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segunda-feira, 23 de abril de 2018

Menina a caminho (Raduan Nassar)



Nesta sala atulhada de mesas, máquinas e papéis, onde invejáveis escreventes dividiram entre si o bom senso do mundo, aplicando-se em idéias claras apesar do ruído e do mormaço, seguros ao se pronunciarem sobre problemas que afligem o homem moderno (espécie da qual você, milenarmente cansado, talvez se sinta um tanto excluído), largue tudo de repente sob os olhares a sua volta, componha uma cara de louco quieto e perigoso, faça os gestos mais calmos quanto os tais escribas mais severos, dê um largo “ciao” ao trabalho do dia, assim como quem se despede da vida, e surpreenda pouco mais tarde, com sua presença em hora tão insólita, os que estiveram em casa ocupados na limpeza dos armários, que você não sabia antes como era conduzida. Convém não responder aos olhares interrogativos, deixando crescer, por instantes, a intensa expectativa que se instala. Mas não exagere na medida e suba sem demora ao quarto, libertando aí os pés das meias e dos sapatos, tirando a roupa do corpo como se retirasse a importância das coisas, pondo-se enfim em vestes mínimas, quem sabe até em pêlo, mas sem ferir o decoro (o seu decoro, está claro), e aceitando ao mesmo tempo, como boa verdade provisória, toda mudança de comportamento. Feito um banhista incerto, assome em seguida no trampolim do patamar e avance dois passos como se fosse beirar um salto, silenciando de vez, embaixo, o surto abafado dos comentários. Nada de grandes lances. Desça, sem pressa, degrau por degrau, sendo tolerante com o espanto (coitados!) dos pobres familiares, que cobrem a boca com a mão enquanto se comprimem ao pé da escada. Passe por eles calado, circule pela casa toda como se andasse numa praia deserta (mas sempre com a mesma cara de louco ainda não precipitado) e se achegue depois, com cuidado e ternura, junto à rede languidamente envergada entre plantas lá no terraço. Largue-se nela como quem se larga na vida, e vá ao fundo nesse mergulho: cerre as abas da rede sobre os olhos e, com um impulso do pé (já não importa em que apoio), goze a fantasia de se sentir embalado pelo mundo.

Raduan Nassar

Texto extraído do livro Menina a caminho, SP: Companhia das Letras, 1997.


 Lido na Revista Macondo


terça-feira, 7 de junho de 2016

Raduan Nassar, Prémio Camões 2016

Fotografia: Paulo Pinto


Raduan Nassar: o Prémio Camões que abandonou a literatura

Sem comentários, o brasileiro e ex-escritor Raduan Nassar recebeu a notícia de que lhe fora atribuído o grande troféu da língua portuguesa, o Prémio Camões. A chamada de Portugal encontrou-o em casa, na fazenda de Lagoa do Sino, a três horas de carro de São Paulo. Ali, onde seria errado dizer que se retirou, tem vivido nas últimas três décadas, dedicado à agricultura. O prémio que reclama a consagração de toda uma obra literária apanhou-o de surpresa. Recusou-se uma vez mais a dar entrevistas, como tem feito desde que se desinteressou da literatura, mas ainda revelou o seu espanto a um jornalista do Folha de S. Paulo: «Eu não entendi esse prémio, minha obra é um livro e meio!». E ficou por isso, rindo-se.

Continuou a repetir o mesmo a amigos e aos jornalistas... «Mas uma obra tão minguada...» E é. Um romance e uma novela – Lavoura Arcaica (1975) e Um Copo de Cólera (1978) –, para lá disso só um pequeno volume de contos, Menina a Caminho (1997), reunido já longos anos após ter virado as costas à literatura. Depois há um ensaio que até hoje permanece inédito em português, ‘A Corrente do Esforço Humano’, publicado na Alemanha em 1987, e, na mesma situação, um conto isolado ‘O Velho’, que fez parte de uma antologia francesa (Des Nouvelles du Brésil) publicada em 1998.

Só lendo as não muitas mas certamente bastantes páginas que este brasileiro de origem libanesa, hoje com 80 anos, deixou para se entender como não foi preciso mais para fazer dele um nome incontornável da nossa literatura. Entre as várias vozes que saudaram a escolha de Raduan Nassar, o escritor brasileiro Milton Hatoum – também de ascendência libanesa, e que recebeu a bênção do outro quando começou a publicar – talvez seja quem mais possa ter a dizer, uma vez que é em grande medida o mais notável dos herdeiros da influência literária daquele autor culto. «Foi um prémio merecido por sua obra plena e poderosa», disse Hatoum, lembrando que o mexicano Juan Rulfo também só publicou um romance e um livro de contos – Pedro Páramo e A Planície em Chamas, tendo sido publicado já postumamente a novela O Galo de Ouro (1980) – o que não o impediu de deixar um legado que transformou a paisagem literária sul-americana, sendo atribuída às suas pouco mais de 300 páginas um papel fundador do chamado realismo mágico. (...)


A notícia completa no semanário Sol (4-6-2016)


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Em maio de 2012 foi publicado neste blogue um trecho da obra prima de Raduan Nassuar, Lavoura arcaica.

Voltamos a esta obra. É assim que começa:


Os olhos no teto, a nudez dentro do quarto; róseo, azul ou violáceo, o quarto é inviolável; o quarto é individual, é um mundo, quarto catedral, onde, nos intervalos da angústia, se colhe, de um áspero caule, na palma da mão, a rosa branca do desespero, pois entre os objetos que o quarto consagra estão primeiro os objetos do corpo; eu estava deitado no assoalho do meu quarto, numa velha pensão interiorana, quando meu irmão chegou pra me levar de volta; minha mão, pouco antes dinâmica e em dura disciplina, percorria vagarosa a pele molhada do meu corpo, as pontas dos meus dedos tocavam cheias de veneno a penugem incipiente do meu peito ainda quente; minha cabeça rolava entorpecida enquanto meus cabelos se deslocavam em grossas ondas sobre a curva úmida da fronte; deitei uma das faces contra o chão, mas meus olhos pouco apreenderam, sequer perderam a imobilidade ante o vôo fugaz dos cílios; o ruído das batidas na porta vinha macio, aconchegava-se despojado de sentido, o floco de paina insinuava-se entre as curvas sinuosas da orelha onde por instantes adormecia; e o ruído se repetindo, sempre macio e manso, não me perturbava a doce embriaguez, nem minha sonolência, nem o disperso e esparso torvelinho sem acolhimento; (...)







segunda-feira, 28 de maio de 2012

Lavoura arcaica (Raduan Nassar)



O tempo é o maior tesouro de que um homem pode dispor; embora inconsumível, o tempo é o nosso melhor alimento; sem medida que o conheça, o tempo é contudo nosso bem de maior grandeza: não tem começo, não tem fim; é um pomo exótico que não pode ser repartido, podendo entretanto prover igualmente a todo mundo; onipresente, o tempo está em tudo; existe tempo, por exemplo, nessa mesa antiga: existiu primeiro uma terra propícia, existiu depois uma árvore secular feita de anos sossegados, e existiu finalmente uma prancha nodosa e dura trabalhada pelas mãos de um artesão dia após dia; existe tempo nas cadeiras onde nos sentamos, nos outros móveis da família, nas paredes da nossa casa, na água que bebemos, na terra que fecunda, na semente que germina, nos frutos que colhemos, no pão em cima da mesa, na massa fértil dos nossos corpos, na luz que nos ilumina, nas coisas que nos passam pela cabeça, no pó que dissemina, assim como em tudo que nos rodeia; rico não é o homem que coleciona e se pesa no amontoado de moedas, e nem aquele, devasso, que se estende, mãos e braços, em terras largas; rico só é o homem que aprendeu, piedoso e humilde, a conviver com o tempo, aproximando-se dele com ternura, não contrariando suas disposições, não se rebelando contra seu curso, não irritando sua corrente, estando atento para o seu fluxo, brindando-o antes com sabedoria para receber dele os favores e não a sua ira; o equilíbrio da vida depende essencialmente deste bem supremo, e quem souber com acerto a quantidade de vagar, ou a de espera, que se deve pôr nas coisas, não corre nunca o risco, ao buscar por elas, de defrontar-se com o que não é; por isso ninguém em nossa casa a de dar o passo mais largo que a perna: dar o passo mais largo que a perna é o mesmo que suprimir o tempo necessário à nossa iniciativa; (...)

Raduan Nassar

Trecho do seu livro Lavoura arcaica (1975)


Raduan Nassar (1935) é considerado, apesar da brevidade da sua obra, um dos melhores escritores brasileiros. Nesta página de Releituras há dados biográficos e bibliográficos sobre o autor.