a por fim à mesa.

A senhora Tung viajava todos os anos da Formosa para Macau, na época do Natal, a fim de festejar o nascimento de Cristo na companhia da sua primogénita, a irmã Chen-Mou.

Nesses dias, com as meninas em férias, o refeitório do colégio parecia maior e mais desconfortável: só eu e Miss Lu nos sentávamos à mesa comprida das professoras. Daí a presença da senhora Tung, que noutra ocasião passaria talvez despercebida (estirada a sala entre pátios de cimento e plantas verdes), se tornar nessa altura notável.

Baixa, seca de carnes, de olhos atenciosos, pensativos, a senhora Tung sorria constantemente, falava inglês, gostava de comer, de fumar, de jogar ma-jong. As criadas cortejavam-na nos corredores, preparavam-lhe pratos especiais, levavam-lhe chá ao quarto. Além de ser mãe da subdirectora, tinha fama de rica e distribuía moedas de prata a todo o pessoal na noite de festa.

Nessa noite assistiam três freiras ao nosso jantar (a regra não lhes permitia comer connosco): a directora, a subdirectora e a mestra dos estudos. E muito empertigada, segurando com ambas as mãos um tabuleiro de laca coberto com um pano de seda, a senhora Tung recebia-as à porta do refeitório, entregando cerimoniosamente o presente à filha, que por sua vez o oferecia à directora. Eram bolos de farinha fina de arroz amassada com óleo de sésamo. Toda de vermelho, de sapatos bordados e ganchos de jade no cabelo, a senhora Tung, quando a superiora colocava o tabuleiro dos bolos na mesa, dobrava-se quase até ao chão. Rezava-se, depois. Para lá dos pátios, à porta da cozinha, as criadas espreitavam, curiosas.

Nem no primeiro, nem no segundo, nem no terceiro Natal que passei em Macau, a senhora Tung era cristã, mas todos os anos se nomeava catecúmena. A seguir ao jantar falava-se nisso. A directora, uma francesa de mãos engelhadas que noutros tempos frequentara a Universidade de Pequim, perguntava em chinês formal quando era o baptizado. Inclinando a cabeça para o peito, a senhora Tung balbuciava, indicando a irmã Chen-Mou. A filha... a filha sabia. Talvez se pudesse chamar cristã pelo espírito, mas o coração atraiçoava-a. O coração continuava apegado a antigas devoções... Todavia, vestira-se de gala para a festividade da meia-noite, tinha no quarto o Menino Jesus cercado de flores, e a alma transbordava-lhe de alegria como se cristã verdadeiramente fosse.

Com um sorriso meio complacente meio contrariado, a irmã Chen-Mou desconversava, passando a bandeja dos bolos à superiora, que separava uns tantos para o convento. Os restantes comê-los-iamos nós, ao fim da Missa do Galo, com chocolate quente.

O chocolate era a esperada surpresa da directora. A senhora Tung chamava-lhe, em ar de gracejo, «chá de Paris». No fim das três missas vinham outra vez as três freiras ao refeitório do colégio para trocarem connosco o beijo da paz e nos oferecerem a tigela fumegante do chocolate. Vinham e partiam logo (tarde de mais para se demorarem), e Miss Lu, fanática terceira-franciscana, sempre atenta aos passos das monjas, sorvia à pressa o líquido escaldante, como quem cumprisse um dever, e saía atrás delas.

Ficávamos, assim, a senhora Tung e eu, uma em frente da outra. À luz das velas olorosas do centro de mesa, os seus olhos eram dois riscos tremulantes. Sorríamos. Finalmente, o reposteiro ao fundo da sala apartava-se. Uma das criadas entrava, silenciosa. Servia-se vinho de arroz.

Creio que o vinho de arroz figurava entre as bebidas proibidas no colégio e que chegava ali por portas travessas. O certo, contudo, é que ambas o bebíamos, a acompanhar os bolos de sésamo, no grande e deserto refeitório, na noite de Natal.

O vinho de arroz queimava-me a garganta e fazia-me vir lágrimas aos olhos. Quanto à senhora Tung, saboreava-o devagar, molhando nele o bolo, e, como mal provara o «chá de Paris», bebia dois cálices.

Entretanto, Aldegundes, a criada macaense mais antiga do colégio, aparecia com as especialidades da terra: aluares, fartes e coscorões, dizendo que aluá era o colchão do Minino Jesus, farte almofada, coscorão lençol. E eu traduzia em inglês para a senhora Tung, que achava isto enternecedor e gratificava a velha generosamente.

Quando por fim atravessávamos a cerca a caminho de casa, sob uma lua branca, espantada, anunciadora do Inverno para a madrugada, a senhora Tung abria-se em confidências.

A menina sabia... ― a «menina» era a irmã Chen-Mou, a subdirectora do colégio ―, sabia que ela continuava a venerar a Deusa da Fecundidade. Tratava-se de uma pequena divindade, toda nua e toda de oiro. Fora ela quem lhe dera filhos. Estéril durante sete anos, a senhora Tung recorrera à sua intercessão divina quando o marido já se preparava para receber nova esposa. Não podia portanto deixar de a amar. Toda a felicidade lhe provinha daí, dessa afortunada hora em que a deusa a escutara.

Parava a meio do largo átrio enluarado, de olhar meditabundo, mãos cruzadas no colo. E as palavras saíam-lhe lentas e soltas, como se falasse sozinha.

... E aquele mistério da virgindade de Nossa Senhora! Virgem e mãe ao mesmo tempo... Não se lia no Génesis: «O homem deixará o pai e a mãe para se unir a sua mulher e os dois serão uma só carne?» Não era essa a lei do Senhor? Porquê então a Mãe de Cristo diferente das outras, num mundo de homens e de mulheres onde o Filho havia de vir pregar o amor? A Deusa da Fecundidade, patrona dos lares, operava milagres, sim, mas racionalmente, atraindo a vontade do homem à da sua companheira e exaltando essa atracção. Como o Céu alagando a Terra na estação própria.

Retomávamos a marcha em direcção aos nossos aposentos. Difícil para mim responder às dúvidas da senhora Tung, nem ela parecia esperar resposta. Mudava, rápida, de assunto, aludindo ao tempo, à viagem de regresso, às saborosas guloseimas da criada macaísta. Já em casa, convidava-me a ir ver o seu presépio. O quarto cheirava fortemente a incenso. Em cima da cómoda, entre flores, lá estava o Menino Jesus, de cabaia de seda encarnada, sapatinhos de veludo preto, feições chinesas.

Depois, timidamente, a senhora Tung abria a gaveta... e surgia a deusa.

O Menino Jesus era de marfim. A Deusa da Fecundidade era de oiro. O Menino, de pé, de um palmo de altura, trajando ricamente. A deusa, sentada, pequenina, nua.

Os olhos da senhora Tung atentavam nos meus, como se à procura de compreensão, mas as suas palavras prontas (a deter as minhas?) eram de autocensura. Não, não devia fazer aquilo. A filha asseverara que o Menino Jesus entristecia, em cima da cómoda, por causa da deusa, na gaveta. E quem sabia mais do que a filha ?

Eu já sentia frio, apesar da aguardente de arroz. O Inverno, ali, chegava de repente. A senhora Tung, no entanto, tinha as mãos quentes e as faces afogueadas.

Despedíamo-nos. Eu sempre me apetecia dizer-lhe que estivesse sossegada, que de certeza o Menino Jesus não havia de se entristecer, em cima da cómoda, por causa da deusa, na gaveta. Mas nunca lho disse nos três anos que passei o Natal com ela. Palpitava-me que a senhora Tung se enervava com o assunto. E que, de qualquer jeito, não me acreditaria.

Maria Ondina Braga

Do seu romance A China Fica ao Lado, Lisboa, Panorama, 1968


(Fonte do texto: Centro Virtual Camões)


Arquivo digital do espólio de Maria Ondina Braga - Museu Nogueira da Silva


In Memoriam Maria Ondina Braga (1932-2003)


quinta-feira, 12 de dezembro de 2013

A felicidade (Miguel Esteves Cardoso)



Feliz é uma coisa que se é ou não é. Não se pode “estar” feliz. Pode-se estar-se bem disposto, pode estar-se alegre, pode estar-se satisfeito, mas feliz é coisa que simplesmente não faz sentido estar. Ou se é ou não se é. Mas não se julgue que é fácil saber qual das duas coisas será a mais triste.

As pessoas que não têm alegria na vida podem ter a esperança de se alegrar. As pessoas que andam sempre descontentes continuam a ter hipóteses de virem a contentar-se. As insatisfeitas podem muito bem satisfazer-se. Mas as pessoas infelizes, porque são mesmo infelizes, porque infelizes é uma coisa verdadeira que elas realmente são, não podem “enfelizar-se”. Feliz é também uma coisa que ninguém se torna, que ninguém fica e que ninguém compra. Ou se é, ou não se é. É como ser louro. (Apesar de eu achar que ser feliz é mais parecido com ser moreno).

As pessoas felizes são aquelas que têm vergonha de falar nisso. Em Portugal, dizer “Eu sou feliz” é como dizer “Eu sou rico” ou “Eu sou de boas famílias”. É escandaloso. Pode dizer-se “Hoje estou bem disposto!”, porque é como confessar uma anormalidade. É notícia. Dizer “Hoje estou mal disposto” é muito menos assunto de primeira página – é como a notícia “Homem mordido por cão no Rossio”. Em contrapartida, a notícia “Hoje acordei bem disposto” é mais aliciante; como “Cão mordido por homem no Terreiro do Paço”.

Ninguém tem pachorra para aquelas bestas sadias que estão sempre alegres e bem dispostas – é uma atitude de desrespeito perante a vida e a desgraça dos outros. Em Portugal, o que convém é andar mais ou menos. À pergunta altamente irritante “Então? Bem disposto?”, não é lícito nem responder que não (“Deixe-me soterrá-lo nalgumas misérias minhas”), nem responder que sim (“Deixe-me enaltecer junto de si alguns dos meus triunfos pessoais mais recentes”). A resposta de protocolo é “Oh...”, encolher os ombros, sorrir como quem diz “O que é que se há-de fazer?” e perguntar “Então e tu?”, com ar de quem já sabe a resposta.

Para ser feliz é preciso ser-se um bocado parvo. Eu, por exemplo, sou. A felicidade é inversamente proporcional a uma série de coisas de boa fama, como a sabedoria, a verdade e o amor. Quando se sabe muito, não se pode ser muito feliz. A verdade é quase sempre triste. É científica, uma chatice de células e de ácidos nucleicos, de factos não só nus como crus. Os factos! Apetece gritar-lhes: “Psshtt! Mas que pouca vergonha é esta? Vão já vestir-se e cozer-se!”.

É por isso que existe a mentira – é um dos mecanismos da felicidade. As pessoas felizes são aquelas que mentem a si mesmas sem dar por isso e que conseguem enrolar-se bem enroladinhas. Aliás, se formos a pensar no que distingue uma pessoa feliz de uma pessoa normal, verificamos que é o facto de a pessoa feliz nunca pensar em si própria. As pessoas normais martirizam-se com a profundidade das suas análises, ado¬ram enterrar os cotovelos nos pântanos lamacentos das suas motivações. Enfim, pensam muito nos problemas que têm. As pessoas felizes só pensam nos outros. É como se não existissem. É por isso – por não existirem esse bocadinho – que conseguem ser felizes. É uma ilusão óptica muito bem feita. Ninguém é mais feliz que o homem invisível.

(...)

Miguel Esteves Cardoso


Os meus problemas, Assírio & Alvim, 1ª edição, 1988, Lisboa. As crónicas deste livro foram publicadas originalmente no jornal Expresso.




terça-feira, 10 de dezembro de 2013

A quinta história (Clarice Lispector)




A QUINTA HISTÓRIA

Esta história poderia chamar-se “As Estátuas”. Outro nome possível é “O Assassinato”. E também “Como Matar Baratas”. Farei então pelo menos três histórias, verdadeiras, porque nenhuma delas mente a outra. Embora uma única, seriam mil e uma, se mil e uma noites me dessem.

A primeira, “Como Matar Baratas”, começa assim: queixei-me de baratas. Uma senhora ouviu-me a queixa. Deu-me a receita de como matá-las. Que misturasse em partes iguais açúcar, farinha e gesso. A farinha e o açúcar as atrairiam, o gesso esturricaria o de-dentro delas. Assim fiz. Morreram.

A outra história é a primeira mesmo e chama-se “As Estátuas”. Começa dizendo que eu me queixara de baratas. Uma senhora ouviu-me. Segue-se a receita. E então entra o assassinato. A verdade é que só em abstrato me havia queixado de baratas, que nem minhas eram: pertenciam ao andar térreo e escalavam os canos do edifício até o nosso lar. Só na hora de preparar a mistura é que elas se tornaram minhas também. Em nosso nome, então, comecei a medir e pesar ingredientes numa concentração um pouco mais intensa. Um vago rancor me tomara, um senso de ultraje. De dia as baratas eram invisíveis e ninguém acreditaria no mal secreto que roía casa tão tranquila. Mas se elas, como os males secretos, dormiam de dia, ali estava eu a preparar-lhes o veneno da noite. Meticulosa, ardente, eu aviava o elixir da longa morte. Um medo excitado e meu próprio mal secreto me guiavam. Agora eu só queria gelidamente uma coisa: matar cada barata que existe. Baratas sobem pelos canos enquanto a gente, cansada, sonha. E eis que a receita estava pronta, tão branca. Como para baratas espertas como eu, espalhei habilmente o pó até que este mais parecia formar parte da natureza. De minha cama, no silêncio do apartamento, eu as imaginava subindo uma a uma até a área de serviço onde o escuro dormia, só uma toalha alerta no varal. Acordei horas depois em sobressalto de atraso. Já era de madrugada. Atravessei a cozinha. No chão da área lá estavam elas, duras, grandes. Durante a noite eu matara. Em nosso nome amanhecia. No morro um galo cantou.

A terceira história que ora se inicia é a das “Estátuas”. Começa dizendo que eu me queixara de baratas. Depois vem a mesma senhora. Vai indo até o ponto em que, de madrugada, acordo e ainda sonolenta atra vesso a cozinha. Mais sonolenta que eu está a área na sua perspectiva de ladrilhos. E na escuridão da aurora, um arroxeado que distancia tudo, distingo a meus pés sombras e brancuras: dezenas de estátuas se espalham rígidas. As baratas que haviam endurecido de dentro para fora. Algumas de barriga para cima. Outras no meio de um gesto que não se completaria jamais. Na boca de umas um pouco da comida branca. Sou a primeira testemunha do alvorecer em Pompéia. Sei como foi esta última noite, sei da orgia no escuro. Em algumas o gesso terá endurecido tão lentamente como num processo vital, e elas, com movimentos cada vez mais penosos, terão sofregamente intensificado as alegrias da noite, tentando fugir de dentro de si mesmas. Até que de pedra se tornam, em espanto de inocência, e com tal, tal olhar de censura magoada. Outras — subitamente assaltadas pelo próprio âmago, sem nem sequer ter tido a intuição de um molde interno que se petrificava! — essas de súbito se cristalizam, assim como a palavra é cortada da boca: eu te... Elas que, usando o nome de amor em vão, na noite de verão cantavam. Enquanto aquela ali, a de antena marrom suja de branco, terá adivinhado tarde demais que se mumificara exacta mente por não ter sabido usar as coisas com a graça gratuita do em vão: “é que olhei demais para dentro de...” — de minha fria altura de gente olho a derrocada de um mundo. Amanhece. Uma ou outra antena de barata morta freme seca à brisa. Da história anterior canta o galo.

A quarta narrativa inaugura nova era no lar. Começa como se sabe: queixei-me de baratas. Vai até o momento em que vejo os mo numentos de gesso. Mortas, sim. Mas olho para os canos, por onde essa mesma noite renovar-se-á uma população lenta e viva em fila indiana. Eu iria então renovar todas as noites o açúcar letal como quem já não dorme sem a avidez de um rito? E todas as madrugadas me conduziria sonâmbula até o pavilhão no vício de ir ao encontro das estátuas que a minha noite suada erguia? Estremeci de mau prazer à visão daquela vida dupla de feiticiera. E estremeci também ao aviso do gesso que seca: o vício de viver que rebentaria meu molde interno. Áspero instante de escolha entre dois caminhos que, pensava eu, se dizem adeus, e certa de que qualquer escolha seria a do sacrifício: eu ou a minha alma. Escolhi. E hoje ostento secretamente no coração uma placa de virtude: “Esta casa foi dedetizada”.

A quinta história chama-se “Leibnitz e a Transcendência do Amor na Polinésia”. Começa assim: queixei-me de baratas.

Clarice Lispector





quinta-feira, 5 de dezembro de 2013

José Craveirinha



José Craveirinha, poeta maior da literatura moçambicana e primeiro africano a ganhar o prémio Camões (1992) cresceu no mesmo bairro onde o Eusébio deu os primeiros toques na bola, no periférico Mafalala, Maputo.

Nasceu em 1922 quando a antiga Lourenço Marques ainda nem era bem uma cidade, senão o embrião da metrópole em que se começou a converter anos mais tarde. Fez da escrita a sua vida e o meio mais-que-perfeito para denunciar abusos contra os Direitos Humanos.

Já se sabe que a ignorância é a namoradinha do preconceito. Devo admitir que eu era, estava e estou ainda muito ignorante em relação à obra do Craveirinha. Parti da minha ideia preconcebida que ele havia escrito essencialmente contra a ocupação colonial dos portugueses e a favor da construção da identidade moçambicana. Não sendo de todo errado, descobri graças a um livro emprestado, que o Craveirinha se deu ao trabalho de fazer as coisas tão bem feitas, que aquele que leia alguns dos seus poemas mas que desconheça quem é e de onde vem o poeta, pensará que ele está a descrever uma situação típica na Faixa de Gaza, na Síria, no Afeganistão e em tantos outros focos bélicos.

Quero com isto dizer que dei um pontapé na ignorância. Em troca ganhei o prazer da companhia de um poeta que é de Moçambique, dos moçambicanos e de todas as pessoas. Um defensor dos Direitos Humanos. E se não fosse assim ora digam-me lá porque é que ele teria escrito coisas como estas:



Cancioneiro de Xiguevengos

Mãe e filha partiram de Chidenguele
com todos os quesitos cumpridos
mais dois: outra filha e uma irmã raptadas

Três semanas antes tinham pedido ao Grupo Dinamizador
salvos-condutos de viagem à vizinha localidade
para evitar problemas no “control”

Com todos os seus requisitos em ordem
antes da curva do segundo canhoeiro
mãe e filha foram violadas.

Depois a récua de xiguevengos
foi antologiando as duas
no versátil cancioneiro
das catanadas


Outra beleza

Uns exibem insólitos perfis
de outra beleza
maquilhada
no mato.

Ou
do viés
ou de frente
perfeitos modelos de caveira
desfilam sem nariz.


O Seio

Mamana
amamentando
vale a pena sobreviver
ao holocausto da horda?

Ela
a olhar
os cães devorando
sua carne do seio amputado?


João Matangulana

Refugiado na emergência do volante
João Matangulana súbito conseguiu
Reforma de condutor
Há 35 anos
Encartado

No paradeiro do emboscado Mercedes Benz
A família identificou João Matangulana
Pela meia chapa da matrícula
Apanhada no entulho


Propaganda

Era tudo falso.
Tudo propaganda do inimigo.
Cabala infame.
No corpo intacto não se notava
Nenhum sinal de tortura
Nem qualquer espécie de sevícia.

Só...
Cabeça reclinada na areia
Ele repousava degolado.



Agradeço a Ofélia Queirós a licença para publicar esta mensagem do seu blogue cabeça no ar ou ar na cabeça



quarta-feira, 4 de dezembro de 2013

Uma citação de Fernando Pessoa



O mundo é de quem não sente. A condição essencial para se ser um homem prático é a ausência de sensibilidade.

Fernando Pessoa

 

segunda-feira, 2 de dezembro de 2013

Uma gota de chuva na cara (António Lobo Antunes)

mulher bala


"Se não fosse gago era-me fácil conversar com ela. Mora três quarteirões adiante do meu, apanhamos o mesmo autocarro todos os dias, eu na quarta paragem e ela na quinta, olhamos imenso um para o outro durante os vinte minutos

(meia hora quando há trânsito)

do percurso entre o nosso bairro e o ministério, ela trabalha dois andares acima de mim, subimos no mesmo elevador sempre a olharmo-nos, às vezes até parece que me sorri

(tenho quase a certeza que me sorri)

vemo-nos de longe no refeitório cada qual com o seu tabuleiro, ia jurar que me fez sinal para me sentar na mesa dela, não me sento por não ter a certeza que me fez sinal

(acho que tenho a certeza que me fez sinal)

voltamos a olhar-nos no elevador, ela volta a sorrir quando saio, volta a olhar para mim no autocarro de regresso a casa e não sou capaz de falar com ela por causa da gaguez. Ou melhor não é só a gaguez: é que como as palavras não me saem, como quero exprimir-me e não consigo, fico roxo com os olhos de fora

(pus-me diante do espelho e é verdade)

de boca aberta, cheia de dentes, a tropeçar numa consoante interminável, a encher o ar à minha volta de um temporal de perdigotos aflitos, e não quero que ela repare como me torno ridículo, como me torno feio, como me torno, fisicamente, numa carranca de chafariz, a cuspir água aos soluços num mugido confuso. Com os meus colegas do emprego é simples: faço que sim ou que não com a cabeça, resumo as respostas a um gesto vago, transformo um discurso num erguer de sobrancelhas, reduzo as minhas opiniões sobre a vida a um encolher de ombros

(mesmo que nao fosse gago continuaria a reduzir as minhas opiniões sobre a vida a um encolher de ombros)

ao passo que com ela seria obrigado a dizer coisas por extenso, a conversar a segredar-lhe ao ouvido

(se eu me atrevesse a segredar-lhe ao ouvido aposto que tirava logo o lenço da carteira para enxugar as bochechas e fugia assustada)

a segredar-lhe ao pescoço, a enredá-la numa teia de frases

(as mulheres, julgo eu, adoram ser enredadas numa teia de frases)

enquanto lhe pegava na mão, descia as pálpebras, esticava os lábios na expressão infinitamente estúpida dos namorados prestes ao beijo, e agora ponham-se no lugar dela e imaginem um gago desorbitado a aproximar-se de vocês escarlate de esforço, a abrir e fechar a boca prisioneiro de uma única silaba, a empurrar com o corpo todo um

- Amo-te

que não sai, que não consegue sair, que não sairá nunca, um

- Amo-te
que me fica preso na língua num rolhão de saliva, eu a subir e a descer os braços, a desapertar a gravata, a desabotoar o botão do colarinho, o

- Amo-te

nada, ou, pior que nada, substituído por um berro de gruta, ela a afastar-se com os braços estendidos, a levantar-se, a desaparecer porta fora espavorida, e eu sozinho na pastelaria debruçando-me ainda ofegante para o chá de limão e o pastel de nata da minha derrota definitiva. Não posso cair na asneira de conversar com ela, é óbvio que me tenho que conformar com os olhares no autocarro, com o sorriso no elevador, com o convite mudo no refeitório até ao dia em que ela aparecer de mão dada com um sujeito qualquer, se calhar mais velho do que eu mas capaz de lhe cochichar na orelha sem esforço

o que eu adorava explicar-lhe e não consigo até ao dia em que deixar de me olhar, de sorrir, de convidar-me a sentar a sua frente durante o almoço

(sopa, um prato à escolha entre dois, doce ou fruta, uma carcaça e uma garrafa pequena de vinho, tudo por quatrocentos e quarenta escudos não é caro)

e eu a vê-la na outra ponta do autocarro a poisar a testa no ombro de um sujeito qualquer, sem reparar em mim, sem reparar sequer em mim como se eu nunca tivesse existido e compreender que por ter deixado de existir não existi nunca, e nessa noite ao olhar-me no espelho não verei ninguem ou verei quando muito um par de olhos

(os meus)

que me censuram, um par de olhos com aquilo que ia jurar ser uma lágrima a tremer nas pestanas e a descer devagarinho pela bochecha fora, ou talvez não seja uma lágrima e apenas

(porque será inverno)

uma gota de chuva, sabem como é, a correr na vidraça."


António Lobo Antunes





sexta-feira, 29 de novembro de 2013

Eros e Psique (Fernando Pessoa)



Um poema de Fernando Pessoa, poeta português, recitado por Maria Bethânia, cantora brasileira.


EROS E PSIQUE

Conta a lenda que dormia
Uma Princesa encantada
A quem só despertaria
Um Infante, que viria
De além do muro da estrada.

Ele tinha que, tentado,
Vencer o mal e o bem,
Antes que, já libertado,
Deixasse o caminho errado
Por o que à Princesa vem.

A Princesa Adormecida,
Se espera, dormindo espera,
Sonha em morte a sua vida,
E orna-lhe a fronte esquecida,
Verde, uma grinalda de hera.

Longe o Infante, esforçado,
Sem saber que intuito tem,
Rompe o caminho fadado,
Ele dela é ignorado,
Ela para ele é ninguém.

Mas cada um cumpre o Destino
Ela dormindo encantada,
Ele buscando-a sem tino
Pelo processo divino
Que faz existir a estrada.

E, se bem que seja obscuro
Tudo pela estrada fora,
E falso, ele vem seguro,
E vencendo estrada e muro,
Chega onde em sono ela mora,

E, inda tonto do que houvera,
À cabeça, em maresia,
Ergue a mão, e encontra hera,
E vê que ele mesmo era
A Princesa que dormia.


Publicado pela primeira vez na revista Presença, núm. 41-42, Coimbra, maio de 1934.






Psiquê (em grego: Ψυχή, Psychē) é uma personagem da mitologia grega, personificação da alma.

Seu mito é narrado no livro O Asno de Ouro de Apuleio, que a cita como uma bela mortal por quem Eros, o deus do amor, se apaixonou. Tão bela que despertou a fúria de Afrodite, deusa da beleza e do amor, mãe de Eros - pois os homens deixavam de frequentar seus templos para adorar uma simples mortal.

A deusa mandou seu filho atingir Psiquê com suas flechas, fazendo-a se apaixonar pelo ser mais monstruoso existente. Mas, ao contrário do esperado, Eros acaba se apaixonando pela moça - acredita-se que tenha sido espetado acidentalmente por uma de suas próprias setas.

Com o próprio deus do Amor apaixonado por ela, suas setas não foram lançadas para ninguém. O tempo passava, Psiquê não gostara de ninguém, e nenhum de seus admiradores tornara-se seu pretendente.

Para saber mais sobre Eros e Psique(ê).



quarta-feira, 27 de novembro de 2013

"Lisboa tratou-me, como já vem sendo hábito, muito bem."

Avenida dos Aliados, no Porto*


Lisboa tratou-me, como já vem sendo hábito, muito bem. Gosto genuinamente de Lisboa. Gosto das picardias saudáveis entre Norte e Sul. Divirto-me com os Lisboetas que nos olham com a sobranceria de quem foi uma ou duas vezes ao Norte, há muitos anos, visitar um familar bastante afastado. Como se o Norte fosse um lugar recôndito, por detrás de serras e vales, muito atrasado e sub-desenvolvido. Sorrio interiormente quando me perguntam se é a minha primeira vez em Lisboa como se não existisse Alfa Pendular ou como se os 300Km que nos separam correspondessem a uma vida inteira em viagem.

E depois perguntam como são as Galerias, o Maus Hábitos, a Champanheria da Baixa, a Miss'Opo. Não são nem Bairro Alto, nem Cais do Sodré e eu não tenho bem como lhes explicar as diferenças. O Porto não é Lisboa, está visto. Temos pronúncia e lançamos um bamos lá ber! parolão mesmo no coração de Carnide. Mas não temos Chiado (que raio!), nem Fábrica do Braço de Prata, nem LX Factory. O Majestic fecha aos Domingos à tarde, o metro é de superfície e a Time Out é mensal. Deve ser por isso que nos acham provincianos. A culpa é da Time Out mensal, está claro! Como é que não me lembrei disto antes?!

Fico triste por não termos Chiado, já disse, e essa é a parte mais chata de todas. Gostava de ter o brunch da Tartine e os livros a 5€ da Fyodor Books. E gostava sobretudo que o Porto dinâmico não se fizesse quase apenas da minha geração e das mais novas. Porque o Porto ainda tem uma faixa bastante conservadora, de gente que não vai em brunches e que olha de soslaio para D'Bandadas. O Porto tem gente mais genuína, no entanto. Não vamos tanto em aparatos e aparências, e nisso ganhamos claramente a Lisboa.

Fico assim, dividida, com vontade de entrar nos Aliados e sair no Rossio. Com desejo de arranjar um sistema qualquer de teletransporte. Ora estou cá. Ora estou lá. Almocinho na Foz e chá de final de tarde nas traseiras da Casa Fernando Pessoa. Não ter de escolher entre Porto ou Lisboa. Isso sim, seria vida!


Lido no blogue Alugo-me para rir!
(publicado: 18 de novembro de 2013)




 Praça de D. Pedro IV ou Largo do Rossio em Lisboa



segunda-feira, 25 de novembro de 2013

Mundo Cão (Helena F. Matos)



O que é mais importante: a morte de uma criança ou de um cão? Do cão, pelo menos a fazer fé nesta notícia do DN: «Mulher esfaqueou o seu cão por lhe matar a filha. Uma mulher inglesa esfaqueou, na terça-feira, o seu cão, numa tentativa de salvar a filha de quatro anos de ser fatalmente atacada pelo animal. No entanto, a menina, que acabou por ser atacada, morreu no hospital. Segundo as autoridades policiais, Jodie Hudson esfaqueou o seu cão Mulan, de cerca de oito anos, com uma faca de cozinha, após este ter atacado sua filha Lexi Branson, no apartamento onde viviam, em Mountsorrel, perto de Loughborough (Inglaterra). A menina, de quatro anos, acabou por morrer no hospital, devido aos ferimentos provocados pelo ataque do animal.» O destaque da notícia vai para o facto da mulher ter esfaqueado o cão. A morte da criança vem em segundo plano.

«Neste momento, estamos a investigar o caso para perceber toda a história do animal, o local de onde veio, como foi feita a sua inserção na família. E queremos, claro, entrar em contacto com o médico legista para perceber em que circunstâncias se deu a morte de Lexi”, disse Det Supt Sandall, em declarações ao site da BBC.» Da inserção da criança na família nem uma palavra. Sobre o facto de a família deixar a criança num apartamento ao pé do cão também nada. Vão investigar a morte do cão. Perceber toda a história do animal. E claro também falam com o médico legisla para perceber como morreu a criança.

 Helena F. Matos em Blasfémias (7-novembro-2013)



sexta-feira, 22 de novembro de 2013

História de encontros e desencontros (Ana Mesquita)



Ana Mesquita conta-nos uma história de encontros e desencontros, marcada por uma fina ironia, como todas as boas histórias.



quarta-feira, 20 de novembro de 2013

Rumor de água (Carlos de Oliveira)




RUMOR DE ÁGUA

Rumor de água
na ribeira ou no tanque?
O tanque foi na infância
minha pureza refractada.
A ribeira secou no verão
Rumor de água
no tempo e no coração.
Rumor de nada.

Carlos de Oliveira



segunda-feira, 18 de novembro de 2013

Outono (hmbf)

Fundão (Fotografia de Glória Ishizaka)


 OUTONO

Naquele dia em que acordei invisível tudo me pareceu mais suportável. Andei pelas ruas como um anjo na terra, um fantasma. Não atormentei ninguém, nem deixei que me atormentassem os olhos dos outros. Estava bom tempo. Sentei-me numa esplanada e abri um livro sobre a mesa. Quem olhasse para aquela mesa não me veria, iria apenas reparar num livro que julgaria perdido. Era o meu livro. Folheava-o. Passava as páginas como se fosse o vento, as pontas dos meus dedos sopravam as páginas de um lado para o outro. Quem olhasse as páginas a passarem de um lado para o outro julgaria que era o vento. E era, porque eu era o vento.

Foi naquele dia em que acordei invisível, a seis de Outubro. Apanhei as pessoas distraídas e servi-me de um copo de cerveja. Uma bênção. Que estranho, pensavam as pessoas que passavam e olhavam para uma mesa vazia. Sobre a mesa, apenas aquele copo de cerveja cheio e um livro aberto. Ninguém me via. Fui bebendo a cerveja. O copo ia ficando vazio. Quem o olhasse estranharia, pensaria que ali se passava um acelerado processo de evaporação. E passava. Eu era vapor, nos meus lábios o vapor de um dia, da minha boca para fora uma nuvem de vapor que ninguém via. Apenas eu, que ali sentado folheava um livro e tragava uma cerveja.

Eu era um vapor redundante na boca do vento, exagerava talvez esse esforço inútil a que nos dedicamos sempre que pretendemos meter nas palavras a areia que não cabe nelas. As palavras estão cheias de si, nada lhes podemos acrescentar que elas não tenham já.

Então vi Jayne passar. Fui atrás dela. Não como que perseguindo-a, porque não a perseguia. Na verdade, pouco me ralava onde iria, o que fazia, apenas queria saber se estava bem. E invisivelmente persegui Jayne até uma nova realidade nascida. Jayne tinha uma caminhada encantadora. Entrou numa imagem, e dessa imagem saltou para outra imagem, atravessou túneis longínquos de imagens fantasiosas, tinha a voz de um anjo, o rosto engenhoso de quem sonha e não se importa de oferecer alegria aos olhos. Eu amava Jayne, amo-a. Penso nela a todas as horas do dia. Mas não quis fazê-la sofrer, deixei-me ficar invisível e meti-me por atalhos obscuros, pensei que talvez pudesse ser salvo pela tristeza. De uma atmosfera assim, tudo o que podemos esperar, ironicamente, é a indiferença da monotonia.

Trouxe à flor da pele a revolução disfarçada de um corpo. Senti-me triunfante. Já não estava tão invisível, se bem que ninguém notava em mim. Voltei à mesma esplanada, à mesma mesa, com o mesmo livro e o mesmo copo de cerveja. Agora qualquer pessoa podia ver-me, mas ninguém notava. Era como se eu não estivesse ali, como se a mesa permanecesse desocupada. Na verdade, eu retirara graça a uma mesa vazia. Eu era a esfinge que destoava numa paisagem toldada.

Idiota, chamei a mim mesmo. Para quê pretender um corpo que ninguém toca, que ninguém vê, que ninguém suporta?

Fui para casa ouvir música. Ornette Coleman, Don Cherry, Walter Norris, Don Payne, Billy Higgins. Eu era outra coisa quando ouvia música. Já não era o vento nem um vapor na boca do vento, nem sequer era um corpo, era algo para lá de todo e qualquer tipo de contentamento. Era a finíssima dor do silêncio quando é atravessado pelo som,
...................................................................................................era uma linha ténue que separa o dentro do fora,
.........................era essa pele esticada de onde retiraste o baque de um coração espontâneo,
.......................era um ritmo que não glosa o tempo,
..................................................................................nem a luz que no imo desse tempo se faz treva e ilumina,
.............era uma coisa cheia de vazio,
............................................................a nuvem de pó que se levanta quando à passagem da tempestade as raízes de um coro de árvores gritam em uníssono pelas folhas arrancadas,
..........................e as flores choram o pólen que parte para lugares insondáveis e de lá nunca mais volta.


hmbf


Publicado: Terça-feira, 28 de Setembro de 2010 no muito recomendável blogue Antologia do esquecimento.




sexta-feira, 15 de novembro de 2013

O velho e o laranjal (Júlio Barata-Feyo)

 


Uma crónica do magazine de fim de semana do jornal  Público, que apareceu perdida entre os meus papeis.


O VELHO E O LARANJAL

Ela era jovem, na casa dos vinte, neta e única familiar dele. Vivia e trabalhava em Lisboa e fora visitá-lo à aldeia, no Algarve, porque andava preocupada. Nos últimos tempos, sempre que lhe telefonava, ele respondia com resmungas e monossílabos, sinal evidente de que a vida não lhe corria de feição. As coisas tinham piorado recentemente, ela tirara-se de cuidados e aproveitara o fim-de-semana para se meter a caminho e ir vê-lo. Encontrou-o a meio da manhã de sábado, a gozar o calor psicológico do sol de Fevereiro, sentado contra o seu muro de pedra preferido, aquele de onde via o mar. – Bom dia, avô - e o avô respondeu-lhe com um resmungo.

Percebeu que a situação era grave quando soube que dizia respeito ao laranjal. O laranjal era a menina dos olhos dele, plantado à mão, árvore a árvore, há mais de trinta anos e a sua única fonte de rendimentos a que lhe dava a dignidade de, no entendimento do avô, não ser um assistido da "esmola pública” (era assim que ele chamava à pensão mínima de sobrevivência). Cada ano que passava os comerciantes de laranjas baixavam a oferta pelo laranjal e ele estabelecera um limite na sua cabeça para aquela inexorável queda dos preços: no dia em que lhe propusessem menos dinheiro do que no primeiro ano em que vendera o jovem pomar, ele fosse cego se, se... Se, não sabia o quê, mas seria a revolta. E ela ali estava, a revolta.

– Ofereceram-me trinta contos, vê lá tu, trinta contos! Menos de dez escudos por cada quilo de laranja (O avô já não falava em reis mas também não atinava ainda com os euros).

– Sabes onde é que eu lhes disse que podiam meter os trintas contos, sabes? – A neta sabia ou pelo menos calculava, mas achou por bem não puxar pela resposta e ele em não insistir. Trinta contos. Menos de três contos por mes... O avô ia viver da horta e cortar no peixe e no tabaco, por esta ordem, que correspondia à importância dos dois produtos na hierarquia das suas prioridades.

A neta olhou-o com aqueles olhos verde claro que herdara dele. Passou-lhe pela cabeça explicar os princípios da concorrência dentro da União Europeia, os condicionalismos da mundialização, o sumo concentrado que chegava de Marrocos e do Brasil, não a dez mas ao equivalente a cinco escudos o quilo de laranja, explicar o mecanismo da margem de lucro das fábricas de refrigerantes, enfim, explicar-lhe a modernidade. Passou-lhe pela cabeça e nada disse. Sentou-se ao lado dele, também ela a olhar para o mar, mas viu apenas a derradeira morada de um vivo e um cemitério de recordações.

– As nossas laranjas são boas, avô – o velho concordou com a cabeça. – Conheço muita gente de Lisboa que pagaria bom dinheiro para vir colhê-las, directamente da árvore, a duzentos escudos o quilo ou até mais. São laranjas da terra, sem produtos químicos – o velho voltou a acenar que sim – e isso agora é que está na moda, cada vez mais na moda.

O avô tirou os olhos do mar, vagamente interessado, vagamente desconfiado. – E depois pisam-me a horta toda, está bom de ver. – A neta percebeu que ele mordera o anzol, o irracional anzol da esperança, sorriu e explorou a vantagem. –Se pisarem a horta, pagam ainda mais e têm direito a uma carga de porrada. – O avô tinha a fama de quem gostara de molhar a sopa na sua juventude.

O velho voltou-se outra vez para o mar, lentamente. Fora algumas vezes a Lisboa, para visitar a neta ou ser visto pelo médico. Franziu o sobrolho e pestanejou... Lembrou-se de gente em prédios de apartamentos como as sardinhas nas latas de Tavira, de sorrisos esquecidos como nos días de naufrágio, de buzinas raivosas como as sirenes dos barcos em noites de nevoeiro. Lembrou-se de gente com ar infeliz e que parecía gostar disso, de sofrer! Masoquistas, diria a neta. Que nada disse. O velho semicerrou os olhos para disfarçar um brilho de malícia. – Talvez tenhas razão. Mas se eles vierem, as laranjas é só para disfarçar. Vêm é para levar porrada.


Júlio Barata-Feyo


Nota sobre as moedas: O escudo era a antiga moeda portuguesa. 1 euro = 200,50 escudos. Um conto = 1.000 escudos.


segunda-feira, 11 de novembro de 2013

Todos os nomes (José Saramago)



Por cima da moldura da porta há uma chapa metálica comprida e estreita, revestida de esmalte. Sobre um fundo branco, as letras negras dizem Conservatória Geral do Registo Civil. O esmalte está rachado e esboicelado em alguns pontos. A porta é antiga, a última camada de pintura castanha está a descascar-se, os veios da madeira, à vista, lembram uma pele estriada. Há cinco janelas na fachada. Mal se cruza o limiar, sente-se o cheiro do papel velho. É certo que não passa um dia sem que entrem papéis novos na Conservatória, dos indivíduos de sexo masculino e de sexo feminino que lá fora vão nascendo, mas o cheiro nunca chega a mudar, em primeiro lugar porque o destino de todo o papel novo, logo à saída da fábrica, é começar a envelhecer, em segundo lugar porque, mais habitualmente no papel velho, mas muitas vezes no papel novo, não passa um dia sem que se escrevam causas de falecimentos e respectivos locais e datas, cada um contribuindo com os seus cheiros próprios, nem sempre ofensivos das mucosas olfactivas, como o demonstram certos eflúvios aromáticos que de vez em quando, subtilmente, perpassam na atmosfera da Conservatória Geral e que os narizes mais finos identificam como um perfume composto de metade rosa e metade crisântemo. Logo depois da porta aparece um alto guarda-vento envidraçado de dois batentes por onde se acede à enorme sala rectangular onde os funcionários trabalham, separados do público por um balcão comprido que une as duas paredes laterais, com excepção, em uma das extremidades, da aba móvel que permite a passagem para o interior. A disposição dos lugares na sala acata naturalmente as precedências hierárquicas, mas sendo, como se esperaria, harmoniosa deste ponto de vista, também o é do ponto de vista geométrico, o que serve para provar que não existe nenhuma insanável contradição entre estética e autoridade. A primeira linha de mesas, paralela ao balcão, é ocupada pelos oito auxiliares de escrita a quem compete atender o público. Atrás dela, igualmente centrada em relação ao eixo mediano que, partindo da porta, se perde lá ao fundo, nos confins escuros do edifício, há uma linha de quatro mesas. Estas pertencem aos o ficiais. A seguir a eles vêem-se os subchefes, e estes são dois. Finalmente, isolado, sozinho, como tinha de ser, o conservador, a quem chamam chefe no trato quotidiano.

A distribuição das tarefas pelo conjunto dos funcionários satisfaz uma regra simples, a de que os elementos de cada categoria têm o dever de executar todo o trabalho que lhes seja possível, de modo a que só uma mínima parte dele tenha de passar à categoria seguinte. Isto significa que os auxiliares de escrita são obrigados a trabalhar sem parar de manhã à noite, enquanto os oficiais o fazem de vez em quando, os subchefes só muito de longe em longe, o conservador quase nunca. A contínua agitação dos oito da frente, que tão depressa se sentam como se levantam, sempre às corridas da mesa para o balcão, do balcão para os ficheiros, dos ficheiros para o arquivo, repetindo sem descanso estas e outras sequências e combinações perante a indiferença dos superiores, tanto imediatos como afastados, é um factor indispensável para a compreensão de como foram possíveis e lamentavelmente fáceis de cometer os abusos, as irregularidades e as falsificações que constituem a matéria central deste relato.

José Saramago

Do seu livro Todos os nomes (1997)


O protagonista é um homem de meia idade, funcionário inferior do Arquivo do Registo Civil. Este funcionário cultiva a pequena mania de coleccionar notícias de jornais e revistas sobre gente célebre. Um dia reconhece a falta, nas suas colecções, de informações exactas sobre o nascimento (data, naturalidade, nome dos pais, etc.) dessas pessoas. Dedica-se portanto a copiar os respectivos dados das fichas que se encontram no arquivo. Casualmente, a ficha de uma pessoa comum (uma mulher) mistura-se com outras que estás copiando. O súbito contraste entre o que é conhecido e o que é desconhecido faz surgir nele a necessidade de conhecer a vida dessa mulher. Começa assim uma busca, a procura do outro.  (fundação José Saramago)


Sobre este romance: .Dos meus livros e literar.com.br.




quinta-feira, 7 de novembro de 2013

Escritor angolano Ondjaki recebe Prémio José Saramago por 'Os Transparentes'



– ainda me diz qual é a cor desse fogo…
o Cego falou em direção à mão do miúdo que lhe segurava o corpo pelo braço, os dois num medo de estarem quietos para não serem engolidos pelas enormes línguas de fogo que saíam do chão a perseguir o céu de Luanda
– se eu soubesse explicar a cor do fogo, mais-velho, eu era um poeta desses de falar poemas com voz hipnotizada o VendedorDeConchas acompanhava as tendências da temperatura e guiava o Cego por entre caminhos mais ou menos seguros onde a água jorrante dos canos rebentados fazia corredor para quem se atrevia a circular por entre a selva de labaredas que o vento açoitava
– te peço, vê você que tens vistas abertas, eu estou sentir na pele, mas quero ainda imaginar na cor desse fogo
o Cego parecia implorar numa voz habituada a dar mais ordens que carícias, o VendedorDeConchas sentiu que era falta de respeito não responder àquela dúvida tão concreta que pedia, numa voz de carinho, uma simples informação cromática,
embora difícil e talvez impossível o miúdo puxou de dentro de si umas lágrimas quentes que o levassem até à infância porque era aí, nesse reino desprevenido de pensamentos, que uma resposta florida poderia nascer, viva e fiel ao que via – não me deixe morrer sem saber a cor dessa luz quente
as labaredas gritavam com força e mesmo quem fosse cego de ver devia sentir uma sensação amarela de invocar memórias, peixe grelhado com feijão de óleo de palma, um sol quente de praia ao meio-dia, ou o dia em que o ácido da bateria lhe roubou a animação de ver o mundo
– mais-velho, estou a esperar um voz de criança para lhe dar uma resposta vista de perto ou de longe, a noite era uma trança em negrume e clausura, a pele de um bicho noturno pingando lama pelo corpo, havia estrelas em brilho tímido no céu, torpor de certa maresia e as conchas na areia a estalar um calor excessivo, corpos de pessoas em cremação involuntária e a cidade, sonâmbula, chorava sem que a lua a aconchegasse o Cego tremeu os lábios num sorriso triste
– não demora, candengue, a nossa vida está quase grelhada as nuvens longe, o sol ausente, as mães gritando pelos filhos e os filhos cegos não viram a luz fátua dessa cidade a transpirar sob o manto encarniçado, preparando- se para receber na pele uma profunda noite escura – como só o fogo pode ensinar as línguas e as labaredas do inferno distendido numa caminhada visceral de animal cansado, redondo e resoluto, fugindo ao caçador na vontade renovada de ir mais longe, de queimar mais, de causar mais ardor e, exausto, buscar a queima de corpos em perda de ritmia humana, harmonia respirada, mãos que acariciavam cabelos e crânios alegres numa cidade onde, durante séculos, o amor tinha descoberto, entre brumas de brutalidade um ou outro coração para habitar
– mais-velho, qual era mesmo a pergunta?
a cidade ensanguentada, desde as suas raízes ao alto dos prédios, era forçada a inclinar-se para a morte e as flechas anunciadoras do seu passamento não eram flechas secas mas dardos flamejantes que o seu corpo, em urros, acolhia em jeito de destino adivinhado e o velho repetiu a sua fala desesperada – me diz só a cor desse fogo...

Ondjaki


Excerto do romance Os Transparentes




“Este prémio não é meu, este prémio é de Angola”

Isabel Coutinho
05/11/2013 - 12:01


Prémio José Saramago atribuído ao escritor angolano Ondjaki pela obra Os Transparentes. O leitor confronta-se com uma crioulização radical da língua portuguesa, diz o júri.

À oitava edição, o Prémio Literário José Saramago foi para Ondjaki, escritor e poeta que nasceu em Luanda em 1977, autor do romance Os Transparentes, publicado pela Caminho em 2012 e que é um retrato de Angola.

O prémio foi esta terça-feira anunciado na sede da Fundação José Saramago, na Casa dos Bicos, em Lisboa. Numa cerimónia em que a poeta angolana Ana Paula Tavares, e um dos membros do júri, fez o elogio do autor e da obra distinguida por unanimidade.

"Este prémio não é meu, este prémio é de Angola." Foi assim que Ondjaki agradeceu o prémio, no valor de 25 mil euros. "Eu não ando sozinho, faço-me acompanhar dos materiais que me passaram os mais velhos. Na palavra 'cantil' guardo a utopia, para que durante a vida eu possa não morrer de sede."

A notícia continua no Público.



quarta-feira, 6 de novembro de 2013

Nuno Markl conta-nos uma história



Este vídeo inaugura una nova etiqueta no blogue Um Reino Maravilhoso: "Vídeos com histórias". Aí vão encontrar isso de que toda a gente gosta: ouvir histórias. Gostamos de ler, mas adoramos ouvir que alguém nos conte alguma coisa, e se dá para rir, muito melhor. É ou não é?

Antes podiam ser lidos neste blogue textos em português e, às vezes, podíamos ouvir poesia declamada. Agora, para além disso, vamos ouvir histórias. Contadores de histórias? Stand up Comedy? Bom, tanto faz. Português oral, ao vivo, pronto.

O primeiro convidado é Nuno Markl, que fala no True Tales 2012 - Tivoli BBVA.

Para quem não conhecer Nuno Markl, eis o que nos conta de si próprio:

Nasci em 1971, com uma quantidade insana de nomes - seis, para ser mais exacto: Nuno Frederico Correia da Silva Lobato Markl. Já fui jornalista sério, mas contrariado.

Em 1995 larguei isso e dediquei-me ao humor de forma profissional, trabalhando nas Produções Fictícias em programas como Herman Enciclopédia, Paraíso Filmes, O Programa da Maria ou Os Contemporâneos. Pelo meio criei O Homem Que Mordeu o Cão, na Rádio Comercial, e isso tornou-se um fenómeno tão avassaladoramente gigante, que ainda não sei bem como é que aquilo aconteceu. Sei que deu origem a um punhado de livros e que, só à conta das vendas do primeiro, comprei uma casa gira.

Deixei a Comercial para perseguir novas aventuras radiofónicas noutro lugar e conheci lá a minha musa Ana, com quem tenho um filho que é a criação mais extraordinária da minha vida - melhor ainda do que o sketch Pai Natal Vs Menino Jesus, do Herman Enciclopédia!

Regressei à Comercial para fazer A Caderneta de Cromos, a rubrica que me faltava fazer e que eu gostaria que alguém tivesse feito antes para eu ouvir, mas como ninguém fez, faço-a eu. Estreei-me no cinema como actor (!) em A Bela e o Paparazzo, do grande António-Pedro Vasconcelos. Deve estar para aí em DVD. Vejam, que é um filme de amor. E o amor é bonito.

(Rádio Comercial)


E aqui, o blogue dele: Há vida em Markl.



terça-feira, 5 de novembro de 2013

Crato diz que portugueses precisavam "trabalhar um ano sem comer" para pagar a dívida



Crato diz que portugueses precisavam "trabalhar um ano sem comer" para pagar a dívida

05 Novembro 2013, 00:26 por Lusa

O ministro da Educação afirmou que, para ser dispensada mais austeridade no Orçamento do Estado para 2014 e ainda pagar a dívida total do Estado, todos os portugueses teriam que "trabalhar um ano sem comer".


Numa sessão de esclarecimento sobre o próximo Orçamento, que decorreu esta segunda-feira em Ovar, Nuno Crato argumentou que o corte nas despesas do Estado não é suficiente para "pôr as contas [da Nação] em ordem" e que se impõem ainda alguns "sacrifícios que vão transformar Portugal num país competitivo".

"Teríamos de trabalhar mais de um ano sem comer, sem utilizar transportes, sem gastar absolutamente nada só para pagar a dívida", garantiu o ministro, sublinhando que não há forma de pôr a economia a crescer "sem se sair primeiro deste beco". Nuno Crato considerou, por isso, adequado um Orçamento do Estado que tem por base quatro pilares: consolidação orçamental, equidade, solidariedade e crescimento.

A nível social, o governante destacou a preocupante redução na natalidade, o que significa na sua opinião, a longo prazo mais prestações sociais do Estado para uma população em que há mais idosos do que trabalhadores activos.

Já a nível económico, realçou que o crescimento e o emprego não poderão obter-se, nesta fase, através da mera injecção de capital na estrutura produtiva do país e de um maior endividamento para esse efeito.

"Não se pense que o crescimento e o emprego se obtêm só à custa da injecção de dinheiro e pelo aumento da dívida", avisou Nuno Crato, considerando que "a pura injecção de dinheiro na economia provoca a distorção do sistema produtivo e não consegue, por si só, criar crescimento".

Atrair investimento para o país é uma das soluções recomendadas, mas também nesse contexto, o ministro declarou que o futuro passa pela reforma do IRC, a redução da taxa do IVA e a agilização do sistema judicial.

"Estamos a apressar as acções executivas nos tribunais de primeira instância porque uma das condições que os investidores impõem [para apostarem em Portugal] é que os tribunais funcionem bem", explicou Nuno Crato.

A taxa de desemprego, que tem vindo a diminuir gradualmente ao longo de 2013, e o aumento das exportações, evidente nas últimas avaliações económicas, constituem alguns dos outros aspectos em que o ministro sustentou o seu optimismo. "Em vez de termos entrado numa espiral recessiva, como dizem os mais pessimistas, Portugal entrou na espiral responsável, aumentando a sua competitividade externa", concluiu.




domingo, 3 de novembro de 2013

brincávamos a cair nos braços um do outro (valter hugo mãe)

valter hugo mãe


brincávamos a cair nos braços um do outro

brincávamos a cair nos
braços um do outro, como faziam
as actrizes nos filmes com o marlon
brando, e depois suspirávamos e ríamos
sem saber que habituávamos o coração à
dor. queríamos o amor um pelo outro
sem hesitações, como se a desgraça nos
servisse bem e, a ver filmes, achávamos que
o peito era todo em movimento e não
sabíamos que a vida podia parar um
dia. eu ainda te disse que me doíam os
braços e que, mesmo sendo o rapaz, o
cansaço chegava e instalava-se no meu
poço de medo. tu rias e caías uma e outra
vez à espera de acreditares apenas no que
fosse mais imediato, quando os filmes acabavam,
quando percebíamos que o mundo era
feito de distância e tanto tempo vazio, tu
ficavas muito feminina e abandonada e eu
sofria mais ainda com isso. estavas tão
diferente de mim como se já tivesses
partido e eu fosse apenas um local esquecido
sem significado maior no teu caminho. tu
dizias que se morrêssemos juntos
entraríamos juntos no paraíso e querias
culpar-me por ser triste de outro modo, um
modo mais perene, lento, covarde. Eu
amava-te e julgava bem que amar era
afeiçoar o corpo ao perigo. caía eu
nos teus braços, fazias um
bigode no teu rosto como se fosses o
marlon brando. eu, que te descobria como se
descobrem fantasias no inferno, não
queria ser beijado pelo marlon brando e
entrava numa combustão modesta que, às
batidas do meu coração, iluminava o meu
rosto como lâmpada falhando

a minha mãe dizia-me, valter tem cuidado, não
brinques assim, vais partir uma perna, vais
partir a cabeça, vais partir o
coração. e estava certa, foi tudo verdade

valter hugo mãe


valter hugo mãe é o nome artístico do escritor Valter Hugo Lemos (Henrique de Carvalho, Angola, 25 de Setembro de 1971). Além de escritor é editor, artista plástico e cantor português .



Escritor português Valter Hugo Mãe participa em festival de poesia no Egito
Da Redação - 02/11/2013 15:00

Com o apoio do Instituto Camões, Valter Hugo Mãe estará na próxima semana no festival de poesia Kalam Lelshabab, que decorrerá no Cairo. 

Lisboa - O escritor português Valter Hugo Mãe participa na próxima semana no Festival Internacional de Poesia Kalam Lelshabab, a decorrer entre 3 e 7 de novembro em diversos locais do Cairo, com o apoio do Camões, instituto estatal português orientado para a cooperação e promoção da língua portuguesa. 

O tema do festival são as diferentes linguagens da poesia, como os libretos e as letras de canções. Assim, serão apresentadas leituras, músicas e performances em diversas línguas, na Universidade Ain Shams – Faculdade Al Alsun, no Instituto Italiano de Cultura e nos centros culturais egípcios Wekalat Al-Sultan Al-Ghoury, Sama Khana e Darb 1718. (...)

Continua em Portugal Digital




sexta-feira, 1 de novembro de 2013

A pressão dos mortos (Ruy Belo)



A PRESSÃO DOS MORTOS

Fechas a mala do carro cheia de bagagem. E de súbito apercebes-te de que não é novo o gesto. Muitas vezes o viste já repetir. A muitas horas do dia, mas nunca como num fim de tarde. Qualquer que fosse a paisagem, a mesma paisagem: a terra calcinada, o canto das cigarras, o ar espesso do vapor a provocar a rarefacção das coisas vistas e a dar-lhes um ar de miragem. Fecha-se o tampo do caixão sobre a cara conhecida para todo o sempre. Nem se levanta o problema da eternidade. Esta terra é que tu amaste com todas a contrariedades e os problemas quotidianos. Amaste homens que por vezes talvez te tenham dado na cara e eram deliciosamente imperfeitos como tu. E tiveste de te despedir deles. Já não eram daqui. Já tinham problemas de mortos. Já se falava deles no imperfeito e não no presente. Mudou um simples tempo de verbo e tudo mudou. Um último olhar a essa caixa de mau gosto. Gostarias de atirar um torrão, como em criança, para esconjurar os maus sonhos. Mas falta-te a inocência. Decisivamente, tens de fechar com força a mala do carro. E pedes que te ponham os pneus à pressão 22. A pressão dos mortos.

Ruy Belo


Do seu livro Homem de palavra[s] (1970)




quinta-feira, 31 de outubro de 2013

Dia D de Drummond: Necrológio dos desiludos do amor



Participação da atriz Fernanda Torres no vídeo do Instituto Moreira Salles em homenagem a Carlos Drummond de Andrade.

Há varios anos que no Brasil recordam neste dia Drummond de Andrade, por ele ter nascido no dia 31 de outubro de 1902, é o Dia D, o Dia Drummond.


NECROLÓGIO DOS DESILUDIDOS DO AMOR

Os desiludidos do amor
estão desfechando tiros no peito.
Do meu quarto ouço a fuzilaria.
As amadas torcem-se de gozo.
Oh quanta matéria para os jornais.

Desiludidos mas fotografados,
escreveram cartas explicativas,
tomaram todas as providências
para o remorso das amadas.

Pum pum pum adeus, enjoada.
Eu vou, tu ficas, mas nos veremos
seja no claro céu ou turvo inferno.

Os médicos estão fazendo a autópsia
dos desiludidos que se mataram.
Que grandes corações eles possuíam.
Vísceras imensas, tripas sentimentais
e um estômago cheio de poesia...

Agora vamos para o cemitério
levar os corpos dos desiludidos
encaixotados competentemente
(paixões de primeira e de segunda classe).

Os desiludidos seguem iludidos,
sem coração, sem tripas, sem amor.
Única fortuna, os seus dentes de ouro
não servirão de lastro financeiro
e cobertos de terra perderão o brilho
enquanto as amadas dançarão um samba
bravo, violento, sobre a tumba deles.


Do livro Brejo das almas, Belo Horizonte, 1934.



segunda-feira, 28 de outubro de 2013

O Passageiro Clandestino (José Rodrigues Miguéis)



O passageiro tinha subido, já noite fechada, das entranhas da carvoeira, para se esconder numa clarabóia do convés, sob a qual havia espaço suficiente para um homem se deitar, como num esquife. (Já ali tinham viajado outros, durante dias e até semanas, e um deles, por sinal, apanhado pela dura invernia do Norte – os cordames eram estendais de gelo! – com as roupinhas leves em que vinha do Brasil, ficara tolhido para o resto dos seus dias.) Não comia desde que, manhã cedo, lhe tinham levado o café amargoso e a bucha de pão; a fome roía-o, e, depois do calor abafante das caldeiras, o frio húmido da noite inteiriçou-o. Ali encaixado, ouviu vozes de comando, risos, passos de homens que desciam a prancha, os ecos de ferro do navio despejado. Esperou que, tudo sossegado, o viessem pôr em liberdade. Mas o tempo corria, naquela imobilidade, e a impaciência dele cresceu: Que raio esperavam eles para o tirar da toca? Iriam esquecê-lo, deixá-lo a bordo sozinho, metido naquela urna, a morrer de fome e frio?... Haveria dificuldades imprevistas ao seu desembarque?... A noite avançava com um vagar exasperante, e ele tinha pressa. Apertava ao corpo, para se aquecer, o saco onde encerrava os parcos haveres. Tinha entrevisto na noite, ao chegar ali, os perfis dos barracões do porto, mais longe fábricas, prédios, o clarão mortiço da cidade. Estava na América, a dois passos do trabalho e do pão, a um salto do seu destino. E o coração batia-lhe de anseio. Já tinha regularizado contas com os marujos que o tinham posto a bordo, escondido e alimentado. Se havia mais alguém por trás deles, isso não era da sua conta. Restava-lhe algumas dolas no fundo de um bolso das calças. Junto delas, retinha na palma da mão suada um papel puído, com um endereço, esse ponto perdido na imensidade da América desconhecida: Patchogue ou coisa assim, para lá de Nova Iorque, em Long Island, a quantas léguas seria aquilo de Baltimore, e quanto teria ele de palmilhar às cegas, para alcançar o seu destino?! (Se lá chegasse...) E uma data de números, de portas e ruas, isso ele não entendia, não entendia nada, não sabia patavina de inglês, só sabia que estava ali à espera que dispusessem dele, para começar vida nova, ou então... Sozinho, diante do desconhecido. Não conhecia ninguém, nesta terra envolta em noite e humidade. Inquietava-o pensar em tudo isso, ali imóvel, impotente, com o coração do tamanho dum feijão a zumbir-lhe no peito apertado.

Sonhava com a América havia muitos anos. Vinha em busca dela como, quatrocentos anos antes, e mais, os seus antepassados (isto é um modo de falar) tinham andado em demanda da Terra Firme, do El Dorado e do Xipango. Esses porém eram felizes, não precisavam de passaporte, o mundo era então um mistério aberto à curiosidade e ambição de todos! Ele viajava escondido, embora não buscasse oiro nem prata nem pimenta. Tinha dois braços, sabia pegar numa enxada ou picareta, queria trabalhar. E se o oiro não andava agora a pontapés, quem caminhasse de olhos no chão ainda podia topar aqui e ali com algum penny perdido – assim tinha ouvido dizer a um trangalhadanças dum alemão que da América voltara com dois patacos, e ele conhecera algures. A lenda do Novo Mundo ainda não tinha morrido no coração, ou seria no estômago?, dos homens. Para alcançá-lo, tomara pelo caminho mais curto, que é quase sempre o mais arriscado: a clandestinidade. Assim viera meter-se a bordo deste cargueiro de má - morte, um calhambeque a desfazer-se em ferrugem, asmático e claudicante.


José Rodrigues Miguéis, «O Passageiro Clandestino», do livro de contos Gente da Terceira Classe, 4.ª ed., Lisboa, Editorial Estampa, 1984 (1ª ed., 1962) (*)


José Rodrigues Miguéis (1901-1980) em Vidas Lusófonas.


José Rodrigues Miguéis, por Teresa Martins Marques, em Figuras da cultura portuguesa (Camões. Instituto da Cooperação e da Língua)




sexta-feira, 25 de outubro de 2013

meu coração vagabundo (Marta Lança)

Dibujo retardado como la despedida que tengo pendiente - Erika Kuhn


meu coração vagabundo

Contrai-se ritmicamente para obrigar o sangue a percorrer o corpo. Lá está ele em forma de cone, com a sua dimensão de um punho cerrado, escondido no tórax, por trás do esterno, acima do diafragma e entre os dois pulmões, a garantir-me que a vida aconteça. 

Marta Lança


Do seu blogue A vida escrita



segunda-feira, 21 de outubro de 2013

Uma reportagem do diário 'Público'

Um manifestante em Lisboa apela à demissão do Governo - Foto de Daniel Rocha


Aqui lemos o início de uma reportagem publicada ontem, dia 19 de outubro, no diário Público.  Para termos uma ideia de como é que estão as coisas no vizinho País.


No meio da chuva, ficou marcado novo encontro
para o dia do Orçamento

Paulo Moura

19/10/2013 - 23:11

Em Alcântara, tudo parecia conspirar contra a manifestação. O tempo, o local, os constrangimentos dos autocarros a desfilar na ponte. Talvez por isso, poucos jovens compareceram.

Quando Arménio Carlos subiu ao palco, começou a chover. Quando exigiu a demissão do Governo, o envio, pelo Presidente da República, do Orçamento de Estado para o Tribunal Constitucional, e apelou a uma manifestação de protesto em frente à Assembleia da República, no dia 1 de Novembro, quando vai ser votado na generalidade o Orçamento, as pessoas tentavam abrigar-se.

Sem grande resultado. Alcântara não é a Avenida da Liberdade. Não há resguardo nem espaço. E como o dia começara soalheiro, poucos trouxeram impermeáveis. Acreditaram na promessa de um dia radioso. Fiaram-se no milagre. Mas parecia que a traição vinha de todo o lado, que tudo conspirava contra a manifestação. A sensação dominante era o desconforto. Um estado de espírito de abstracção, de adiamento. O pressentimento de que o dia não era propício, a conjuntura não era favorável, o ânimo não era suficientemente forte. Tanto no palco como entre a assistência, falou-se menos do momento presente do que das lutas futuras: a manifestação de dia 1 de Novembro, a greve da Função Pública de dia 8.

“Esta manifestação deveria marcar o início de uma nova atitude dos portugueses”, disse João Figueira, 27 anos, licenciado em Relações Internacionais, desempregado. “Uma nova fase, em que vir para a rua significa reivindicar com meios mais eficazes, para forçar a mudança de políticas, fazer as coisas acontecerem”.

(Reportagem completa no diário Público)


Muitos reformados marcaram presença em Alcântara - Foto de Miguel Manso



sábado, 19 de outubro de 2013

Poética I (Vinícius de Moraes)



Hoje há cem anos que nasceu no Rio de Janeiro o poeta Vinícius de Moraes.


POÉTICA I
 
De manhã escureço
De dia tardo
De tarde anoiteço
De noite ardo.

A oeste a morte
Contra quem vivo
Do sul cativo
O este é meu norte.

Outros que contem
Passo por passo:
Eu morro ontem

Nasço amanhã
Ando onde há espaço:
- Meu tempo é quando.

Vinicius de Moraes

Nova York, 1950.


Vinicius de Moraes - Poesia



segunda-feira, 14 de outubro de 2013

Ernesto Melo Antunes (António Lobo Antunes)

Ernesto Melo Antunes


Ernesto Melo Antunes

Os amigos não morrem: andam por aí, entram por nós dentro quando menos se espera e então tudo muda: desarrumam o passado, desarrumam o presente, instalam-se com um sorriso num canto nosso e é como se nunca tivessem partido. É como, não: nunca partiram. E assim o Ernesto e eu voltamos a estar juntos em Santa Margarida, em África, em Lisboa, em Sintra, torna a emprestar-me a chave do apartamento em Paris, na rua Saint Dominique, no qual me enfiava umas temporadas a escrever e a fazer maldades, invejoso da estante cheia de livros da Pleiade e passeando sob os castanheiros dos Inválidos durante o verão indiano. De modo que eis-nos juntos outra vez, entre silêncios, aberturas indianas do rei e longas conversas em que ele falava muito mais do que eu, àcerca de literatura, filosofia, política. Ou seja eu falava pouco
(sempre falei pouco)
não discuto nunca, quando não estou de acordo calo-me. Se estou de acordo calo-me também. Admirava-lhe a coragem, a profunda rectidão, a honestidade. As suas ideias mantiveram-se as mesmas desde a guerra, numa fidelidade de princípios que me agradava, eu que não tenho ideias, tenho iluminações, não racionalizo, encontro. As nossas diferenças uniam-nos. Ele queria mudar a sociedade; eu, mais modesto, apenas queria mudar o mundo. Com uma caneta. E depois, ainda que não o confessássemos, vivíamos ambos mortalmente feridos de compaixão e ternura, muito bem disfarçadas, claro. Achávamos nós que muito bem disfarçadas. Já doente, por exemplo, preocupava-se imenso com uma operaçãozita de cacaracá que me tinham feito à língua. A delicadeza da sua solicitude era sempre elegante. Isto também admirava nele: a elegância, o pudor, a paixão da amizade, não mencionando o facto de ter sido sempre implacável com a ausência de carácter, a mentira, a cobardia. Um homem profundamente bondoso e, em boa parte por culpa sua, frequentemente mal entendido. Não vou, por respeito ao seu pudor, mencionar coisas íntimas, olha, vou mencionar uma, possuía uma grande capacidade de tolerância e um genuíno amor aos homens que a postura severa e a austeridade dos seus modos ocultavam. O Ernesto foi sempre uma pessoa justa eu que lia a palavra desde menino, justo, e só a compreendi totalmente à medida que o fui conhecendo. Postura severa: desfez-se inteira uma tarde, ao propor-me
- Vamos a Tavira?
e, após uma longa pausa
- Fui feliz lá, na infância.
E fomos a Tavira, ele, eu e o menino que de repente saltou do Ernesto e nos passeou na cidade no entusiasmo das lágrimas contentes, com o Ernesto a tentar calá-lo numa pressa envergonhada
- Desculpa
embora quanto mais o camuflasse maior ele aumentava de tamanho, quanto mais o cegasse no interior dos óculos mais ele via, o Ernesto
- Desculpa
aflito com a criança que morava nele, aliviando um pouco a dor de profundas raízes de um homem atormentado pelos seus demónios secretos. Diziam-no esquivo e fechado: sempre achei o contrário. Bastava olhar. O doutor João das Regras dirigindo-se ao povo de Lisboa:
- Olhai, olhai bem mas vêde.
Isto no génio de Fernão Lopes, claro. Bastava ver. Eu para o Ernesto
- Tavira é mais bonito que Paris, não é?
e o cigarro a responder por ele
- É.
E é de facto: onde nos sentimos felizes é a nossa terra natal. E notei então que para aquele sujeito, ao contrário do que sucede à maior parte das criaturas, o amor era mais do que prazeres breves e localizados. Trinta anos de amizade sem uma única mancha. Ao contrário também do que muitos supõem o Ernesto não era um civil fardado: era profundamente militar no sentido em que o meu avô o foi até à morte e se orgulhava disso: no sentido da servidão, da camaradagem e do orgulho. Sempre me irritou ouvir falar mal da tropa: a melhor recompensa que recebi na vida consiste no amor dos meus soldados, na estima dos oficiais com quem privei. Em Angola, o Melo Antunes era adorado e respeitado. Pela sua autoridade natural, pela sua alma generosa e, perdoem-me a má criação, pelos seus colhões. Ao chegarmos ao Ninda, um lugar horrível, preveniu-me
- Pendura a pila na arrecadação mas guarda os colhões
Espero tê-los guardado, não estou certo, mas ele conservou os seus. Escutei diversas vezes
- O nosso capitão tem-nos no sítio
e toda a vida os teve no sítio. Na doença, cujo fim ele sabia, nenhuma queixa, nenhum lamento, nenhuma revolta: sofreu imenso com uma dignidade absoluta. Acompanhou-me, já enfraquecidíssimo, ao enterro do meu muito querido José Cardoso Pires. Ao sairmos do cemitério um senhor importante perguntou-lhe
- Como vai, meu caro Melo Antunes?
e ele, que se amparava ao meu braço, largou-me, dilatou-se dois metros e respondeu num sorriso
- De vento em popa.
Um único comentário para mim, ao amparar-se de novo ao meu braço
- Venho de sepultar um amigo e pergunta-me como é que estou?
E assim fomos até ao automóvel: de vento em popa. Conforme eu, ao acabar este texto, sabendo que vou tornar a perdê-lo. Mas há-de existir por aí um braço e, tornando-se necessário, dilato-me dois metros. Não: dois metros dilatou-se o capitão. Dilato-me meio metro
- De vento em popa
porque sei que ele me há-de amparar.

António Lobo Antunes


Publicado na revista Visão (sexta feira, 23 de novembro de 2012)


Militar, pensador, estadista, Melo Antunes (1933-1999) é uma figura determinante da transição democrática portuguesa.


Melo Antunes no blogue duas ou três coisas