domingo, 23 de setembro de 2018

Glosa à chegada do outono (Jorge de Sena)

Fotografia de Antonio Gutiérrez



GLOSA À CHEGADA DO OUTONO

O corpo não espera. Não. Por nós
ou pelo amor. Este pousar de mãos,
tão reticente e que interroga a sós
a tépida secura acetinada,
a que palpita por adivinhada
em solitários movimentos vãos;
este pousar em que não estamos nós,
mas uma sêde, uma memória, tudo
o que sabemos de tocar desnudo
o corpo que não espera; este pousar
que não conhece, nada vê, nem nada
ousa temer no seu temor agudo...

Tem tanta pressa o corpo! E já passou,
quando um de nós ou quando o amor chegou

Jorge de Sena



quinta-feira, 20 de setembro de 2018

"Ando um pouco acima do chão" (Daniel Faria)




Ando um pouco acima do chão
Nesse lugar onde costumam ser atingidos
Os pássaros
Um pouco acima dos pássaros
No lugar onde costumam inclinar-se
Para o voo

Tenho medo do peso morto
Porque é um ninho desfeito

Estou ligeiramente acima do que morre
Nessa encosta onde a palavra é como pão
Um pouco na palma da mão que divide
E não separo como o silêncio em meio do que escrevo

Ando ligeiro acima do que digo
E verto sangue para dentro das palavras
Ando um pouco acima da transfusão do poema

Ando humildemente nos arredores do verbo
Passageiro num degrau invisível sobre a terra
Nesse lugar das árvores com fruto e das árvores
No meio de incêndios
Estou um pouco no interior do que arde
Apagando-me devagar e tendo sede
Porque ando acima da força a saciar quem vive
E esmago o coração para o que desce sobre mim

E bebe


Daniel Faria
(1971-1999)



"Daniel Faria (1971 - 1999)", em modo de usar & co. Há mais poemas.


"Daniel Faria: o rapaz raro" (Público, 14-7-2001)


"Un mito de la poesía portuguesa
Daniel Faria es, probablemente, el poeta de su generación que ha dejado una huella más profunda en la poesía portuguesa"

(El País, 3-6-2015)



segunda-feira, 17 de setembro de 2018

Amoras segundo S. Francisco (A.M. Pires Cabral)

Fotografia de ghe silva



AMORAS SEGUNDO S. FRANCISCO

Como as inquietas aves ribeirinhas,
também nós fazemos em Agosto
a nossa safra de amoras,
evitando com prudência os picos
que as dificultam e tornam cobiçadas.

Bendita sejas, irmã silva, que nos dás
as amoras e os picos.

Que de tudo se precisa nesta vida.
(Na outra, por enquanto não se sabe.)

A.M. Pires Cabral




sexta-feira, 14 de setembro de 2018

"Exmo Senhor Presidente, você não sabe que...?" (Isabel Hub Faria)





Tentando ultrapassar a espuma dos dias e ir para além do que é o debate superficial ou a ausência de debate sobre o país que caracteriza as campanhas, o PÚBLICO [em 2012] desafiou 14 intelectuais portugueses, que normalmente não tomam posição política ou sobre ela não são solicitados pela comunicação social, para darem a conhecer as suas reflexões sobre o país e pronunciarem o discurso que nunca foi feito. 



Exmo Senhor Presidente, você não sabe que...?"

Não sei se me apetece falar de alguma coisa. Não me apetece falar de qualquer coisa. Talvez, afinal, nem sequer me apeteça falar de coisa nenhuma. Ou seja do que for. Nem com ninguém em particular sobre coisa alguma. Provavelmente já disse tudo o que tinha a dizer. E a sensação é a de que, mesmo que tenha dito tudo, nada mudou, nem em função disso, nem em consequência disso. É fácil observar que os meus sensores são suficientes para receber informação do exterior, mas grande parte dessa informação não desencadeia em mim qualquer vontade ou reacção. Estou entediada. De facto, acho que estou enjoada. "Não há "papo de anjo" que seja o meu derriço" (1). Ou estou farta. Estou farta de fazer o pino e de puxar a carroça. De obrigar a que as coisas aconteçam. De ter as costas largas. E, mesmo que isto me pareça absurdo, estou um bocadinho farta de eleições. Ou talvez, só, desta campanha eleitoral. E, já agora, um bocado farta do país. Da Europa. Dos EUA. Do Mundo. Na verdade, sinto-me lograda. Lograda nos valores e na falta deles. Nas expectativas e na falta delas. Nas ideias que não têm pernas para andar. Nas liberdades e nas restrições. Nos erros graves que ficam por julgar. Na responsabilidade política com força vital de bola de sabão. Não percebo que pretendam que eu vote. Ou será que não pretendem?

Mas, hoje, acordei especialmente bem disposta. E cedo. Tive ganas de começar a falar pelos cotovelos. Sinto que vou distribuir palavras doces já ao pequeno-almoço! O coração cresce. Quem sabe, talvez alguém esteja à espera da minha palavra-click, uma lufada de ar fresco, um balão de oxigénio, um trampolim de força, um alvo de vontade. "... Acaso o nosso destino, tac!, vai mudar?" (2). Estou pronta a partir. Estou pronta para outra. Estou viva. Estou ávida. Não vale a pena contrariarem-me. Vou querer mandar recados. Estou mesmo capaz, enquanto espero, de escrever já à Senhora Ministra da Educação a sugerir que institua, desde a primeira aula do ensino básico, o ensino e a prática de cada falante saber como apresentar-se oralmente, como saudar, como pedir a palavra e intervir, como utilizar as formas correctas de tratamento em português europeu! Quem sabe, talvez dispuséssemos, de aqui a alguns anos, de cidadãos mais intervenientes e mais correctos nas suas intervenções. É que ainda estou lembrada de uma faixa que uma associação de estudantes do ensino superior tinha pendurado à porta da escola, por altura de uma visita do Presidente da República, e que começava assim: "Exmo Senhor Presidente, você não sabe que...?"

Muitos se questionam por que razão a Língua Portuguesa, sendo a terceira língua europeia mais falada no mundo, é tantas vezes "passada para trás", em situações e organismos institucionais em que seria natural que se encontrasse bem defendida e representada. Até ao presente, o conjunto dos países que têm o Português como língua oficial não tem sido capaz de apresentar uma política de língua conjunta, pelo que, em vez de uma dimensão internacional bem reconhecida, a Língua Portuguesa tem estado ao dispor dos que, refastelados numa ignorância empertigada ou albergados numa globalização interesseira, a consideram uma espécie de variedade "algo estranha" do Espanhol.

Urge, pois, repensar o Português a nível nacional e internacional. Portugal tem de avançar na identificação do que pode e deve fazer relativamente ao ensino do Português como língua materna, ao ensino do Português como segunda língua aos cidadãos estrangeiros que residem em Portugal, e ao ensino do Português como língua estrangeira, com especial atenção ao ensino no interior da União Europeia. Variantes relativamente frequentes, algumas até inusitadas, da relação pátria-língua portuguesa poderiam também chamar a atenção do nosso futuro PR para a necessidade de zelar pelo regular funcionamento desta nossa instituição!

Isabel Hub Faria
Linguista, professora catedrática da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa


(1) Alexandre O"Neill (1965) Portugal, Feira Cabisbaixa.
(2) Alexandre O"Neill (1958) Se, No Reino da Dinamarca.


Publicado no jornal Público a 18 de janeiro de 2006






quinta-feira, 13 de setembro de 2018

Não tenho telemóvel (Henrique Manuel Bento Fialho)



Não tenho telemóvel. Carrego o fardo de ter de transportar uma amostra, por a isso ser obrigado pela empresa para a qual trabalho. Material rasco, felizmente. Quando o digo, há quem se espante. Como consegues? A minha dúvida é precisamente a oposta: como conseguem as pessoas andar com o mundo no bolso? Custa-me tanto andar neste mundo que se me torna dificílimo perceber como pode alguém apreciar trazer o mundo tão próximo. Depois vêm-me com os filhos, a eterna desculpa para tudo quanto seja não vivermos a nossa vida. Como faço com os filhos? Enfim, faço como os meus pais faziam. Não me lembro de os meus pais terem precisado de telemóveis para me educarem, até para me controlarem. A geração dos meus filhos vai ser a primeira no mundo para a qual os telemóveis foram uma ferramenta educacional sem a qual pais e mães não saberiam cumprir o seu papel de pais e mães. O telemóvel oferece uma ilusão de controlo sobre os filhos que é contraproducente. Quando mais os julgamos sob controlo, já eles se perderam num mundo que não podemos dominar: aquele que vem dentro dos telemóveis.

Há quem se sinta mais próximo dos filhos por em casa todos terem telemóvel. As minhas filhas oferecem-me amiúde um excelente exemplo dessa proximidade, quando se sentam na sala agarradas aos telemóveis. Podíamos falar, mas não falamos. Elas falam com os telemóveis, jogam com os telemóveis, brincam com os telemóveis, ausentam-se pelos telemóveis adentro deixando um vazio na sala de estar que se torna difícil de superar. Consigo imaginar uma família inteira, todos sentados no mesmo sofá, a comunicarem uns com os outros através dos telemóveis. A enviarem bonequinhos uns para os outros, vídeos curiosos e cenas assim, sem partilharem uma palavra oral, sem escutarem a voz uns dos outros, comunicando por intermédio de algo que deveria ser estranho ao seu corpo não tivesse sido aceite como uma extensão do mesmo.

A relação das pessoas com os telemóveis atemoriza-me, a relação que observo. Por exemplo, quando vou a um concerto e reparo que, em vez de estarem com olhos e ouvidos abertos para o que se passa à sua volta, algumas pessoas estão de braços levantados a ver o concerto através do monitor dos seus telemóveis, gravando, fotografando, momentos que mais tarde experienciarão como se os tivessem experienciado ao vivo. A ideia de concerto ao vivo está prestes a morrer, poucos serão os que dentro em breve estarão dispostos a sentir ao vivo. Preferem sentir ao morto, através dos seus inalienáveis telemóveis. Também observo frequentemente pessoas sentadas ao lado umas das outras, por exemplo nas esplanadas dos cafés ou nos restaurantes, permanentemente fixadas nos telemóveis. Quase não falam, quase não se olham nos olhos, não se observam nem observam os outros como eu as observo. A opção delas é imergirem nos screens dos telemóveis, afagando-os com os dedos como não afagariam as mãos de quem está ali, ao lado delas.

Há exemplos verdadeiramente chocantes deste tipo de relação com o objecto mais querido dos portugueses na actualidade. Notícia de Janeiro: «Em dezembro de 2017, o número de utilizadores de smartphones em Portugal situava-se perto dos 6,8 milhões, o que representa cerca de três quartos do total de utilizadores de telemóvel». Depois temos as selfies com suicídios em pano de fundo, temos obras de arte destruídas por causa da fotografia ideal, temos invasões à privacidade sucessivas e indiscriminadas... Dir-me-ão que só estou a ver o lado mau, que se trata de gente estúpida, que há muita denúncia pertinente que não seria possível sem as gravações em directo, sem o registo de imagens, sem isto e sem aquilo que os telemóveis ajudam a resolver... Não o discuto. Os portugueses podem não ter muita coisa, mas têm de ter um smartphone. É-lhes imprescindível. Para quê conversar com o outro quando tudo quanto podemos saber está ali, à mão de semear, no meu smartphone?

Julgo que os smartphones exercem sobre as pessoas na actualidade a mesma sensação que os revólveres exerciam sobre os pistoleiros no faroeste, uma sensação de poder, de autodomínio, de segurança. Precisas de saber onde encontrar um chaveiro? O teu smartphone indicar-te-á aquele que está mais perto. Precisas de saber o caminho para Amiais de Baixo? O teu smartphone levar-te-á ao destino pretendido. Vão-se a surpresa, o acaso, o belo acidente, vai-se o contacto com o outro, a entreajuda, perde-se definitivamente algo próprio das relações humanas e algo essencial ao ser: estar aberto ao desconhecido. Os smartphones como que nos usurpam o desconhecido, fecham-lhe a porta, encerram-nos numa redoma obtusa que é a de quem fica a temer tudo quanto desconheça, todas as equações que o seu smartphone não saiba resolver. Vai-se a capacidade de problematizar, de reflectir, de criticar, o mundo fica mais plano, menos duvidoso, para tudo parece haver uma resposta pronta, automática. O espanto cinge-se à imagem fantástica, nunca vista, enfim, a todo o tipo de pornografia, não necessariamente sexual, que circula na rede. As distopias do século passado realizam-se em pleno, deixam de ser distopias, passam a ser, quando muito, alegorias frágeis de uma realidade em vigor: a humanidade manipulada por tiranos aos quais adere voluntariamente, os tiranos da comunicação, das novas tecnologias.

Repare-se como as pessoas reagem aos exemplos oferecidos por uma rede social como o Facebook. Noutros tempos, um tipo como Mark Zuckerberg já tinha sido alvo de atentados pelos revolucionários deste mundo, aqueles para quem a liberdade individual não pode ser posta em causa, é um bem absoluto, aqueles para quem os dados pessoais são elementos sagrados de uma identidade impartilhável. Pois bem, os algoritmos fazem milagres. O Facebook pode censurar nus e aceitar decapitações, ninguém sai. Protestam, mandam bocas, mas mantêm-se todos na rede como insectos na teia da aranha. Os tipos mais críticos, ditos mais marginais, aparentemente mais radicais deste mundo e do outro, arrastam-se pelo Facebook sem pio. Não é nada com eles, desde que o Facebook lhes sirva os intentos autopromocionais. Desde que a rede os ampare no esgoto para o qual não param de escarrar. Ou seja, andam a esbracejar no próprio escarro dando ares de pureza e higiene. O Facebook pode partilhar dados dos seus utilizadores para usufruto de empresas e partidos políticos, mas nada disso ameaça a democracia. É tudo por uma boa causa, a democratização da opinião pública. A democracia é um tipo saber destas coisas e manter-se no Facebook, como o escravo que prefere ficar escravo a ter que lidar com uma coisa que nunca conheceu: a liberdade.

hmbf

No seu blogue antologia do esquecimento  (31-8-2018)




Os amigos (José Tolentino Mendonça)

Fotografia de Victoria Holguín



OS AMIGOS

Esses estranhos que nós amamos
e nos amam
olhamos para eles e são sempre
adolescentes, assustados e sós
sem nenhum sentido prático
sem grande noção da ameaça ou da renúncia
que sobre a luz incide
descuidados e intensos no seu exagero
de temporalidade pura

Um dia acordamos tristes da sua tristeza
pois o fortuito significado dos campos
explica por outras palavras
aquilo que tornava os olhos incomparáveis

Mas a impressão maior é a da alegria
de uma maneira que nem se consegue
e por isso ténue, misteriosa:
talvez seja assim todo o amor

José Tolentino Mendonça 


De Igual Para Igual (2000)