sexta-feira, 21 de dezembro de 2018

O Natal da Minha Mãe (João Miguel Fernandes Jorge)

Fotografia de Enric Vives Rubio (Público)


O NATAL DA MINHA MÃE

A abstracção não precisa de mãe nem pai
nem tão pouco de tão tolo infante

mas o natal de minha mãe é ainda o meu natal
com restos de Beira Alta

ano após ano via surgir figura nova nesse
presépio de vaca burro banda de música

ribeiro com patos farrapos de algodão muito
musgo percorrido por ovelhas e pastores

multidão de gente judaizante estremenha pela
mão de meu pai descendo de montes contando

moedas azenhas movendo água levada pela estrela
de Belém

um galo bate as asas um frade está de acordo
com a nossa circuncisão galinhas debicam milho

de mistura com um porco a que minha avó juntava
sempre um gato para dar sorte era preto

assim íamos todos naquela figuração animada
até ao dia de Reis aí estão

um de joelhos outro em pé
e o rei preto vinha sentado no

camelo. Era o mais bonito.
depois eram filhoses o acordar de prenda no

sapato tudo tão real como o abrir das lojas no dia
de feira

e eu ia ao Sanguinhal visitar a minha prima que
tinha um cavalo debaixo do quarto

subindo de vales descendo de montes
acompanhando a banda do carvalhal com ferrinhos

e roucas trompas o meu Natal é ainda o Natal de
minha mãe com uns restos de canela e Beira Alta.

João Miguel Fernandes Jorge


Actus Tragicus (1979)





quarta-feira, 19 de dezembro de 2018

Natal... Na província neva (Fernando Pessoa e Luís Filipe Castro Mendes)

Fotografia de Nuno Martins



Natal... Na província neva.
Nos lares aconchegados,
Um sentimento conserva
Os sentimentos passados.

Coração oposto ao mundo,
Como a família é verdade!
Meu pensamento é profundo,
Estou só e sonho saudade.

E como é branca de graça
A paisagem que não sei,
Vista de trás da vidraça
Do lar que nunca terei!

Fernando Pessoa


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Natal… Na Província Neva

Recordação de neve na cidade:
às vezes os meus dedos procuravam
um conforto de infância ameaçada.

Nos bolsos esgarçados o cotão,
os restos de ternura nunca dada:
sempre se me fez longe o coração.

E o consolo perfeito, sem idade,
das coisas que há por dentro da lembrança;
recordação de neve na cidade:
foi antes do terror, da esperança.

Seja sempre quem sou esta distância
que muda em mim as coisas conseguidas
em dedos que procuram da infância
cotão, ternura, restos de outras vidas.

Luís Filipe Castro Mendes


Luís Filipe Carrilho de Castro Mendes (1950) é um diplomata, escritor, poeta, ficcionista e político português. Foi ministro da Cultura do XXI Governo Constitucional de Portugal de abril de 2016 a outubro de 2018.



segunda-feira, 17 de dezembro de 2018

Manifesto pelo direito de não gostar do natal (Ruth Manus)



Manifesto pelo direito de não gostar do natal

O natal acabou por virar uma data muito mais de organização e de planejamento do que de afeto. Sim, é bom estar com a família. Mas prefiro fazer isso num domingo normal, sem prazos nem presentes. 


Já ouvi gente dizer que não gosta de cerveja. Ouvi outros dizerem que não gostam de conviver com crianças. Ou que não gostam de praia. De Game of Thrones. De Carlos Drummond de Andrade. De bacon.

Para mim, qualquer uma dessas pessoas não está no seu juízo perfeito. Não acho minimamente normal alguém não gostar dessas maravilhas. Mas quando as ouvi dizer essas aberrações, o máximo que fiz foi dizer “Jura? Tem certeza? Que coisa.”. Não as condenei, nem passei horas tentando lhes dizer que eles estavam errados. Aliás, eu detesto esse tipo de persuasão.

Mas parece haver uma frase proibida, uma frase terrível, que jamais deve ser dita por qualquer ser humano: “eu não gosto de natal”. Dizer que não gosta de natal soa como dizer que não gosta da própria família, que não gosta de comida boa, que não gosta de ganhar presentes ou que não gosta de Jesus Cristo. Nada poderia ser mais terrível do que isso.

Na verdade, uma coisa não tem nada a ver com outra. Eu sou maluca de amores pela minha família. Adoro comida boa e presentes. Tenho um baita respeito pela história de Jesus. Mas eu detesto o natal. Simples assim. Poderia ser diferente, se o natal fosse realmente como deveria ser. Mas do jeito que é, eu simplesmente não consigo gostar dessa data.

Tudo começa com essa dinâmica doentia dos presentes. Como eu mencionei no ano passado, acho que nada pode ser mais antagônico com a memória de Jesus Cristo do que os shopping centers lotados, as brigas por vagas de estacionamentos, as crianças fazendo longas listas de presentes, a insanidade das compras e o tormento dos pacotes. Nada disso faz qualquer sentido.

Soma-se a isso o tormento da logística. Começam conversas entre os casais que são do tipo “passamos o 24 com a sua família e os 25 com a minha-? mas ano passada não foi o 25 com a sua?- temos que trocar esse ano?- sim, porque meu irmão vai vir de Macau- mas ele vai passar o 24 com a família da sogra dele ou com a sua?- não sei, preciso ver- ok, mas e se levássemos seus pais na festa da minha família?- mas o que eu faço com a minha irmã?- fala para ela ir- com as crianças? eles são 6- verdade, não cabe- então?- e agora?- não sei- não sei”.

Tudo é coroado pelos excessos. Excesso de comida, excesso de programas, excesso de gente, excesso de trânsito, excesso de embalagens, excesso de músicas natalinas. O natal deveria ser algo simples, por uma questão de lógica e não essa insanidade da fartura generalizada.

O natal acabou por virar uma data muito mais de organização e de planejamento do que de afeto. Sim, é bom estar com a família. Mas prefiro fazer isso num domingo normal, sem prazos nem presentes, do que nessa estrutura caótica. Honestamente, não consigo gostar desse natal. Gosto das pessoas, não gosto da dinâmica.

No fim das contas, acho que tem muita gente que acaba fazendo uma certa contagem regressiva para que janeiro chegue logo e que tudo isso já tenha passado. Desculpem o mau jeito, mas eu não gosto do natal. Pelo menos não desse natal. E, no fundo, acho que muita gente que pensa da mesma forma. Só que não fica bem dizer isso, né? Paciência. Agora, já disse. Feliz natal a todos.

Ruth Manus 


Publicado em Observador (23-12-2017)




sexta-feira, 14 de dezembro de 2018

Um canto caipira

Fotografia de Fabiano Caetano



Eu vou, eu vou
lá pra onde a lua vai,
só que a lua vai e vorta,
eu vou e não vorto mais!






Nota. Caipira é um termo de origem tupi que designa, desde os tempos coloniais brasileiros, os moradores da roça. A designação alcançou, sobretudo, populações da antiga capitania de São Vicente (posteriormente capitania de São Paulo) que hoje são os estados de Santa Catarina, Paraná, São Paulo, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, Goiás, Mato Grosso, Tocantins e Rondônia. O termo "caipira", no entanto, costuma ser utilizado com mais frequência para se referir à população do interior dos estados de São Paulo, Paraná, Mato Grosso do Sul, Goiás e Minas Gerais. Corresponde, em Minas Gerais, ao capiau (palavra que também significa "cortador de mato"), na região Nordeste, matuto, e na região Norte (Pará) caboco (termo derivado da palavra caboclo, mas que perdeu seu sentido original).



"Lá no Faial me dão cartas..."

Ponta da Espalamanca - Ilha do Faial, Açores
(Fotografia de Paulo H. Silva)



Lá no Faial me dão cartas,
no Pico me dão amores.
Adeus Faial da minha alma,
meu ramalhete de flores.

Poesia popular in Património Popular Português (recolha de Helder Pacheco)




segunda-feira, 10 de dezembro de 2018

Medo da Eternidade (Clarice Lispector)

Fotografia de Nicole Novak




Medo da Eternidade

Jamais esquecerei o meu aflitivo e dramático contato com a eternidade.

Quando eu era muito pequena ainda não tinha provado chicles e mesmo em Recife falava-se pouco deles. Eu nem sabia bem de que espécie de bala ou bombom se tratava. Mesmo o dinheiro que eu tinha não dava para comprar: com o mesmo dinheiro eu lucraria não sei quantas balas.

Afinal minha irmã juntou dinheiro, comprou e ao sairmos de casa para a escola me explicou:

- Como não acaba? - Parei um instante na rua, perplexa.

- Não acaba nunca, e pronto.

Eu estava boba: parecia-me ter sido transportada para o reino de histórias de príncipes e fadas. Peguei a pequena pastilha cor-de-rosa que representava o elixir do longo prazer. Examinei-a, quase não podia acreditar no milagre. Eu que, como outras crianças, às vezes tirava da boca uma bala ainda inteira, para chupar depois, só para fazê-la durar mais. E eis-me com aquela coisa cor-de-rosa, de aparência tão inocente, tornando possível o mundo impossível do qual já começara a me dar conta.

Com delicadeza, terminei afinal pondo o chicle na boca.

- E agora que é que eu faço? - Perguntei para não errar no ritual que certamente deveira haver.

- Agora chupe o chicle para ir gostando do docinho dele, e só depois que passar o gosto você começa a mastigar. E aí mastiga a vida inteira. A menos que você perca, eu já perdi vários.

- Perder a eternidade? Nunca.

O adocicado do chicle era bonzinho, não podia dizer que era ótimo. E, ainda perplexa, encaminhávamo-nos para a escola.

- Acabou-se o docinho. E agora?

- Agora mastigue para sempre.

Assustei-me, não saberia dizer por quê. Comecei a mastigar e em breve tinha na boca aquele puxa-puxa cinzento de borracha que não tinha gosto de nada. Mastigava, mastigava. Mas me sentia contrafeita. Na verdade eu não estava gostando do gosto. E a vantagem de ser bala eterna me enchia de uma espécie de medo, como se tem diante da idéia de eternidade ou de infinito.

Eu não quis confessar que não estava à altura da eternidade. Que só me dava aflição. Enquanto isso, eu mastigava obedientemente, sem parar.

Até que não suportei mais, e, atravessando o portão da escola, dei um jeito de o chicle mastigado cair no chão de areia.

- Olha só o que me aconteceu! - Disse eu em fingidos espanto e tristeza. - Agora não posso mastigar mais! A bala acabou!

- Já lhe disse - repetiu minha irmã - que ela não acaba nunca. Mas a gente às vezes perde. Até de noite a gente pode ir mastigando, mas para não engolir no sono a gente prega o chicle na cama. Não fique triste, um dia lhe dou outro, e esse você não perderá.

Eu estava envergonhada diante da bondade de minha irmã, envergonhada da mentira que pregara dizendo que o chicle caíra na boca por acaso.

Mas aliviada. Sem o peso da eternidade sobre mim.

Clarice Lispector 
 
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Medo da Eternidade é uma crônica escrita por Clarice Lispector, e pode-se dizer que é uma reflexão a respeito de um dos maiores medos humanos, que é a morte, a eternidade. Muitas pessoas não gostam de conversar a respeito ou sentem medo por não saberem ao certo o que lhes espera após esta vida. Clarice faz com que o leitor reflita a respeito da eternidade, algo incompreensível para a mentalidade finita do ser humano.

A crônica trata a eternidade de uma maneira bem simples, talvez até simplória, comparando-a a um “chicle”, uma bala que, segundo a história, não acaba nunca. O encanto da história se dá no fato de que é contada sob o olhar de uma criança, que descreve seus pensamentos e sentimentos ao experimentar aquele chicle que não acaba nunca. A inocência e pequenez da criança diante de um mistério tão grande como este é uma alusão à pequenez e ingenuidade do ser humano diante do mistério da eternidade, incompreensível a mentes tão limitadas.

A menina é apresentada ao tal “chicle” pela sua irmã, que lhe presenteia com um e lhe dá as instruções de como ela deve proceder, tomando cuidado para não perdê-lo, pois seria a única forma de não permanecer com ele eternamente. Primeiramente a menina se assusta com tal engenhosidade, envolvida pela ideia de uma bala que duraria para sempre. Ao mastigá-la, porém, a criança se sente desconfortável, nervosa, e faz uma reflexão altamente adulta dizendo que não é capaz de suportar o peso da eternidade, e que não está à altura da eternidade. Para resolver o problema, a menina finge que deixou cair o chicle no chão sem querer, e após dar as explicações à sua irmã, se sente aliviada por não ter mais que carregar o peso da eternidade consigo.

Se trata de uma crônica típica, que utiliza uma situação cotidiana para abordar um tema reflexivo. Ao analisar a situação, o leitor é levado para dentro da mente da menina, vendo seu espanto e estranhamento diante de algo novo e desconhecido, e a partir daí compara a situação vivida por ela consigo mesmo. No início da história a personagem parece ser inocente, mas ao longo desta vai mudando, a ponto de, ao final, tomar a atitude de ignorar a eternidade, por se enxergar incapaz de lidar com ela. A crônica ressalta a fragilidade humana e leva à reflexão. A personagem tem profundidade psicológica que é revelada a partir dos pensamentos que são relatados na história.

A narração é contada em primeira pessoa (narrador-personagem), semelhante a um relato de memórias, já que a pessoa que viveu a história não é mais criança quando faz o relato. A visão é unilateral e subjetiva, limitando-se as percepções da personagem que conta a história. O tempo se dá com base no espaço que é o caminho entre a sua casa e a escola, porém a certo ponto da narrativa o tempo deixa de ser cronológico e passa a ser psicológico, pois a personagem se detém em descrever seus pensamentos e sentimentos.

Ana Paulo Araujo
(infoescola.com)



Clarice Lispector no doodle do Google




Clarice Lispector é homenageada por doodle do Google

Escritora completaria 98 anos nesta segunda-feira (10). Ilustração foi feita pela designer Mariana Valente, neta de Clarice.

Clarice Lispector é a homenageada do dia pelo doodle do Google. A escritora completaria 98 anos nesta segunda-feira (10). Para marcar a data, Clarice ganhou uma ilustração especial acima da caixa de buscas da ferramenta. Na imagem, o rosto de Clarice aparece entre livros e imagens que remetem tanto o Brasil, para onde migrou com a família aos dois anos de idade, quanto a Ucrânia, onde nasceu em 1920.

A ilustração foi feita pela designer Mariana Valente, neta de Clarice. Segundo ela, o processo de criação foi manual e começou com uma busca pelo acervo fotográfico da família.

“Digitalizei algumas imagens e texturas e tive a ideia de mostrar ela saindo com a família lá da Ucrânia e chegando ao Brasil, começando a trabalhar como jornalista, e depois se direcionando para o próprio trabalho de escrita”, contou.

Continua em Globo.

Fotografia de José Castello


Também em Globo:

Clarice Lispector: mais de 40 anos após morte, escritora desperta mais questões do que quando viva

Embora tenha recebido reconhecimento ainda em vida, a obra visceral da autora, segue pautando debates acadêmicos. Seria ela uma feminista? Um autora de olhar estrangeiro sobre o país? Talvez sim, mas ela recusaria qualquer rótulo.



O genocídio laboral de toda uma geração (Isabela Figueiredo)



O GENOCÍDIO LABORAL DE TODA UMA GERAÇÃO

A maior parte dos trabalhadores por conta própria ou de outrem, com carreiras bem sucedidas, e rendimento líquido satisfatório ou bom sonha com a idade da reforma. A reforma configura-se como uma época de ouro na qual poderemos ser livres e realizar os nossos sonhos de leitura, viagens, e fazer aquilo de que realmente gostamos.

E a pergunta impõe-se: passamos as décadas da nossa juventude e vida ativa fazendo aquilo de que não gostamos? Vivemos contrariados para conseguir viver com conforto? Resposta: na maior parte dos casos, sim! Há muito poucos capazes de escapar a esta sina: os que encaram a sua carreira como uma missão ou uma arte: artistas, naturalmente, e professores, médicos e outras profissões carregadas de oportunidades de altruísmo. Interessam-me particularmente os primeiros, por serem um exemplo evidente e reconhecido deste tipo de percurso. A Paula Rego continua a pintar, o Lobo Antunes a escrever, o Leonard Cohen e o Manuel de Oliveira caminharam até ao último suspiro. Os artistas param quando a doença os impede, o que me leva a pensar que não encaram o trabalho como trabalho. Ou seja, o trabalho não existe em oposição à vida. Ele e a vida formam uma amálgama que se funde e completa a cada momento. Para os artistas o lazer faz parte do processo de labor e o momento de trabalho, sendo seriíssimo, é vivido com o prazer do lazer. Uma reforma que correspondesse a uma retirada de atividade corresponderia, para eles, a uma anulação da sua vitalidade, pensamento e criatividade. Ser-lhes-ia insuportável.

Se compararmos o exemplo artístico de envolvimento entre labor e lazer com a nossa própria experiência percebemos que algo está errado com a forma como trabalhamos. Se desejamos que termine porque nos está a destruir, não trabalhamos de forma correta nem saudável. Provavelmente o que está mais profundamente errado no sistema laboral tradicional prende-se com a exigência de elevadíssima produtividade. Esta não é amiga da perfeição porque não respeita o amadurecimento das ideias nem o resultado do processo laboral. Precisamos de trabalhar mais lentamente, com menos pressão, para que o trabalho não nos transforme numa bigorna do mercado.

No outro dia li na Imprensa que dos jovens trabalhadores recentemente entrados para o mercado de trabalho se exige que sejam capazes de trabalhar sob grande pressão, argumentado que esse tipo de exercício desenvolve as capacidades de raciocínio. Esbocei um sorriso cínico e doído. As organizações económicas e sociais sabem produzir os discursos que melhor servem os seus objetivos. Os discursos funcionam porque as ideias muito repetidas tornam-se verdades para quem ouve, sem tempo para pensar nas consequências, quanto mais nas origens, mas uma verdade-falsa nunca passará de uma mentira, por vezes de um crime de genocídio de toda uma geração.

Isabela Figueiredo


Publicado no seu blogue Novo Mundo (29 de março de 2017)




quarta-feira, 5 de dezembro de 2018

"Há o risco de se perder a língua portuguesa em Cabo Verde" (Germano Almeida)




"Há o risco de se perder a língua portuguesa em Cabo Verde"

"Eu quero contribuir para as pessoas tomarem consciência que a lingua portuguesa é tanto vossa como nossa. Temos de assumir como património nosso que temos de valorizar e de vender".

Germano Almeida, escritor cabo-verdiano galardoado com o Prémio Camões este ano, cresceu numa casa onde o pai falava em português e a mãe falava crioulo. Mas não encontra essa facilidade de expressão nas duas línguas, que sempre teve na sua família, no seu país natal."A sociedade cabo Verdiana decorre em crioulo". O escritor esperava que o surto do crioulo abrandasse após a independência mas tal não aconteceu. Por isso diz que a língua portuguesa está em risco em Cabo Verde mas que há consciência do perigo. "O português já está a ser ensinado nas escolas como língua segunda".

Sobre o seu último livro "O Fiel Defunto", mais uma história contada com humor em torno dos costumes das ilhas, o personagem do escritor que é assassinado, Miguel Lopes Macieira, é inspirado nele próprio. "Pensei em mim próprio, se não brinco comigo não tenho o direito de brincar com os outros".

Como foi celebrado o prémio Camões em Cabo Verde, nas ilhas, como foi a festa?

Muito bem, eu próprio fiquei admirado com a maneira como as pessoas em geral receberam o prémio. Porque nós cabo-verdianos temos essa mania: tudo o que de bom acontece a um cabo-verdiano acontece a Cabo Verde. As pessoas fartaram-se de cumprimentar dizendo: "o dinheiro pode ser para ti mas o prémio é nosso".

É muito lido em Cabo Verde, também pelos jovens ou é mais lido fora de Cabo Verde?

Sou bastante lido em Cabo Verde também e nem sempre tão vendido como sou lido porque em Cabo Verde há muito a tradição de troca de livros, empréstimos, alguém compra um livro, acaba de ler, empresta a outra pessoa e o livro vai passando d mão em mão e às vezes esquece-se de quem é o livro. O livro tem valor em si mas não tem, digamos, um valor económico. Eu vejo isto pela quantidade de jovens que falam comigo mas acho interessante que quando me perguntam:"Você é Germano Almeida?"Sou". "Ah, pensei que fosse morto". Mas porquê,? claro que estão a falar em crioulo e eu estou a traduzir em português. "Eu estudei no liceu e li os seus livros na escola. Pensavam que eu era colega do Baltasar [Lopes da Silva], do Aurélio Gonçalves e companhia, que são os doutores que eles estudam no liceu.

E eles quando falam consigo, os jovens, as pessoas das ilhas, falam sobretudo em crioulo?

A língua, a vida em Cabo Verde decorre em crioulo

Está-se a perder a língua portuguesa ou não há esse risco?

Há. Antes da independência era praticamente proibido falar crioulo. No liceu não se podia falar crioulo e mesmo na vida comum desencorajava-se. Bem, com a independência houve um surto de crioulo, todo o mundo já falava crioulo. Eu sinceramente esperava que abrandasse. Não, não abrandou, antes pelo contrário intensificou-se. Eu vejo pela minha filha que vai fazer agora 30 anos, cresceu numa casa onde se fala crioulo, tanto eu como a minha mulher falamos pouco crioulo, falamos crioulo obviamente, mas ela com a empregada e com os vizinhos fala sempre crioulo. E nós nunca tentamos impedir que falasse a língua que quisesse falar por uma razão muito simples: eu tenho a experiência pessoal da minha família. O facto de o meu pai falar sempre português e a minha mãe falar sempre o crioulo, nunca nos terem imposto falar uma ou outra língua, permitiu que desenvolvessemos livremente. Eu digo isto porque parentes meus que foram obrigados a falar português ficaram a odiar a língua. Mas há muitas famílias que nunca ouviram ou não estavam habituadas a ouvir falar o português. E Cabo Verde não é de facto uma sociedade bilingue.Nos últimos tempos, nos anos seguintes à independência, começou-se a sentir de facto essa fraqueza dos alunos cabo-verdianos em sair para ir estudar para o exterior, não dominando a língua em que tinham de estudar obtinham péssimos resultados. Isto durou alguns anos. Por exemplo, para nós, começámos a sentir que era uma vergonha nacional quando o Brasil começou a exigir, antes de aceitar dar bolsas, que os alunos prestassem uma prova de domínio da língua portuguesa., quer dizer, isto em Cabo Verde para nós é absurdo. Neste momento já se tomou consciência que é um risco grande que estávamos a correr e já se começou a ensinar o português como língua segunda, isto é, desde a escola as pessoas aprendem o português.

Como língua estrangeira?

Eu estou a dizer segunda porque quando defendi isto num artigo de jornal, a necessidade de ensinar o português como língua estrangeira, as pessoas caíram sobre mim: "Não é língua estrangeira que se diz". Eu quero lá saber, eu quero saber é que não é nossa, seja segunda ou estrangeira. Mas parece que a regra que se diz é língua segunda e não estrangeira. Eu penso que o que é necessário é efetivamente tomarmos consciência da importância que a língua portuguesa tem para nós. Não é saudosismo, é um instrumento de trabalho importantíssimo. Amílcar Cabral já dizia que a língua portuguesa foi a maior herança que os portugueses nos deixaram e é verdade. Uma vez numa entrevista aqui em Portugal permiti-me dizer "bom, com o crioulo não vamos longe". As pessoas caíram sobre mim, atacaram-me ferozmente. Quero contribuir para as pessoas tomarem consciência de que a língua portuguesa é tanto vossa como nossa.

Plataforma
(03.07.2018)
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Comentário de Raymond Halles, como resposta a esta entrevista em Plataforma:

 Ô môss! Um tá podê dzêb um c’zinha? Não entendo como é que a vida em Cabo Verde se processa em criolo e tenho grande dificuldade em acompanhar essa afirmação. O criolo na variante do sotavento é tão diferente da de barlavento e ainda se tem de contar com a variante de Santo Antão. Como é que é possível sequer pensar que se pode unificar estas variantes numa só? O Português era e de certa forma continua a ser a língua veicular do território. Aliás se antes da independência era a língua do Liceu (primeiro o Gil Eanes, de boa memória e mais tarde o Liceu da Praia) era porque no Mindelo se encontravam alunos desde Santo Antão à Brava e era necessário não só que estes alunos tivessem o mesmo grau de formação mas também que formassem entre si uma verdadeira comunidade escolar. Não por acaso muita literatura criola foi escrita em Português e que alguns dos seus criadores estiveram intimamente ligados ao Liceu, como o Baltazar Lopes da Silva ou o Roque Gonçalves, isto já para não fale nos Claridosos, Manuel Lopes, etc.

O Português não será assim língua estrangeira, como é óbvio, não é segunda língua, no sentido em que é uma lingua de menor uso, mas uma língua veicular, aquela que nos permite entender em todas as ilhas sem engulhos semânticos, gramaticais ou lexicais, e assim deveria continuar. Juntamente com a valorização das diferentes variantes do criolo, que a tentativa de normalização pelo criolo do sotovento está a matar e que ainda por cima é uma normalização destinada ao fracasso. Ainda há dias vindo da Baía das Gatas para o Mindelo o meu jovem condutor me dizia que por vezes trazendo pessoas de Santiago ou do Fogo utiliza o Português para melhor se entenderem do que cada um na sua variante do criolo. Penso que este facto é bem demonstrativo de que não foi a colonização que tornou o Português veicular (através do ensino e da administração) mas que a sua qualidade de língua veicular foi uma emergência derivada da necessidade de um entendimento comum. Mantenha!



segunda-feira, 3 de dezembro de 2018

Piropo (Miguel Esteves Cardoso)

Fotografia de Celeste Romero


PIROPO

A vida de qualquer rapaz deve ser ler, escrever e correr atrás das raparigas. Esta última parte é muito importante. Hoje em dia, porém, os rapazes de Portugal já não correm atrás das raparigas – andam com elas. A diferença entre «correr atrás» e «andar com» é, sobretudo, uma diferença de energia. Correr é galopar, esforçar, persistir, e é alegria, entusiasmo, vitalidade. Andar é arrastar, passo de caracol, pachorrice, sonolência. O amor não pode ser somente uma partida de golfe, em que dois jarretas caminham devagar em torno de alguns buraquinhos. Tem de ser, pelo menos, os 400 metros barreiras.

Os rapazes de hoje já não perguntam às raparigas se os anjos desceram à terra, ou que bem fizeram a Deus para lhes dar uns olhos tão bonitos. Dizem laconicamente, com o ar indiferente que marca o cool da contemporaneidade “Vamos aí?”. Ou simplesmente “'Bora aí?”. Nos últimos tempos, tanto em Lisboa como na linha de Cascais, esta economia de expressão atingiu até o cúmulo de se cingir a um breve e boçal “Bute?”. “Bute” significa qualquer coisa como «Acho-te muito bonita e desejável e adoraria poder levar-te imediatamente para um local distante e deserto onde eu pudesse totalmente desfazer-te em sorvete de framboesas». Mas, como os rapazes só dizem «Bute?», são as pobres raparigas que têm de fazer o esforço todo de interpretação e de enriquecimento semântico. São assim obrigadas a perguntar às amigas “Ó Teresinha, o que é que achas que ele queria dizer com aquele bute?”. E chegam à desgraçada condição de analisar as intenções do rapaz mediante uma série de considerações pouco líricas – foi um «Bute» terno ou ríspido, sincero ou mentiroso, terá sido apaixonado ou desapaixonado?

Isto não pode ser, até porque há uma tradição a manter. Imagina-se alguma rapariga a dizer «Ai, Lena... quando ele disse "Bute" subiu-me o coração à boca!». A verdade é que o coração é um órgão bastante preguiçoso e só se dá ao trabalho de subir à boca quando se lhe dão excelentes motivos para isso.

De uma maneira geral, todas as palavras que não se imaginam num soneto de Camões são impróprias. O amor pode ser um fogo que arde sem se ver, mas não basta tomar o facto por dado e dizer simplesmente «Bute» – é preciso dizer que arde sem se ver. Mesmo que não arda, mesmo que se veja.

Miguel Esteves Cardoso

Fragmento de "Piropo", in A Causa das Coisas, Assírio e Alvim