sexta-feira, 20 de dezembro de 2019

Natal (Manuel António Pina)



NATAL

Quando eu era criança, o Natal entristecia-me. A desusada agitação dos adultos, a mãe metida na cozinha, o cheiro a fritos (as filhoses, as rabanadas, os sonhos) pela casa, as prendas, que me pareciam apenas uma rotina cabisbaixa (e porquê não poder abri-las antes da meia-noite?), o desolador menu da ceia (bacalhau!, eu que imaginava a felicidade sob a forma de um bife com batatas fritas!), tudo me fazia detestar o Natal. Só a construção do presépio me animava; com musgo e com algodão em rama imaginava campos e colinas cobertos de neve; um sinuoso caminho de serradura subia até à gruta, onde o Menino jazia deitado num ninho de pintarroxo (ainda hoje o tenho, a esse ninho); a vaca e o burro eram desproporcionados em relação ao tamanho do Menino, mas os meus pais sempre se recusaram a comprar outros; e o Rei Mago preto tinha-se partido noutro Natal e, no seu lugar, estava agora um jogador do Sporting, com bola e tudo!

Como a infância, o Natal é algo que só podemos ter quando o perdemos. Quando somos crianças, o Natal é próximo de mais, e real de mais, para ser verdadeiro. Só a memória (e a memória construímo-la como construímos um presépio: com pedaços) o torna verdade. E só a memória nos permite saber, enfim, algo essencial: que o Menino da manjedoura éramos nós.

Manuel António Pina




quarta-feira, 18 de dezembro de 2019

A porta (Mia Couto)



A PORTA

Era uma vez uma porta que, em Moçambique, abria para Moçambique. Junto da porta havia um porteiro. Chegou um indiano moçambicano e pediu para passar. O porteiro escutou vozes dizendo:
- Não abras! Essa gente tem mania que passa à frente!
E a porta não foi aberta. Chegou um mulato moçambicano, querendo entrar. De novo, se escutaram protestos:
- Não deixa entrar, esses não são a maioria.
Apareceu um moçambicano branco e o porteiro foi assaltado por protestos:
- Não abre! Esses não são originais!
E a porta não se abriu. Apareceu um negro moçambicano solicitando passagem. E logo surgiram protestos:
- Esse aí é do Sul! Estamos cansados dessas preferências…
E o porteiro negou passagem. Apareceu outro moçambicano de raça negra, reclamando passagem:
- Se você deixar passar esse aí, nós vamos-te acusar de tribalismo!
O porteiro voltou a guardar a chave, negando aceder o pedido. Foi então que surgiu um estrangeiro, mandando em inglês, com a carteira cheia de dinheiro. Comprou a porta, comprou o porteiro e meteu a chave no bolso. Depois, nunca mais nenhum moçambicano passou por aquela porta que, em tempos, se abria de Moçambique para Moçambique.

Mia Couto




terça-feira, 17 de dezembro de 2019

Bolsonaro, o pirralho que fala fino com Trump e grosso com Greta (Kiko Nogueira)

Autor: César Krash


Bolsonaro, o pirralho que fala fino com Trump e grosso com Greta

Kiko Nogueira, 10 de dezembro de 2019

Fabio Porchat é autor de uma das melhores frases do ano.

“Bolsonaro não governa, ele se vinga”, disse o humorista do Porta dos Fundos.

A gestão bolsonarista se destaca por esse tipo de comportamento destrutivo com relação a velhos ressentimentos.

Chamado de racista a vida toda, ele escala um ativista negro que odeia o movimento negro para a Fundação Palmares.

No Meio Ambiente, um ministro acusado de fraude ambiental.

Na Educação, um sujeito que odeia as universidades a ponto de espalhar a fake news de que elas produzem metanfetamina e plantam maconha.

No caso de Greta Thunberg, o presidente da República agiu como Carluxo, uma criança mimada e burra.

“A Greta já falou que os índios morreram porque estavam defendendo a Amazônia. É impressionante a imprensa dar espaço para uma pirralha dessa aí”, falou numa coletiva.

Horas depois dessa estupidez, a sueca respondeu com classe alterando sua descrição biográfica no Twitter para “Pirralha”.

Greta havia postado um vídeo sobre a morte dos guajajaras no Maranhão e Bolsonaro não gostou.

“Indígenas estão sendo mortos por tentar proteger a floresta do desmatamento ilegal. De novo e de novo. É uma vergonha que o mundo permaneça calado sobre isso”, denunciou.

O adulto na sala é a garota de 16 anos.

O fedelho é o covarde de 64 que chupa o dedo e só briga com gente menor que ele.

Quando Donald Trump o humilhou prometendo, nas redes, taxar aço e alumínio brasileiros, Bolsonaro correu a explicar que “não via como retaliação”.

“Vou conversar com Paulo Guedes. Se for o caso ligo para o Trump. Tenho um canal aberto com ele”, mentiu, o rabo entre as pernas.

Flávio, Eduardo e Carluxo têm comportamento de moleque, mas como seria diferente tendo como exemplo a molecagem do pai?

Greta faria um favor à humanidade se desse em Jair umas palmadas no lugar onde guarda o intelecto.

Kiko Nogueira, em Diário do Centro do Mundo, 10-12-2019



segunda-feira, 16 de dezembro de 2019

Natal d'um Poeta (António Nobre)



NATAL D'UM POETA

Em certo reino, à esquina do planeta,
Onde nasceram meus Avós, meus Paes,
Ha quatro lustros, viu a luz um poeta
Que melhor fôra não a ver jamais.

Mal despontava para a vida inquieta,
Logo ao nascer, mataram-lhe os ideaes,
A falsa fé, n'uma traição abjecta,
Como os bandidos nas estradas reaes!

E, embora eu seja descendente, um ramo
D'essa arvore de Heroes que, entre perigos
E guerras, se esforçaram pelo Ideal:

Nada me importas, Paiz! seja meu amo
O Carlos ou o Zé da Th'reza... Amigos,
Que desgraça nascer em Portugal!

António Nobre



António Pereira Nobre (Porto, 16 de agosto de 1867 — Foz do Douro, 18 de março de 1900), mais conhecido como António Nobre, foi um poeta português cuja obra se insere nas correntes ultra-romântica, simbolista, decadentista e saudosista (interessada na ressurgência dos valores pátrios) da geração finissecular do século XIX português. A sua principal obra, (Paris, 1892), é marcada pela lamentação e nostalgia, imbuída de subjectivismo, mas simultaneamente suavizada pela presença de um fio de auto-ironia e com a rotura com a estrutura formal do género poético em que se insere, traduzida na utilização do discurso coloquial e na diversificação estrófica e rítmica dos poemas.

(Continua na Wikipédia)




sexta-feira, 13 de dezembro de 2019

Casa na Chuva (Eugénio de Andrade)


CASA NA CHUVA

A chuva, outra vez sobre as oliveiras.
Não sei por que voltou esta tarde
se minha mãe já se foi embora,
já não vem à varanda para a ver cair,
já não levanta os olhos da costura
para perguntar: Ouves?
Oiço, mãe, é outra vez a chuva,
a chuva sobre o teu rosto.

Eugénio de Andrade

Escrita da Terra (1974)



terça-feira, 10 de dezembro de 2019

Os portugueses não gostam que os brasileiros falem português (Marco Neves)


Este artigo de Mário Neves foi publicado a 8 de dezembro de 2013 em Medium:


Os portugueses não gostam que os brasileiros falem português
Pronto, estou a exagerar. Mas às vezes parece!

Há poucas horas encontrei um post num grupo do Facebook sobre tradução em que uma tradutora portuguesa partilhava um post duma empresa de tradução brasileira, afirmando-se insultada.

O que dizia o tal post? Simplesmente isto (atentem no insulto):

Saudade”, uma palavra genuinamente brasileira.

O autor brasileiro é bem capaz de ficar a coçar a cabeça… “Mas que disse eu de errado?” Por que razão se sentiu a tradutora portuguesa insultada por esta declaração tão inócua?

Os comentários ao post são também curiosos. Houve quem acusasse o autor de ignorância ou de querer afirmar que “saudade” é uma palavra de origem brasileira, etc. A indignação foi muita, a surpresa de qualquer brasileiro que por ali parasse seria maior ainda.

Tentei argumentar um pouco, dizendo que erro seria dizer que “saudade” é uma palavra “exclusivamente” brasileira. No entanto, muito do que disse caiu em saco roto. A frase era incomodativa para muitos, e houve quem lembrasse, out of the blue, o acordo ortográfico, que é a bête noire dos portugueses no que toca à língua portuguesa. Tudo por causa duma palavra que não pode ser genuinamente brasileira! Nem pensar!

Mas que raio?…

Ora bem, o que se passou foi o seguinte (digo eu—que posso estar errado):

1. O autor brasileiro estava a falar duma palavra da sua língua, que é uma palavra que sente como genuína dessa língua (portuguesa) e da sua cultura (brasileira) e é, portanto, uma palavra genuinamente brasileira.

2. Os portugueses que comentaram a frase fazem uma outra associação. Desde pequenos ouvem dizer que “saudade” é uma palavra portuguesa, o que é obviamente verdade. Ouvem também dizer que é uma palavra que só existe em português e da qual devemos ter orgulho. Sendo o nome da língua indistinto do adjectivo que nos caracteriza enquanto povo, não fazemos convenientemente a distinção entre o que é uma palavra em português e uma palavra portuguesa. Se dizemos que “saudade” só existe em português, no nosso íntimo associamo-la, em exclusivo, à cultura portuguesa. Ouvir um brasileiro dizer que é uma palavra genuinamente brasileira enche-nos de estranheza, de confusão—e consideramos a coisa quase tão insultuosa como um espanhol dizer que a “saudade” é genuinamente espanhola.

Para destrinçarmos toda esta confusão, convém atentarmos na palavra “português”. Esta palavra tem vários significados, entre eles:

1. (n.) pessoa com nacionalidade portuguesa.
2. (n.) língua românica oficial em oito países.
3. (adj.) relativo a Portugal e aos portugueses [tal como “brasileiro” significa “relativo ao Brasil e aos brasileiros”].
4. (adj.) relativo ao português e à língua portuguesa [falada por portugueses, brasileiros, angolanos, etc.].

O brasileiro que escreveu a frase sabe distinguir entre os vários significados. Há, claro, uma associação entre todos, mas não deixam de ser significados separados. Um brasileiro pode dizer, sem qualquer dificuldade, que uma palavra é portuguesa, no sentido 4., sem querer com isso dizer que não é brasileira. Pode ainda dizer que uma palavra é brasileira (no sentido de “relativa aos brasileiros e ao Brasil”) sem deixar de defender que é portuguesa (no sentido 4.). “Saudade”, para um brasileiro, é uma palavra portuguesa (“em português”) e brasileira (“relativa ao Brasil e aos brasileiros”).

Já para um português, os sentidos estão misturados. Achamos que uma palavra portuguesa [4.] (=“em português”) é sempre uma palavra acima de tudo portuguesa [3.] (=“relativa aos portugueses”). Para nós, “saudade” é uma palavra portuguesa e, por isso, pertence, acima de tudo, aos portugueses e a Portugal. Ficamos irritados quando os brasileiros dizem que essa mesma palavra é também muito brasileira.

Claro que isto não faz sentido: se acharmos que os brasileiros só podem chamar genuinamente brasileiras as palavras que não sejam partilhadas com os portugueses, estaríamos a dizer que, no fundo, falam uma língua estrangeira desde a nascença e que pouco há de genuinamente brasileiro. E que os americanos também falam uma língua estrangeira desde a nascença e pouco têm de genuíno. O mesmo diríamos dos escoceses, dos argentinos, dos belgas, dos suiços, etc.

Não faz sentido, mas é uma reacção imediata (“gut reaction”) genuinamente portuguesa... Está associada à forma como muitos portugueses dizem “brasileiro” para descrever a língua falada pelos brasileiros, como muitos portugueses ficam admirados quando um estrangeiro diz que aprendeu português mas desata a falar com sotaque brasileiro, como muitos portugueses dizem que existe um sotaque brasileiro mas não existe um sotaque português, etc. No fundo, muitos portugueses acham que os brasileiros falam uma língua emprestada e deviam ter respeitinho a quem lhes emprestou essa língua. (Alguns vão mais longe e acham que os brasileiros andaram a estragar a língua…)

Ora, para um brasileiro, a língua portuguesa é sua. Pode ser doutros também, incluindo os portugueses, mas é, indubitavelmente, sua. Que tenha um nome “estrangeiro” não importa muito. Sempre aprendeu português e sempre associou a língua portuguesa ao Brasil de forma tão íntima como os portugueses associam a língua portuguesa a Portugal. Um brasileiro não está constantamente a lembrar-se de que há uma ligação a outros países com a mesma língua, da mesma forma que os portugueses também não fazem essa associação sempre que falam da língua portuguesa. Para um brasileiro, uma palavra em português é, por definição, uma palavra brasileira, porque o português é a língua dos brasileiros. Claro como água—mas estranhíssimo, e até ofensivo, para ouvidos portugueses.

Para os portugueses a língua portuguesa é acima de tudo portuguesa. Que os brasileiros a falem é um pormenor de somenos importância. E, atenção, dentro desta forma de pensar, os brasileiros deviam lembrar-se que falam uma língua dos portugueses sempre que se atrevem a falar de palavras da sua língua!

Confesso que este problema é um problema que tem consequências negativas acima de tudo para os portugueses, que assim revelam uma visão limitada e mais pobre da sua própria língua. Sim, fomos nós que pegámos num dialecto da zona do Minho (falado entre a Galiza e o Norte do que é hoje Portugal) e lhe demos estatuto de língua oficial. Fomos nós que desenvolvemos essa língua nos primeiros séculos—e fomos nós que pegámos nela e a levámos a outros locais, que assentámos arraiais no outro lado do Atlântico e nos misturámos com outras raças e culturas e criámos o Brasil—e por lá ficámos. Não se esqueçam que os brasileiros não importaram o português: os brasileiros são os descendentes dos portugueses que levaram o português até àquelas paragens.

E não se esqueçam que as línguas são de quem as fala, desde a nascença, conhecendo o sabor particular que cada palavra tem na língua de cada um, um sabor que muda de lugar para lugar, de época para época, mas que não é propriedade de ninguém. Porque o português é mesmo de todos nós— genuinamente de todos nós.

Marco Neves 

Gestor na Eurologos-Lisboa. Docente Universitário na FCSH/NOVA. Formador na área da tradução

Certas Palavras - Página de Marco Neves sobre línguas, livros e outras viagens


quinta-feira, 5 de dezembro de 2019

Eufemismos (Blogue Enfado)


Um eufemismo 02.02.2006

Dizer “não tive tempo” em vez de “eu sei que estavas à espera, mas na hierarquia de prioridades que defini para a minha vida recente, aquilo que me pediste estava mesmo lá no fundo”.


Dois eufemismos 02.02.2006

Dizer “ando cheio de trabalho” em vez de “não vou gastar contigo o pouco tempo que tenho para mim”.


Três eufemismos 02.02.2006

Dizer “correu muito bem” em vez de “estou farto de passar a vida a baixar expectativas por vossa causa”.


Publicado por Guilherme Cartaxo no seu blogue Enfado.




segunda-feira, 2 de dezembro de 2019

"Descobri aos 13 anos que o que me dava prazer nas / leituras..." (Manoel de Barros)

(*)

Descobri aos 13 anos que o que me dava prazer nas
leituras não era a beleza das frases, mas a doença
delas.
Comuniquei ao Padre Ezequiel, um meu Preceptor,
esse gosto esquisito.
Eu pensava que fosse um sujeito escaleno.
- Gostar de fazer defeitos na frase é muito saudável,
o Padre me disse.
Ele fez um limpamento em meus receios.
O Padre falou ainda: Manoel, isso não é doença,
pode muito que você carregue para o resto da vida
um certo gosto por nadas…
E se riu.
Você não é de bugre? – ele continuou.
Que sim, eu respondi.
Veja que bugre só pega por desvios, não anda em
estradas -
Pois é nos desvios que encontra as melhores surpresas
e os ariticuns maduros.
Há que apenas saber errar bem o seu idioma.
Esse Padre Ezequiel foi o meu primeiro professor de
agramática.

Manoel de Barros

VI poema de O Livro das Ignorãças

Notas
Bugre, s.m.: denominação dada a indígenas de diversos grupos do Brasil por serem considerados não cristãos pelos europeus.

Ariticum é um nome indígena que vem do Tupi e significa 'fruta mole'. Nativo dos cerrados brasileiros, sua distribuição é descontínua, aparecendo nos campos abertos, como no cerrado e cerradão onde a vegetação é mais densa. Pode ser encontrado em Goiás, Tocantins, no estado de São Paulo e Mato Grosso do Sul. A árvore do ariticum cresce até 10 metros e possui tronco tortuoso de 20 a 40 cm de diâmetro.

Conhecida popularmente por Pinha, Ariticum, Araticum, Embira, araticum-cagão-macho, cortiça-amarela, araticum-do-morro, araticum-grande, pasmada-do-mato, a Rollinia sylvatica é uma árvore que, quando adulta, atinge o porte de 6,8 m de altura.


(*) Manoel de Barros (1916-2014) “Mundo pequeno, VII” in «O Livro das Ignorãças», 1993. Voz de Manoel de Barros em «Manoel de Barros», Audio-Livro, Ed. Cidade da Luz (Coleção Poesia Falada), São Paulo, 2001 Música: Virgina Astley, “With my eyes wide open I'm dreaming” in «From Gardens Where We Feel Secure», 1983


sexta-feira, 29 de novembro de 2019

O mocho e o macaco (Fernando Assis Pacheco)

Fotografia de Rosa Gambóias


O MOCHO E O MACACO

Era uma vez um mocho diz o meu filho
que sabe todas as histórias do mundo

uma vez um mocho
o macaquinho pergunta-lhe
o que é quando se morre?
pois nada diz o mocho
morre-se praí

o macaquinho insiste
mocho e quando tu morreres?
morro nada diz o mocho
hás-de morrer tu primeiro

mas veio uma zorra e comeu o mocho
que foi para um buraco muito fundo
ninguém cantava nesse buraco
só os morcegos e mesmo esses
só se a gente lhes batesse
com uma vassoura da cozinha

o macaquinho come bananas
escapa-se ao jacaré do Amazonas
que lhe quer dar uma dentada
salta nas árvores
uma daquelas era onde estava o mocho

coitado do mocho
não viu a zorra ao pé da carvalheira
morre-se praí
morre-se num instantemente de nada
morre-se a morte mocha
sem a gente dizer ai

Fernando Assis Pacheco


Variações em Sousa (1987) in  A Musa Irregular, Assírio & Alvim, 2006


Deste poema diz Luís Serrano que é "Uma premonição da morte em forma de fábula"



Rua Fernando Assis Pacheco

Desde o dia 23 de novembro, no bairro de Campo de Ourique. 2016.




segunda-feira, 25 de novembro de 2019

O Futuro (José Carlos Ary dos Santos)

Fotografia de Fotos Avulso


O FUTURO

Isto vai meus amigos isto vai
um passo atrás são sempre dois em frente
e um povo verdadeiro não se trai
não quer gente mais gente que outra gente

Isto vai meus amigos isto vai
o que é preciso é ter sempre presente
que o presente é um tempo que se vai
e o futuro é o tempo resistente

Depois da tempestade há a bonança
que é verde como a cor que tem a esperança
quando a água de Abril sobre nós cai.

O que é preciso é termos confiança
se fizermos de Maio a nossa lança
isto vai meus amigos isto vai.

José Carlos Ary dos Santos


O Sangue das Palavras, 1978



quinta-feira, 21 de novembro de 2019

“Quando somos dessas raparigas indecisas...” (Bénédicte Houart)

Fotografia de André Pipa

Quando somos dessas raparigas imprecisas que não se sabe onde começam, onde acabam, se acaso algum dia terminarão. Parecem crescer a cada instante, em largura, em altura, sobretudo em profundidade. E, no entanto, minguam se alguém as acaricia com vagar. Pequenas, cabem então numa só apenas mão.

Bénédicte Houart



Bénédicte Houart, filha de pai belga e mãe portuguesa, nasceu em Braine-le-Conte, uma pequena cidade nos arredores de Bruxelas, em 1968. Mudou-se ainda na infância para Portugal, em 1975, onde tem vivido desde então. Crescendo bilíngue, adotou a língua portuguesa por pátria, como diria Pessoa.

Lido em modo de usar & co. "revista de poesia e outras textualidades conscientes2



segunda-feira, 18 de novembro de 2019

Num bairro moderno (Cesário Verde)



NUM BAIRRO MODERNO

Dez horas da manhã; os transparentes
Matizam uma casa apalaçada;
Pelos jardins estancam-se as nascentes,
E fere a vista, com brancuras quentes,
A larga macadamizada.

Rez-de-chaussé repousam sossegados,
Abriram-se, nalguns, as persianas,
E dum ou doutro, em quartos estucados,
Ou entre a rama dos papéis pintados,
Reluzem, num almoço as porcelanas.

Como é saudável ter o seu conchego,
E a sua vida fácil! Eu descia,
Sem muita pressa, para o meu emprego,
Aonde agora quase sempre chego
Com as tonturas duma apoplexia.

E rota, pequenina, azafamada,
Notei de costas uma rapariga,
Que no xadrez marmóreo duma escada,
Como um retalho de horta aglomerada,
Pousara, ajoelhando, a sua giga.

E eu, apesar do sol, examinei-a;
Pôs-se de pé; ressoam-lhe os tamancos;
E abre-se-lhe o algodão azul da meia,
Se ela se curva, esguedelhada, feia
E pendurando os seus bracinhos brancos.

Do patamar responde-lhe um criado:
"Se te convém, despacha; não converses.
Eu não dou mais." E muito descansado,
Atira um cobre ignóbil oxidado,
Que vem bater nas faces duns alperces.

Subitamente - que visão de artista! -
Se eu transformasse os simples vegetais,
À luz do Sol, o intenso colorista;
Num ser humano que se mova e exista
Cheio de belas proporções carnais?!

Bóiam aromas, fumos de cozinha;
Com o cabaz às costas, e vergando,
Sobem padeiros, claros de farinha;
E às portas, uma ou outra campainha
Toca, frenética, de vez em quando.

E eu recompunha, por anatomia,
Um novo corpo orgânico, aos bocados.
Achava os tons e as formas. Descobria
Uma cabeça numa melancia,
E nuns repolhos seios injectados.

As azeitonas, que nos dão o azeite,
Negras e unidas, entre verdes folhos,
São tranças dum cabelo que se ajeite;
E os nabos - ossos nus, da cor do leite,
E os cachos de uvas - os rosários de olhos.

Há colos, ombros, bocas, um semblante
Nas posições de certos frutos. E entre
As hortaliças, túmido, fragrante,
Como dalguém que tudo aquilo jante,
Surge um melão, que me lembrou um ventre.

E, como um feto, enfim, que se dilate,
Vi nos legumes carnes tentadoras,
Sangue na ginja vívida, escarlate,
Bons corações pulsando no tomate
E dedos hirtos, rubros, nas cenouras.

O Sol dourava o céu. E a regateira,
Como vendera a sua fresca alface
E dera o ramo de hortelã que cheira,
Voltando-se, gritou-me prazenteira:
" Não passa mais ninguém! ... Se me ajudasse?! ..."

Eu acerquei-me dela, sem desprezo;
E, pelas duas asas a quebrar,
Nós levantámos todo aquele peso
Que ao chão de pedra resistia preso,
Com um enorme esforço muscular.
 
"Muito obrigada! Deus lhe dê saúde!"
E recebi, naquela despedida,
As forças, a alegria, a plenitude,
Que brotam dum excesso de virtude
Ou duma digestão desconhecida.

E enquanto sigo para o lado oposto,
E ao longe rodam umas carruagens,
A pobre, afasta-se, ao calor de agosto,
Descolorida nas maçãs do rosto,
E sem quadris na saia de ramagens.

Um pequerrucho rega a trepadeira
Duma janela azul; e, com o ralo
Do regador, parece que joeira
Ou que borrifa estrelas; e a poeira
Que eleva nuvens alvas a incensá-lo.

Chegam do gigo emanações sadias,
Ouço um canário - que infantil chilrada!
Lidam ménages entre as gelosias,
E o sol estende, pelas frontarias,
Seus raios de laranja destilada.

E pitoresca e audaz, na sua chita,
O peito erguido, os pulsos nas ilhargas,
Duma desgraça alegre que me incita,
Ela apregoa, magra, enfezadita,
As suas couves repolhudas, largas.

E, como as grossas pernas dum gigante,
Sem tronco, mas atléticas, inteiras
Carregam sobre a pobre caminhante,
Sobre a verdura rústica, abundante,
Duas frugais abóboras carneiras.

Cesário Verde

Lisboa, Verão de 1877




sexta-feira, 15 de novembro de 2019

"Chego, acendo a lareira, aninho-me no sofá ..." (Miguel Torga)

Fotografía de Leandro Prudencio


Chego, acendo a lareira, aninho-me no sofá, e fico horas infinitas a olhar em silêncio as labaredas, imerso numa bruma de sentimentos a que não consigo dar voz. É aqui que eu sinto com mais pungência que nunca hei-de ter expressão à altura da minha alma.

Miguel Torga
Diário



segunda-feira, 11 de novembro de 2019

A vida de viver e o viver sem vida (Ana Luísa Amaral)



A vida de viver e o viver sem vida  é um artigo de opinião de Ana Luísa Amaral, publicado no jornal Público no dia 1 de fevereiro de 2017.


A VIDA DE VIVER E O VIVER SEM VIDA

Não deve haver também direitos para quem deseja, em paz, pôr termo a uma vida que deixou de ter dignidade de vida vivida?


O meu maior momento de pura felicidade foi o nascimento da minha filha, ela a chegar à vida. Relembro essa alegria, porque os outros momentos que mais me marcaram foram feitos da mais profunda tristeza: a morte do meu pai, a morte de amigos que me eram esteio, alicerce. Essas mortes foram brutais, pelo absolutamente inesperado — mas qualquer morte é, em princípio, brutal: o avesso de aqui estarmos, em “terrena companhia”, como uma vez escreveu uma grande poeta.

Mas de entre esses outros momentos, houve um em que a tristeza se cruzou com um sentimento que não sei nomear; e hesito entre revolta e incompreensão. Foi quando vi e senti pela primeira vez o que significava uma palavra que eu conhecia só teoricamente — pelos livros, por títulos de quadros, pela sua indevida inclusão em expressões usadas no quotidiano. Essa palavra era agonia. Na sua etimologia (agon), agonia significa luta; definida no dicionário como o estado que precede a morte, agonia significa luta contra a morte. Mas a definição di-la também como podendo ser tranquila.

Porém, isto é no dicionário, que lhe prevê essa dimensão possível de tranquilidade. Até então, talvez por nunca o ter sentido a partir da minha própria vida, eu nunca pensara em algo óbvio: que “agonia” e “agoniado” são palavras tangentes. E que ambos os estados são, mesmo nas indizíveis distâncias que os separam, de aflição. O que de pacífico nada tem.

Vi essa incomensurável aflição, a agonia atormentada, numa noite de Abril de 1996, em alguém que era para mim como uma mãe e agora morria numa cama de hospital. Morria, desfazendo-se, porque nada mais havia a fazer: o cancro invadira tudo e o que restava ali era um corpo num estado para lá do sofrimento puro, cheio de morfina — mas semi-consciente.

Este era o corpo de alguém agoniado da vida, arrancando tubos, pedindo-me para partir. Suplicando-me que a deixassem partir. A mim, que a amava. As enfermeiras disseram-me: “Não passa desta noite.” O médico, a quem eu transmiti o pedido, fazendo minhas as palavras pedidas por quem morria à minha frente, respondeu-me: “Minha senhora, a nossa função é a de prolongar a vida.” É honrada essa frase, é bela e digna — e escrevo isto sem a mais pequena réstia de ironia. Mas esse estado chamado vida arrastar-se-ia por mais 12 horas. Não passou, pois, da manhã do dia seguinte o ser humano que eu amava e que me havia sempre amado. Mas as horas que demorou até morrer, até se desligar da vida biológica, foram carregadas de uma agonia sem sentido. Pois que sentido pode haver em prolongar em vácuo o sofrimento?

O que eu via ali era um rosto de olhos fechados cheios de uma aflição sem limites, um rosto amado e pertencente a um corpo que já não respondia a nada e que antes fora tão capaz. Ainda hoje não compreendo por que razão não foi possível tornar aquela morte mais honrada. E ainda hoje me revolto, porque se havia palavra para definir a vida biográfica, a vida de viver da pessoa que ali estava, essa palavra era dignidade. Uma dignidade que lhe fora negada.

A discussão em torno da eutanásia e da morte assistida não é uma discussão fácil. Porque o tema gira em torno das duas linhas que nos demarcam no tempo e que de mais crítico, mais delicado, mais vulnerável e poderoso temos e partilhamos: a vida e, a seu lado, a morte. É este, pois, um tema de uma imensa complexidade.

Não sou médica, não sou jurista, sou somente cidadã. Como cidadã, reconheço o cuidado e a sensibilidade que este assunto merece. Mas também como cidadã, recuso-me a juntar a minha voz à voz daqueles que liminarmente condenam o desejo de alguém querer morrer condignamente, quando o sofrimento é extremo e o fim irreversível, ou a sua escolha de não prolongar artificialmente a vida biológica. Tal como o direito a uma vida de paz e digna, vida de viver, deveria ser um direito a todos comum, não deve haver também direitos para quem deseja, em paz, pôr termo a uma vida que deixou de ter dignidade de vida vivida? Não serão esses direitos parte daquilo a que chamamos liberdade?

Poeta, subscritora da petição pública “Direito a morrer com dignidade”

Ana Luísa Amaral




sexta-feira, 8 de novembro de 2019

A forma justa (Sophia de Mello Breyner Andresen)



Sophia de Mello Breyner Andresen (Porto, 6 de novembro de 1919 — Lisboa, 2 de Julho de 2004)


A FORMA JUSTA

Sei que seria possível construir o mundo justo
As cidades poderiam ser claras e lavadas
Pelo canto dos espaços e das fontes
O céu o mar e a terra estão prontos
A saciar a nossa fome do terrestre
A terra onde estamos — se ninguém atraiçoasse — proporia
Cada dia a cada um a liberdade e o reino
— Na concha na flor no homem e no fruto
Se nada adoecer a própria forma é justa
E no todo se integra como palavra em verso
Sei que seria possível construir a forma justa
De uma cidade humana que fosse
Fiel à perfeição do universo

Por isso recomeço sem cessar a partir da página em branco
E este é meu ofício de poeta para a reconstrução do mundo




quinta-feira, 7 de novembro de 2019

Poema de Helena Lanari (Sophia de Mello Breyner Andresen)

Coqueiro, fotografia de Eduardo Deboni


Sophia de Mello Breyner Andresen (Porto, 6 de novembro de 1919 — Lisboa, 2 de Julho de 2004)


POEMA DE HELENA LANARI

Gosto de ouvir o português do Brasil
Onde as palavras recuperam sua substância total
Concretas como frutos nítidas como pássaros
Gosto de ouvir a palavra com suas sílabas todas
Sem perder sequer um quinto de vogal

Quando Helena Lanari dizia o «coqueiro»
O coqueiro ficava muito mais vegetal


Geografia (1967)



quarta-feira, 6 de novembro de 2019

Arte Poética II (Sophia de Mello Breyner Andresen)

Sophia na casa da Travessa das Mónicas, 1964.
Foto de Eduardo Gageiro


Sophia de Mello Breyner Andresen (Porto, 6 de novembro de 1919 — Lisboa, 2 de Julho de 2004)


Arte Poética II

A poesia não me pede propriamente uma especialização pois a sua arte é uma arte do ser. Também não é tempo ou trabalho o que a poesia me pede. Nem me pede uma ciência nem uma estética nem uma teoria. Pede-me antes a inteireza do meu ser, uma consciência mais funda do que a minha inteligência, uma fidelidade mais pura do que aquela que eu posso controlar. Pede-me uma intransigência sem lacuna. Pede-me que arranque da minha vida que se quebra, gasta, corrompe e dilui uma túnica sem costura. Pede-me que viva atenta como uma antena, pede-me que viva sempre, que nunca me esqueça. Pede-me uma obstinação sem tréguas, densa e compacta.

Pois a poesia é a minha explicação com o universo, a minha convivência com as coisas, a minha paiticipação no real, o meu encontro com as vozes e as imagens. Por isso o poema não fala de uma vida ideal mas sim de uma vida concreta: ângulo da janela, ressonância das ruas, das cidades e dos quartos, sombra dos muros, aparição dos rostos, silêncio, distância e brilho das estrelas, respiração da noite, perfume da tília e do orégão.

É esta relação com o universo que define o poema como poema, como obra de criação poética. Quando há apenas relação com uma matéria há apenas artesanato.

É o artesanato que pede especialização, ciência, trabalho, tempo e uma estética. Todo o poeta, todo o artista é artesão de uma linguagem. Mas o artesanato das artes poéticas não nasce de si mesmo, isto é, da relação com uma matéria, como nas artes artesanais. O artesanato das artes poéticas nasce da própria poesia a qual está consubstancialmente unido. Se um poeta diz «obscuro», «amplo», «barco», «pedra» é porque estas palavras nomeiam a sua visão do mundo, a sua ligação com as coisas. Não foram palavras escolhidas esteticamente pela sua beleza, foram escolhidas pela sua realidade, pela sua necessidade, pelo seu poder poético de estabelecer uma aliança. E é da obstinação sem tréguas que a poesia exige que nasce o «obstinado rigor» do poema. O verso é denso, tenso como um arco, exactamente dito, porque os dias foram densos, tensos como arcos, exactamente vividos. O equilíbrio das palavras entre si é o equilíbrio dos momentos entre si.

E no quadro sensível do poema vejo para onde vou, reconheço o meu caminho, o meu reino, a minha vida.


Arte Poética II foi publicado pela primeira vez em 21 de Janeiro de 1963. Seguidamente a Arte Poética I e II foram publicadas com alterações em Geografia, 1967.


Fonte: Sophia de Mello Breyner Andresen no seu tempo. Momentos e Documentos

© 2011 Biblioteca Nacional de Portugal



Homero (Sophia de Mello Breyner Andresen)


Sophia de Mello Breyner Andresen (Porto, 6 de novembro de 1919 — Lisboa, 2 de Julho de 2004)


HOMERO

Quando eu era pequena, passava às vezes pela praia um velho louco e vagabundo a quem chamavam o Búzio.

O Búzio era como um monumento manuelino: tudo nele lembrava coisas marítimas. A sua barba branca e ondulada era igual a uma onda de espuma. As grossas veias azuis das suas pernas eram iguais a cabos de navio. O seu corpo parecia um mastro e o seu andar era baloiçado como o andar dum marinheiro ou dum barco. Os seus olhos, como o próprio mar, ora eram azuis, ora cinzentos, ora verdes, e às vezes mesmo os vi roxos. E trazia sempre na mão direita duas conchas. Eram daquelas conchas brancas e grossas com círculos acastanhados, semi-redondas e semitriangulares, que têm no vértice da parte triangular um buraco.

O Búzio passava um fio através dos buracos, atando assim as duas conchas uma à outra, de maneira a formar com elas umas castanholas. E era com essas castanholas que ele marcava o ritmo dos seus longos discursos cadenciados, solitários e misteriosos como poemas.

O Búzio aparecia ao longe. Via-se crescer dos confins dos areais e das estradas. Primeiro julgava-se que fosse uma árvore ou um penedo distante. Mas quando se aproximava via-se que era o Búzio. Na mão esquerda trazia um grande pau que lhe servia de bordão e era seu apoio nas longas caminhadas e sua defesa contra os cães raivosos das quintas. A este pau estava atado um saco de pano, dentro do qual ele guardava os bocados do pão que lhe davam e os tostões. O saco era de chita remendada e tão desbotada que quase se tornara branca.

O Búzio chegava de dia, rodeado de luz e de vento, e dois passos à sua frente vinha o seu cão, que era velho, esbranquiçado e sujo, com o pêlo grosso, encaracolado e comprido e o focinho preto. E pelas ruas fora vinha o Búzio com o sol na cara e as sombras trémulas das folhas dos plátanos nas mãos. Parava em frente duma porta e entoava a sua longa melopeia ritmada pelo tocar das suas castanholas de conchas. Abria-se a porta e aparecia uma criada de avental branco que lhe estendia um pedaço de pão e dizia:

- Vai-te embora, Búzio.

E o Búzio, demoradamente, desprendia o saco do seu bordão, desatava os cordões, abria o saco e guardava o pão. Depois de novo seguia. Parava debaixo de uma varanda cantando, alto e direito, enquanto o cão farejava o passeio. E na varanda debruçava-se alguém rapidamente, tão rapidamente que o seu rosto nem se mostrava, e atirava-lhe um tostão e dizia:

- Vai-te embora, Búzio.

E o Búzio demoradamente - tão demoradamente que cada um dos seus gestos de via - desprendia o saco do pau, desatava os cordões, abria o saco, guardava o tostão, e de novo fechava o saco e o atava e o prendia. E seguia com o seu cão.

Havia na terra muitos pobres que apareciam aos sábados em bandos acastanhados e trágicos, e que pediam esmola pelas portas e faziam pena. Eram cegos, coxos, surdos e loucos, eram tuberculosos cuspindo sangue nos trapos, eram mães escanzeladas de filhos quase verdes, eram velhas curvadas e chorosas com as pernas incrivelmente inchadas, eram rapazes novos mostrando chagas, braços torcidos, mãos cortadas, lágrimas e desgraça. E sobre o bando pairava um murmúrio incansável de gemidos, queixas, rezas e lamentações. Mas o Búzio aparecia sozinho, não se sabia em que dia da semana, era alto e direito, lembrava o mar e os pinheiros, não tinha nenhuma ferida e não fazia pena. Ter pena dele seria como ter pena de um plátano ou de um rio, ou do vento. Nele parecia abolida a barreira que separa o homem da natureza.

O Búzio não possuía nada, como uma árvore não possui nada. Vivia com a terra toda que era ele próprio. A terra era sua mãe e sua mulher, sua casa e sua companhia, sua cama, seu alimento, seu destino e sua vida. Os seus pés descalços pareciam escutar o chão que pisavam.

E foi assim que o vi aparecer naquela tarde em que eu brincava sozinha no jardim. A nossa casa ficava à beira da praia. A parte da frente, virada para o mar, tinha um jardim de areia. Na parte de trás, voltada para leste, havia um pequeno jardim agreste e mal tratado, com o chão coberto de pequenas pedras soltas, que rolavam sob os passos, um poço, duas árvores e alguns arbustos desgrenhados pelo vento e queimados pelo sol.

O Búzio, que chegou pelo lado de trás, abriu a cancela de madeira, que ficou a baloiçar, e atravessou o jardim, passando sem me ver. Parou em frente da porta de serviço e ao som das suas castanholas de conchas pôs-se a cantar. Assim esperou algum tempo. Depois a porta abriu-se e no seu ângulo escuro apareceu um avental.

Visto de fora, o interior da casa parecia misterioso, sombrio e brilhante. E a criada estendeu um pão e disse:

- Vai-te embora, Búzio.

Depois fechou a porta. E o Búzio, sem pressa, demoradamente como que desenhando na luz cada um dos seus gestos, puxou os cordões, abriu o saco, tornou a atar o saco, prendeu-o no pau e seguiu com o seu cão. Depois deu a volta à casa, para sair pela frente, pelo lado do mar.

Então eu resolvi ir atrás dele. Ele atravessou o jardim de areia coberto de chorão e lírios do mar e caminhou pelas dunas. Quando chegou ao lugar onde principia a curva da baía, parou. Ali era já um lugar selvagem e deserto, longe de casas e estradas.

Eu, que o tinha seguido de longe, aproximei-me escondida nas ondulações da duna e ajoelhei-me atrás de um pequeno monte entre as ervas altas, transparentes e secas. Não queria que o Búzio me visse, porque o queria ver sem mim, sozinho.

Era um pouco antes do pôr do sol e de vez em quando passava uma pequena brisa. Do alto da duna via-se a tarde toda como uma enorme flor transparente, aberta e estendida até aos confins do horizonte. A luz recortava uma por uma todas as covas da areia. O cheiro nu da maresia, perfume limpo do mar sem putrefacção e sem cadáveres, penetrava tudo. E a todo o comprimento da praia, de norte a sul, a perder de vista, a maré vazia mostrava os seus rochedos escuros cobertos de búzios e algas verdes que recortavam as águas. E atrás deles quebravam incessantemente, brancas e enroladas e desenroladas, três fileiras de ondas que, constantemente desfeitas, constantemente se reerguiam.

No alto da duna o Búzio estava com a tarde. O sol pousava nas suas mãos, o sol pousava na sua cara e nos seus ombros. Ficou algum tempo calado, depois devagar começou a falar. Eu entendi que falava com o mar, pois o olhava de frente e estendia para ele as suas mãos abertas, com as palmas em concha viradas para cima. Era um longo discurso claro, irracional e nebuloso que parecia, com a luz, recortar e desenhar todas as coisas. Não posso repetir as suas palavras: não as decorei e isto passou-se há muitos anos. E também não entendi inteiramente o que ele dizia. E algumas palavras mesmo não as ouvi, porque o vento rápido lhas arrancava da boca. Mas lembro-me de que eram palavras moduladas como um canto, palavras quase visíveis que ocupavam os espaços do ar com a sua forma, a sua densidade e o seu peso. Palavras que chamavam pelas coisas, que eram o nome das coisas. Palavras brilhantes como as escamas de um peixe, palavras grandes e desertas como praias. E as suas palavras reuniam os restos dispersos da alegria da terra. Ele os invocava, os mostrava, os nomeava: vento, frescura das águas, oiro do sol, silêncio e brilho das estrelas.

Sophia de Mello Breyner Andresen

"Homero", in Contos Exemplares



terça-feira, 5 de novembro de 2019

"Terror de te amar num sítio tão frágil como o mundo..." (Sophia de Mello Breyner Andresen)



Sophia de Mello Breyner Andresen (Porto, 6 de novembro de 1919 — Lisboa, 2 de Julho de 2004)

Terror de te amar num sítio tão frágil como o mundo
Mal de te amar neste lugar de imperfeição
Onde tudo nos quebra e emudece
Onde tudo nos mente e nos separa.




"Terror de te amar" in «Coral» (1950) Natália Luiza in Gastão Cruz (ed.), Ao Longe os Barcos de Flores (Livro + 2 CDs, Assírio & Alvim, 2004) Audio: Prelúdio coral de J.S. Bach, "Ich ruf zu Dir, Herr Jesu Christ" [Chamo-Te, Senhor Jesus Cristo], BWV 639. Atriz: Telma Santos.




segunda-feira, 4 de novembro de 2019

Sophia de Mello Breyner Andresen, de João César Monteiro (1969)


Pelo facto de se celebrar no dia 6 de novembro o centenário do nascimento desta grande autora portuguesa, nesta semana só será publicada obra dela ou ligada a ela.

Sophia de Mello Breyner Andresen (Porto, 6 de novembro de 1919 — Lisboa, 2 de Julho de 2004)

Sirva o documentário de João César Monteiro como apresentação.

Sophia de Mello Breyner Andresen, de João César Monteiro (1969)

"No que ao meu filme diz respeito, suponho que, antes do mais, ele é a prova, para quem a quiser entender, que a poesia nao é filmável e não adianta persegui-la." JCM

(naquela altura  João César Monteiro assinava como  João César Santos)




sábado, 2 de novembro de 2019

Jorge de Sena nasceu há 100 anos



Recordamos os 100 anos do nascimento de...

Jorge de Sena (Lisboa, 2 de novembro de 1919 — Santa Barbara, Califórnia, 4 de junho de 1978) foi poeta, crítico, ensaísta, ficcionista, dramaturgo, tradutor e professor universitário português, naturalizado brasileiro em 1963.


OS OLHOS DAS CRIANÇAS

Estes olhos vazios e brilhantes
que na criança se abrem para o mundo.
não amam,
não temem,
não odeiam,
não sabem como a morte existe.

São terríveis.
Porque a vida é isto.

O amor, o medo, o ódio, a mesma morte.
e este desejo de possuir alguém,
os aprendemos. Nunca mais olhamos
com tal vazio dentro das pupilas.

São terríveis.
Porque a vida é isto.

Jorge de Sena

Peregrinatio ad loca infecta (1969), in Poesia-III, Moraes Editores, 1978.






sexta-feira, 1 de novembro de 2019

O melhor pretexto (Alexandre O’Neill)

Gisa, fotografia de Tiago Zaniratti


O MELHOR PRETEXTO

É tão frágil a vida,
tão efémero, tudo!
(Não é verdade, amiga,
olhinhos-cor-de-musgo ?)

E ao mesmo tempo é forte,
forte da veleidade,
de resistir à morte
quanto maior a idade.

Assim, aos trinta e sete,
fechados alguns ciclos,
a vida ainda pede
mais sentimento, vínculos.

Não tanto os que nos deram
a fúria de viver,
como esses descobertos
depois de se saber

Que a vida não é outra
senão a que fazemos
(e a vida é uma só,
pois jamais voltaremos).

Partidários da vida,
melhor: do que está vivo,
digamos "não!" a tudo
que tenha outro sentido.

E que melhor pretexto
(quem o saiba que o diga!)
teremos p'ra viver
senão a própria vida?

Alexandre O’Neill

Poemas com endereço (1962)



quinta-feira, 31 de outubro de 2019

Solange, a namorada (Carlos Drummond de Andrade)

 
Carlos Drummond de Andrade sempre veio aqui enquanto poeta, mas hoje vem com um breve conto do seu livro Contos Plausíveis. E com isto celebramos, como cada 31 de outubro, o Dia D. Para saber o que isso significa, clicamos no link. Avanço que nesse dia do ano 1902, Drummond de Andrade nasceu na cidade mineira (mineira, do estado de Minas Gerais) de Itabira.


Solange, a namorada

Todas as moças perdiam para Solange. Nenhuma podia competir com ela em matéria de namoro. Os rapazes da cidade só alimentavam uma aspiração: que Solange olhasse para eles. Desdenhavam todas as outras, ainda que fossem lindas, cheias de graça e boas de namorar. Namorar Solange, merecer o favor de seus olhos: que mais desejar na vida?

A nenhum deles Solange namorava. Era uma torre, um silêncio, um abismo, uma nuvem. Sua família inquietava-se com isto e pedia-lhe que pelo amor de Deus escolhesse um rapaz e namorasse. O vigário exortou-a nesse sentido. O prefeito apelou para os seus bons sentimentos. Ninguém mais casava, a legião de tias era assustadora. Temia-se pela ordem social.

O desaparecimento de Solange até hoje não foi explicado, mas dizem que em carta endereçada à família ela declarou que, para ser a namorada em potencial de todos, não podia ser namorada de um só, mesmo que sucessivamente trocasse de namorado. Estava certa de que exercia uma função de sonho, que a todos beneficiava. Mas se não era assim, e ninguém compreendia sua doação ideal a todos os moços, ela decidira sumir para sempre, e adeus.

Adeus? Ignora-se para onde foi Solange, mas aí é que se converteu em mito supremo, e nunca mais ninguém namorou na cidade. As moças envelheceram e morreram, a igreja fechou as portas, o comércio definhou e acabou, as casas tombaram em ruínas, tudo lá ficou uma tapera.


Infopédia:

tia 5. coloquial mulher solteira
coloquial ficar para tia - não casar

tapera (Brasil)

1. casa em ruínas
2. terreno ou aldeia abandonada e invadida pelo mato

Do tupi ta'pera, «aldeia extinta»




segunda-feira, 28 de outubro de 2019

Sazonais eternidades (Mia Couto)



SAZONAIS ETERNIDADES

Abres-me, janela,
e antigas memórias
me salpicam o rosto,
chuvas ainda por desabar.

Escancaradas portadas,
devolvem-me o corpo,
esse mesmo corpo
que, para febre e desejo,
em outro corpo acendi.

Abres-me, saudade
e o tempo se descalça
pra atravessar
incandescentes brasas.

E quando,
de novo, me encerras
volto a dormir
como dormem os rios
em véspera de serem água.

A saudade
é o que ficou
do que nunca fomos.

Mia Couto

Do seu livro Tradutor de chuvas (2011)


sexta-feira, 25 de outubro de 2019

A Senhora do Retrato (Manuel Alegre)

Pintura de Zinaida Serebryakova


Os retratos a óleo fascinam-me. E ao mesmo tempo assustam-me. Sempre tive medo que as pessoas saíssem das molduras e começassem a passear pela casa. Para falar verdade, estou convencido que isso aconteceu algumas vezes. Em certas noites, quando eu era pequeno, ouvia passos abafados e tinha a sensação de que a casa ficava subitamente cheia de presenças. Ainda hoje não gosto de atravessar os longos corredores das velhas casas com grandes retratos pendurados nas paredes. Há olhos que nos seguem do alto e nunca se sabe o que de repente pode acontecer.

Havia na casa da tia Hermengarda um quadro deslumbrante. Ficava ao cimo das escadas, à entrada do corredor que dava para os quartos de dormir. Mesmo assim, rodeado de sombras, irradiava uma luz que só podia vir de dentro da dama do retrato. Não sei se da blusa muito branca, se dos olhos, às vezes verdes, às vezes cinzentos. Não sei se do sorriso, às vezes alegre, às vezes triste. Eu parava muitas vezes em frente do retrato. Era talvez o único que não me assustava. Creio até que dele se desprendia uma luz benfazeja, que de certo modo me protegia.

Mas havia um mistério. Ninguém me dizia quem era a senhora do retrato. Arminda, a criada velha, benzia-se quando passava diante do quadro. Às vezes fazia figas e estranhos sinais de esconjuração. A prima Luísa passava sem olhar.

- Essa pergunta não se faz - disse-me um dia em que lhe perguntei quem era aquela senhora.

Percebi que não gostava dela e que era um assunto proibido. Até a minha mãe me ralhou e me pediu para nunca mais fazer tal pergunta. Mas eu não resistia. Por vezes descaía-me e dava comigo a perguntar quem era a senhora dos olhos verdes, quase cinzentos, que me sorria de dentro do retrato.

Com a minha tia-avó, eu tinha uma relação especial. Ela lia-me histórias e poemas inquietantes. Creio que troçava das convenções, talvez das próprias pessoas. Por vezes era difícil saber quando estava a sério ou a brincar. Apesar de já ser muito velha, tinha um sentido agudo do ridículo. Foi a primeira pessoa verdadeiramente subversiva que conheci. Era óbvio que tinha um fraco por mim. Pelo menos era o único membro da família a quem ela tratava como um igual. Dormia no andar de baixo e nunca subia as escadas. Talvez por isso eu nunca lhe tinha perguntado quem era a senhora do retrato.

Um dia, farto já de tanto mistério e ralhete e, sobretudo, das gaifonas da Arminda e do ar empertigado da prima Luísa, não me contive e perguntei-lhe. A minha tia sorriu. Depois levantou-se, pegou no molho de chaves que trazia preso à cintura, abriu uma gaveta da escrevaninha e tirou um álbum muito antigo. Voltou a sentar-se e lentamente começou a mostrar-me as fotografias. Eram quase todas da senhora do retrato e do meu primo Bernardo, que há muito tinha partido para a África do Sul.

Apareciam juntos a cavalo e de bicicleta. E também de fato de banho, na praia da Costa Nova. Havia alguns em que o meu primo estava de smoking e ela de vestido de noite. Via-se também a tia Hermengarda, mais nova, por vezes os meus pais, gente que eu não conhecia. Até que chegámos à senhora do retrato já de branco vestida.

- Natacha - murmurou a minha tia, com uma névoa nos olhos.

E depois de um silêncio:

- Ela chama-se Natália, mas eu gosto mais de Natacha, sempre a tratei assim. É preciso dizer que a tia Hermengarda tinha vivido em Moscovo no início da carreira diplomática do marido e era uma apaixonada dos autores russos, Pushkine, Dostoievski, principalmente Tolstoi, que visitou algumas vezes em Isnaia Poliana. Identificava-se com as personagens de Guerra e Paz. Creio que amava secretamente o príncipe André e gostava de ter sido Natacha. Falava muito da alma russa. Era uma propensão do seu espírito.

- Tu também tens alma russa - dizia-me. E era como se me tivesse armado cavaleiro.


Manuel Alegre





segunda-feira, 21 de outubro de 2019

"E o «doutor», meu Deus! Esse banal e tão português «senhor doutor»? "(Mário Dionísio)



Andei tantos anos lá por fora! Foram tantos, na verdade, que quase me esqueci de alguns usos e costumes da terra onde nasci, a minha pátria.

Com efeito! Os franceses governam-se com um tu e um vous, um Monsieur, um Madame, um Mademoiselle e já está. No dia-a-dia, digo eu. Os povos de língua inglesa (esses então!) resolvem tudo com um bendito you. Ou pouco mais. Até os espanhóis, tão dados ao saracoteio, além do tu, se ficam normalmente por um bom e expressivo usted, como um remate de frenéticas castanholas: chega bem. Só nós –pobres de nós!, nesta terrinha esguia entre a Europa e o mar–, nos agarramos a uma ensarilhada gama de fórmulas obsoletas, ou que assim me parecem, no nosso convívio diário. Gama tão subtil e caprichosa que nem sempre nós próprios sabemos qual escolher. Será preciso dizer mais? Além do «tu», que é da ordem natural das coisas, há o «vós» (o solene e untuoso «vós»: pensastes, quiserdes, julgaríeis), já quase morto, o coitado, mas ainda estrebuchando com vigor, o «vocemecê» ou «vomecê», o agora universal «você», ainda não há muito recebido à patada: «Você é estrebaria!»

E o «Senhor», o «Senhora», o «Menina», o «Dona», o «Senhora Dona», o «Vossa Excelência» ou «Vocelência» ou «Vossência», o «Excelentíssimo Senhor», o «Excelentíssima Senhora». E, ainda, o «Excelentíssima Senhora Dona», o «Ilustríssimo Senhor», o «Vossa Senhoria». Estará a lista completa? O «Senhora», «Senhora Dona» ou só «Dona» já me puseram, e por mais de uma vez, em situações embaraçosas. Que sempre corrigi a tempo por uma espécie de intuição que só posso atribuir a profundas ligações de consaguinidade. A vendedeira de hortaliça do mercado onde cá em casa se abastecem normalmente é a senhora Josefa. Claro. Não a D. Josefa. E nunca por nunca ser senhora D. Josefa. A proprietária da lojeca onde compro os jornais e os cigarros, já não poderei eu tratá-la por senhora Margarida (incorreção das grandes), mas por D. Margarida, prova de distinção, ainda que modesta. Um est modus in rebus. Longe, portanto, de senhora Margarida, mas também de senhora D. Margarida, tratamento a que ela não tem de aspirar. E a sua vizinha do lado, esposa dum funcionário das Finanças ou lá que é, só legitimamente pode ser senhora D. Catarina. Não trabalha. Só D. Catarina implicaria excessiva ou menor consideração. E senhora Catarina, nem brincando. Isso era grosseria de se levar com a porta na cara.

Toda a gente me diz que nos últimos anos (de algo terá servido o 25 de Abril) está em curso uma certa evolução. Muito lenta, claro está. Nisto, como em tudo, um sonolento arrastar de caracol. [ ... ]

E o «doutor», meu Deus! Esse banal e tão português «senhor doutor»? Essa leitura da abreviatura por contracção («dr.») do grau de licenciado, que meio país continua a cobiçar? Quem não quer ser «doutor», ainda que só «dr.» - vantagens do código oral sobre o código escrito? Quem não fará tudo para isso, os pais empenhando o que têm e não têm, os filhos estudando, claro, ou inventando mil processos de irem fazendo cadeiras e mais cadeiras, até obterem o sagrado diploma que da jus ao desejado tratamento? Porque –isto me espanta mais que tudo–, no país de que estive ausente tanto tempo mas é o meu país (a gente pode andar lá por fora a vida inteira mas não quer outra pátria), tal título continua a proporcionar benesses que o simples “senhor” nunca deu nem dará. Apesar –é notável!– da abundância já inflacionária daqueles que o usam. Facilita coisas, abre portas, encurta ou alarga prazos. […]

Mário Dionísio

«O Meu Reino (Se o Tivesse) por Um Cavalo de Pau», in Monólogo a Duas Vozes, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1986.




sexta-feira, 18 de outubro de 2019

Forma, só forma (Manuel António Pina)



FORMA, SÓ FORMA

Brincarei ainda na infância
lembrando-me agora?
E que recordação
me pensa a esta hora?

O que sou passou
pela minha existência,
tenho uma presença
mas já lá não estou:

sou também lembrança
de alguém em algum sítio,
onde não alcança
o que, lembrado, sinto.

E aí repousa já
tornado esquecimento
um dia que virá
há muito, muito tempo.

Manuel António Pina

Cuidados Intensivos (1994)



segunda-feira, 14 de outubro de 2019

Um conto angolano contado por Ana Sofia Paiva


Ana Sofia Paiva

Nasceu em Lisboa em 1981. Formada pela Escola Superior de Teatro e Cinema, graduou-se em teatro e mais tarde especializou-se em Promoção e Mediação da Leitura na Universidade do Algarve. Paralelamente ao seu trabalho de actriz, dedica-se desde 2007 à narração de contos, dentro e fora de Portugal. É membro do Instituto de Estudos de Literatura Tradicional da Universidade Nova de Lisboa e da cooperativa Memória Imaterial, onde trabalha como investigadora, transcritora e recolectora de folclore poético e narrativo.

Narração oral - Narradores em Portugal


PASSADO E FUTURO

Iam dois homens por um caminho, caminhando, caminhando, caminhando. No meio do caminho pararam; encontraram outro homem, aquele que consegue extrair o vinho da palmeira.
–Ei, ei! Queremos vinho de palma; dá-nos vinho de palma!
–Eu dou-vos vinho de palma em troca dos vossos nomes.
O primeiro homem deu um passo em frente e disse:
–O meu nome é De Onde Viemos.
O outro homem ficou atrás e disse:
–O meu nome é Para Onde Vamos.
–De Onde Viemos, que belo nome! Quero. Para Onde Vamos é nome errado! A ti não te dou o vinho.
Os homens começaram a discutir e como não conseguiam chegar a um acordo, puseram-se a caminho. Iam três homens por um caminho, caminhando, caminhando, caminhando, caminhando à procura do juiz.
No fim do caminho, encontraram o juiz. Fizeram as suas queixas. O juiz ouviu, pensou e disse:
–Homem, erraste! Para Onde Vamos tem razão. Porque De Onde Viemos já passou, já nada nos pode dar, mas Para Onde Vamos, esse é o lugar onde iremos encontrar tudo aquilo que houver para encontrar.


Recolha de Héli Chatelain em Angola, a Jelemía dia Sabatelu, em finais do século XIX. Versão oral de Ana Sofia Paiva.

"Mar de Letras", RTP África | Fev 2017



quinta-feira, 10 de outubro de 2019

A virgindade das palavras (Manoel de Barros)

Fotografia de Gogliardo Maragno


A VIRGINDADE DAS PALAVRAS

Os governos mais sábios deveriam contratar os poetas para o trabalho de restituir a virgindade a certas palavras ou expressões, que estão morrendo cariadas, corroídas pelo uso em clichés. Só os poetas podem salvar o idioma da esclerose. Além disso a poesia tem a função de pregar a prática da infância entre os homens.

Se for para tirar gosto poético vai bem perverter a linguagem. Não bastam as licenças poéticas, é preciso ir até às licenciosidades. Temos de molecar o idioma para que ele não morra de clichés. Subverter a sintaxe até à castidade: isto quer dizer: até obter um texto casto. Um texto virgem que o tempo e o homem ainda não tenham espolegado.

O nosso paladar de ler anda com tédio. É preciso propor novos enlaces para as palavras. Injectar insanidade nos verbos para que transmitam aos nomes seus delírios. Há que se encontrar a primeira vez de uma frase para ser-se poeta nela. Mas isso é tão antigo como menino mijar na parede. Só que foi dito de outra maneira.

Se você prende uma água, ela escapará pelas frinchas. Se você tirar de um ser a liberdade, ele escapará por metáforas. No internato, longe de casa, eu não sabia o que fazer e fiz um aparelho de ser inútil. E comecei a brincar com ele. Um padre disse: - Não presta para nada; há-de ser poeta!

20/06/1997

Manoel de Barros



A fotografia de Gogliardo Maragno vai acompanhada dos três últimos versos deste poema de Manoel de Barros, que pertence a “Caderno de Apontamentos”, uma das partes do livro Concerto a céu aberto para solos de aves (1991)

 XIII.

Certas palavras têm ardimentos; outras, não.
A palavra jacaré fere a voz.
É como descer arranhando pelas escarpas de um
serrote.
É nome com verdasco de lodo no couro.
Além disso é agríope (que tem olho
medonho).
Já a palavra garça tem para nós um
sombreamento de silêncios…
E o azul seleciona ela!


Um jacaré


segunda-feira, 7 de outubro de 2019

A ortografia é estúpida (Isabela Figueiredo)



A ORTOGRAFIA É ESTÚPIDA

O meu pai escrevia o meu nome com "e". Enviava fotos legendadas à minha avó dizendo, "nesta, vê-se a Esabela a brincar com os gatos de um cantineiro nosso amigo".

Após conferência comigo sobre o assunto, o meu pai, que não era linguista, nem nada que se pareça, concluiu que escrevia Isabela com "e", e via dessa forma o nome, porque aprendera a grafá-lo assim quando andara na escola. Anos 30. Que nos anos 60 lhe tenham registado administrativamente o nome da filha com i, isso já era assunto que o transcendia, coisas lá do registo, porque quando pronunciou Isabela, o que enunciou foi Esabela. Não me sabia explicar por que motivo o "e" se tinha transformado em "i", tinha apenas uma pista: aquela a que chamávamos rainha Isabel II de Inglaterra, em inglês chamava-se Elisabeth, portanto o meu nome devia ser uma tradução. Devia ser Elisabeta, Elisabela, e depois, sabe-se lá como, Isabela. Achávamos nós, mas nunca ninguém nos explicou, porque não tínhamos nenhum doutor na família, e livros só na biblioteca itinerante da Gulbenkian.

Mais tarde, no colégio, o meu director, que tinha 90 anos nos anos 70, chamava-me igualmente a sua Esabela, nome próprio que escrevia em todos os documentos oficiais do colégio, o que muito me exasperava: a sua Esabela, a sua Zabelita. Na secretaria alguém lhe corrigia a grafia, para bem do meu processo curricular oficial.

O que o meu pai e o sr. Ilídio faziam era manter uma antiga regra ortográfica que aprenderam como correcta. Era como se alguém agora me viesse dizer que privilégio passou a escrever-se previlégio. Ou, afinal, que já não se escreve "emoção" e "elegante" mas, por força do uso fonético indevido, "imoção" e "ilegante". Meu Deus, meu Deus, tranformar o "e" num "i" que poderia ser confundido com um prefixo de negação em vocábulos que nada negam. Ultraje. E que violência!

As questões ortográficas levantam muitas questões emocionais, porque me parece que cada um de nós sente a ortografia como parte da sua identidade; como a caligrafia, o timbre da voz, a cor dos olhos, as linhas das mãos. É, portanto, impensável alterar essa parte da nossa identidade. É uma resistência, mas não um capricho. As pessoas têm as suas razões. Quem aprendeu a escrever Esabela com "e", e assim formou a sua identidade linguística, tem o direito de continuar a fazê-lo. Exactamente como quem escreve farmácia com ph. Sou cliente da Pharmácia Mendes da Silva. Qual é o problema? É apenas uma palavra escrita com uma ortografia que para mim é arcaica, mas eu tenho que conviver linguistica, social e civicamente com tantas outras atitudes arcaicas, e algumas bem graves.... e que remédio! É apenas uma palavra!

Tanto compreendo que os intelectuais, cultos, aculturados sejam contra o acordo ortográfico como que, ao povão, o assunto, rigorosamente, não interesse. Peço muita desculpa, sobretudo aos professores de Português que se descabelam corrigindo composições pejadas de erros ortográficos, e se matam em nome de uma norma, mas a ortografia é como as plantas selvagens: nasce onde calha, como calha, e o que interessa é que consiga sobreviver, realizar a fotossíntese e morrer quando chega o Inverno. A ortografia, desculpem-me, é estúpida como um calhau. Já conheci pessoas de uma enorme inteligência emocional e científica que, ao escrever uma frase, era cada tiro ortográfico, cada melro. Portanto, isto com toda a sinceridade, eu quero que a ortografia... vá dar uma volta, por exemplo. Já a sintaxe pia mais fininho, porque reflecte a organização do pensamento. A sintaxe está coladinha ao raciocínio lógico-dedutivo.

A ortografia consiste num conjunto de regras que permitem registar as emissões sonoras da língua. Ponto final. O objectivo primeiro é comunicar. Ponto parágrafo. O objectivo segundo, parecer bem e ascender social e profissionalmente. Ou seja, escrever de acordo com a norma e conhecer as regras da ortografia categoriza os indivíduos como melhores ou piores, o que é de um elitismo que só a nossa sociedade, irracional, pode encaixar e suportar. Mas ninguém é obrigado a grafar correctamente, se não teve os meios para isso, ou se não quis. É esse o motivo por que qualquer entidade pública ou privada é obrigada a aceitar e responder a uma reclamação, petição, impugnação, seja qual for o nível de correcção ortográfica que se apresente, desde que a mensagem se faça comunicar. Porque a língua serve para comunicar, e o resto é estilo.

A minha mãe fez a terceira classe com regente, porque o meu avô era um homem progressista, e retirou os filhos à fazenda para os levar à escola - olhem que no Ribatejo, nos anos 30, poucos pais do campo manifestavam preocupações desta ordem. Regalo-me ao ler as listas de compras que a minha mãe me escreve. Sorrio com ternura porque aquilo é que é mesmo o Português verdadeiro, o portuguezinho retinto: um quilo de arrôs; um pacote de maça pevide; maçãs de Alcobaça, das pequenas; um quilo de qivis; trez crujetes para sopa; grão; fajão; grêlos; cove branca... Quando leio as listas da minha mãe, que são perfeitas, que se comunicam melhor que Deus, lembro-me sempre de quem quase vive ou morre porque uma consoante muda pode cair.

Do que eu gosto nas línguas é do seu carácter insurrecto. É o que queremos dizer quando largamos aquela frase, que soa muito bem, sobre as línguas serem organismos vivos. Um organismo vivo evolui, adapta-se, muda. E é assim sem tirar nem pôr. As línguas estão-se nas tintas para o que pensamos que elas devem ser. São o que lhes dá mais jeito. Tanto na sua forma verbal oral como escrita. E vencem. Isso de associarmos diversas questões de classe e poder ao exercício da língua transcende-as. Querem elas lá saber se as legislam! Quando as legislam já elas estão além.

Sobre o acordo ortográfico, sinceramente, gasta-se muita tinta. As pessoas devem escrever como são capazes, e deixar os outros escrever como sabem e podem, excepção seja feita aos professores de Português que devem ensinar a norma em vigor e corrigir os desvios. Não creio que um acordo ortográfico, mesmo que concordando com ele na sua essência, que é o meu caso, sirva os indivíduos já formados como eu. O acordo ortográfico servirá parcialmente aqueles que ainda estão no sistema de ensino e que já escreviam acto sem t, e a nível profundo os que forem agora para a escola, fenómeno que se tornará visível dentro de década e meia. Nessa altura talvez cada um de nós comece a mudar, devagarinho. Para os que têm medo que ato se torne confuso, não se sabendo quando é um verbo ou um nome, resta-me sossegá-los lembrando-lhes que todos os enunciados linguísticos dependem de um contexto, e não vivem fora dele; como vale, que pode ser postal, ou verbo valer, ou designação geográfica. E se há confusão perguntamos, vale, que vale?

E rio. Eu, às vezes, rio ao pé do rio. Às vezes digo à senhora dos correios que não vale a pena mandar o vale, porque o carteiro não faz distribuição naquele vale, lá tão longe, para lá do rio onde tantas vezes me rio, rio, rio.

A mim o que chateia mesmo, mesmo a sério é o dente do siso do lado esquerdo. Dói-me. Tem um buraco até aos joelhos, e nem tempo tenho de o ir arrancar. Se houvesse aí alguém com um tira-dentes à século XIX, eu tomava uns Xanaxes antes, e uns Clavamoxes depois, e resolvia-se a empreitada, hein?! E o blogue continuava interactivo...

Isabela Figueiredo

Retirado do seu blogue -fora a fotografia- O Mundo Perfeito (6 de junho de 2008)




terça-feira, 1 de outubro de 2019

Saudade (João Guimarães Rosa)



SAUDADE

Saudade de tudo!...

Saudade, essencial e orgânica,
de horas passadas
que eu podia viver e não vivi!...
Saudade de gente que não conheço,
de amigos nascidos noutras terras,
de almas órfãs e irmãs,
de minha gente dispersa,
que talvez ainha hoje espere por mim...

Saudade triste do passado,
saudade gloriosa do futuro,
saudade de todos os presentes
vividos fora de mim!...

Pressa!...
Ânsia voraz de me fazer em muitos,
fome angustiosa da fusão de tudo,
sede da volta final
da grande experiência:
uma só alma em um só corpo,
uma só alma-corpo,
um só,
um!...
Como quem fecha numa gota
o Oceano,
afogado no fundo de si mesmo...

 João Guimarães Rosa



sexta-feira, 27 de setembro de 2019

Escada sem corrimão (David Mourão-Ferreira)

Fotografia de João Eduardo Figueiredo


ESCADA SEM CORRIMÃO

É uma escada em caracol
e que não tem corrimão.
Vai a caminho do Sol
mas nunca passa do chão.

Os degraus, quanto mais altos,
mais estragados estão.
Nem sustos nem sobressaltos
servem sequer de lição.

Quem tem medo não a sobe.
Quem tem sonhos também não.
Há quem chegue a deitar fora
O lastro do coração.

Sobe-se numa corrida.
Corre-se p'rigos em vão.
Adivinhaste: é a vida
a escada sem corrimão.

David Mourão-Ferreira




segunda-feira, 23 de setembro de 2019

No corpo (Ferreira Gullar)

Fotografia de Alexandre D...


NO CORPO

De que vale reconstruir com palavras
o que o verão levou
entre nuvens e risos
junto com o jornal velho pelos ares?

O sonho na boca, o incêndio na cama,
o apelo na noite
agora são apenas esta
contração (este clarão)
de maxilar dentro do rosto.

A poesia é o presente.

Ferreira Gullar



sexta-feira, 20 de setembro de 2019

Pequena Elegia de Setembro (Eugénio de Andrade)

Fotografia de César Augusto V. R.


PEQUENA ELEGIA DE SETEMBRO

Não sei como vieste,
mas deve haver um caminho
para regressar da morte.

Estás sentada no jardim,
as mãos no regaço cheias de doçura,
os olhos pousados nas últimas rosas
dos grandes e calmos dias de setembro.

Que música escutas tão atentamente
que não dás por mim?
Que bosque, ou rio, ou mar?
Ou é dentro de ti
que tudo canta ainda?

Eugénio de Andrade