sexta-feira, 29 de novembro de 2019

O mocho e o macaco (Fernando Assis Pacheco)

Fotografia de Rosa Gambóias


O MOCHO E O MACACO

Era uma vez um mocho diz o meu filho
que sabe todas as histórias do mundo

uma vez um mocho
o macaquinho pergunta-lhe
o que é quando se morre?
pois nada diz o mocho
morre-se praí

o macaquinho insiste
mocho e quando tu morreres?
morro nada diz o mocho
hás-de morrer tu primeiro

mas veio uma zorra e comeu o mocho
que foi para um buraco muito fundo
ninguém cantava nesse buraco
só os morcegos e mesmo esses
só se a gente lhes batesse
com uma vassoura da cozinha

o macaquinho come bananas
escapa-se ao jacaré do Amazonas
que lhe quer dar uma dentada
salta nas árvores
uma daquelas era onde estava o mocho

coitado do mocho
não viu a zorra ao pé da carvalheira
morre-se praí
morre-se num instantemente de nada
morre-se a morte mocha
sem a gente dizer ai

Fernando Assis Pacheco


Variações em Sousa (1987) in  A Musa Irregular, Assírio & Alvim, 2006


Deste poema diz Luís Serrano que é "Uma premonição da morte em forma de fábula"



Rua Fernando Assis Pacheco

Desde o dia 23 de novembro, no bairro de Campo de Ourique. 2016.




segunda-feira, 25 de novembro de 2019

O Futuro (José Carlos Ary dos Santos)

Fotografia de Fotos Avulso


O FUTURO

Isto vai meus amigos isto vai
um passo atrás são sempre dois em frente
e um povo verdadeiro não se trai
não quer gente mais gente que outra gente

Isto vai meus amigos isto vai
o que é preciso é ter sempre presente
que o presente é um tempo que se vai
e o futuro é o tempo resistente

Depois da tempestade há a bonança
que é verde como a cor que tem a esperança
quando a água de Abril sobre nós cai.

O que é preciso é termos confiança
se fizermos de Maio a nossa lança
isto vai meus amigos isto vai.

José Carlos Ary dos Santos


O Sangue das Palavras, 1978



quinta-feira, 21 de novembro de 2019

“Quando somos dessas raparigas indecisas...” (Bénédicte Houart)

Fotografia de André Pipa

Quando somos dessas raparigas imprecisas que não se sabe onde começam, onde acabam, se acaso algum dia terminarão. Parecem crescer a cada instante, em largura, em altura, sobretudo em profundidade. E, no entanto, minguam se alguém as acaricia com vagar. Pequenas, cabem então numa só apenas mão.

Bénédicte Houart



Bénédicte Houart, filha de pai belga e mãe portuguesa, nasceu em Braine-le-Conte, uma pequena cidade nos arredores de Bruxelas, em 1968. Mudou-se ainda na infância para Portugal, em 1975, onde tem vivido desde então. Crescendo bilíngue, adotou a língua portuguesa por pátria, como diria Pessoa.

Lido em modo de usar & co. "revista de poesia e outras textualidades conscientes2



segunda-feira, 18 de novembro de 2019

Num bairro moderno (Cesário Verde)



NUM BAIRRO MODERNO

Dez horas da manhã; os transparentes
Matizam uma casa apalaçada;
Pelos jardins estancam-se as nascentes,
E fere a vista, com brancuras quentes,
A larga macadamizada.

Rez-de-chaussé repousam sossegados,
Abriram-se, nalguns, as persianas,
E dum ou doutro, em quartos estucados,
Ou entre a rama dos papéis pintados,
Reluzem, num almoço as porcelanas.

Como é saudável ter o seu conchego,
E a sua vida fácil! Eu descia,
Sem muita pressa, para o meu emprego,
Aonde agora quase sempre chego
Com as tonturas duma apoplexia.

E rota, pequenina, azafamada,
Notei de costas uma rapariga,
Que no xadrez marmóreo duma escada,
Como um retalho de horta aglomerada,
Pousara, ajoelhando, a sua giga.

E eu, apesar do sol, examinei-a;
Pôs-se de pé; ressoam-lhe os tamancos;
E abre-se-lhe o algodão azul da meia,
Se ela se curva, esguedelhada, feia
E pendurando os seus bracinhos brancos.

Do patamar responde-lhe um criado:
"Se te convém, despacha; não converses.
Eu não dou mais." E muito descansado,
Atira um cobre ignóbil oxidado,
Que vem bater nas faces duns alperces.

Subitamente - que visão de artista! -
Se eu transformasse os simples vegetais,
À luz do Sol, o intenso colorista;
Num ser humano que se mova e exista
Cheio de belas proporções carnais?!

Bóiam aromas, fumos de cozinha;
Com o cabaz às costas, e vergando,
Sobem padeiros, claros de farinha;
E às portas, uma ou outra campainha
Toca, frenética, de vez em quando.

E eu recompunha, por anatomia,
Um novo corpo orgânico, aos bocados.
Achava os tons e as formas. Descobria
Uma cabeça numa melancia,
E nuns repolhos seios injectados.

As azeitonas, que nos dão o azeite,
Negras e unidas, entre verdes folhos,
São tranças dum cabelo que se ajeite;
E os nabos - ossos nus, da cor do leite,
E os cachos de uvas - os rosários de olhos.

Há colos, ombros, bocas, um semblante
Nas posições de certos frutos. E entre
As hortaliças, túmido, fragrante,
Como dalguém que tudo aquilo jante,
Surge um melão, que me lembrou um ventre.

E, como um feto, enfim, que se dilate,
Vi nos legumes carnes tentadoras,
Sangue na ginja vívida, escarlate,
Bons corações pulsando no tomate
E dedos hirtos, rubros, nas cenouras.

O Sol dourava o céu. E a regateira,
Como vendera a sua fresca alface
E dera o ramo de hortelã que cheira,
Voltando-se, gritou-me prazenteira:
" Não passa mais ninguém! ... Se me ajudasse?! ..."

Eu acerquei-me dela, sem desprezo;
E, pelas duas asas a quebrar,
Nós levantámos todo aquele peso
Que ao chão de pedra resistia preso,
Com um enorme esforço muscular.
 
"Muito obrigada! Deus lhe dê saúde!"
E recebi, naquela despedida,
As forças, a alegria, a plenitude,
Que brotam dum excesso de virtude
Ou duma digestão desconhecida.

E enquanto sigo para o lado oposto,
E ao longe rodam umas carruagens,
A pobre, afasta-se, ao calor de agosto,
Descolorida nas maçãs do rosto,
E sem quadris na saia de ramagens.

Um pequerrucho rega a trepadeira
Duma janela azul; e, com o ralo
Do regador, parece que joeira
Ou que borrifa estrelas; e a poeira
Que eleva nuvens alvas a incensá-lo.

Chegam do gigo emanações sadias,
Ouço um canário - que infantil chilrada!
Lidam ménages entre as gelosias,
E o sol estende, pelas frontarias,
Seus raios de laranja destilada.

E pitoresca e audaz, na sua chita,
O peito erguido, os pulsos nas ilhargas,
Duma desgraça alegre que me incita,
Ela apregoa, magra, enfezadita,
As suas couves repolhudas, largas.

E, como as grossas pernas dum gigante,
Sem tronco, mas atléticas, inteiras
Carregam sobre a pobre caminhante,
Sobre a verdura rústica, abundante,
Duas frugais abóboras carneiras.

Cesário Verde

Lisboa, Verão de 1877




sexta-feira, 15 de novembro de 2019

"Chego, acendo a lareira, aninho-me no sofá ..." (Miguel Torga)

Fotografía de Leandro Prudencio


Chego, acendo a lareira, aninho-me no sofá, e fico horas infinitas a olhar em silêncio as labaredas, imerso numa bruma de sentimentos a que não consigo dar voz. É aqui que eu sinto com mais pungência que nunca hei-de ter expressão à altura da minha alma.

Miguel Torga
Diário



segunda-feira, 11 de novembro de 2019

A vida de viver e o viver sem vida (Ana Luísa Amaral)



A vida de viver e o viver sem vida  é um artigo de opinião de Ana Luísa Amaral, publicado no jornal Público no dia 1 de fevereiro de 2017.


A VIDA DE VIVER E O VIVER SEM VIDA

Não deve haver também direitos para quem deseja, em paz, pôr termo a uma vida que deixou de ter dignidade de vida vivida?


O meu maior momento de pura felicidade foi o nascimento da minha filha, ela a chegar à vida. Relembro essa alegria, porque os outros momentos que mais me marcaram foram feitos da mais profunda tristeza: a morte do meu pai, a morte de amigos que me eram esteio, alicerce. Essas mortes foram brutais, pelo absolutamente inesperado — mas qualquer morte é, em princípio, brutal: o avesso de aqui estarmos, em “terrena companhia”, como uma vez escreveu uma grande poeta.

Mas de entre esses outros momentos, houve um em que a tristeza se cruzou com um sentimento que não sei nomear; e hesito entre revolta e incompreensão. Foi quando vi e senti pela primeira vez o que significava uma palavra que eu conhecia só teoricamente — pelos livros, por títulos de quadros, pela sua indevida inclusão em expressões usadas no quotidiano. Essa palavra era agonia. Na sua etimologia (agon), agonia significa luta; definida no dicionário como o estado que precede a morte, agonia significa luta contra a morte. Mas a definição di-la também como podendo ser tranquila.

Porém, isto é no dicionário, que lhe prevê essa dimensão possível de tranquilidade. Até então, talvez por nunca o ter sentido a partir da minha própria vida, eu nunca pensara em algo óbvio: que “agonia” e “agoniado” são palavras tangentes. E que ambos os estados são, mesmo nas indizíveis distâncias que os separam, de aflição. O que de pacífico nada tem.

Vi essa incomensurável aflição, a agonia atormentada, numa noite de Abril de 1996, em alguém que era para mim como uma mãe e agora morria numa cama de hospital. Morria, desfazendo-se, porque nada mais havia a fazer: o cancro invadira tudo e o que restava ali era um corpo num estado para lá do sofrimento puro, cheio de morfina — mas semi-consciente.

Este era o corpo de alguém agoniado da vida, arrancando tubos, pedindo-me para partir. Suplicando-me que a deixassem partir. A mim, que a amava. As enfermeiras disseram-me: “Não passa desta noite.” O médico, a quem eu transmiti o pedido, fazendo minhas as palavras pedidas por quem morria à minha frente, respondeu-me: “Minha senhora, a nossa função é a de prolongar a vida.” É honrada essa frase, é bela e digna — e escrevo isto sem a mais pequena réstia de ironia. Mas esse estado chamado vida arrastar-se-ia por mais 12 horas. Não passou, pois, da manhã do dia seguinte o ser humano que eu amava e que me havia sempre amado. Mas as horas que demorou até morrer, até se desligar da vida biológica, foram carregadas de uma agonia sem sentido. Pois que sentido pode haver em prolongar em vácuo o sofrimento?

O que eu via ali era um rosto de olhos fechados cheios de uma aflição sem limites, um rosto amado e pertencente a um corpo que já não respondia a nada e que antes fora tão capaz. Ainda hoje não compreendo por que razão não foi possível tornar aquela morte mais honrada. E ainda hoje me revolto, porque se havia palavra para definir a vida biográfica, a vida de viver da pessoa que ali estava, essa palavra era dignidade. Uma dignidade que lhe fora negada.

A discussão em torno da eutanásia e da morte assistida não é uma discussão fácil. Porque o tema gira em torno das duas linhas que nos demarcam no tempo e que de mais crítico, mais delicado, mais vulnerável e poderoso temos e partilhamos: a vida e, a seu lado, a morte. É este, pois, um tema de uma imensa complexidade.

Não sou médica, não sou jurista, sou somente cidadã. Como cidadã, reconheço o cuidado e a sensibilidade que este assunto merece. Mas também como cidadã, recuso-me a juntar a minha voz à voz daqueles que liminarmente condenam o desejo de alguém querer morrer condignamente, quando o sofrimento é extremo e o fim irreversível, ou a sua escolha de não prolongar artificialmente a vida biológica. Tal como o direito a uma vida de paz e digna, vida de viver, deveria ser um direito a todos comum, não deve haver também direitos para quem deseja, em paz, pôr termo a uma vida que deixou de ter dignidade de vida vivida? Não serão esses direitos parte daquilo a que chamamos liberdade?

Poeta, subscritora da petição pública “Direito a morrer com dignidade”

Ana Luísa Amaral




sexta-feira, 8 de novembro de 2019

A forma justa (Sophia de Mello Breyner Andresen)



Sophia de Mello Breyner Andresen (Porto, 6 de novembro de 1919 — Lisboa, 2 de Julho de 2004)


A FORMA JUSTA

Sei que seria possível construir o mundo justo
As cidades poderiam ser claras e lavadas
Pelo canto dos espaços e das fontes
O céu o mar e a terra estão prontos
A saciar a nossa fome do terrestre
A terra onde estamos — se ninguém atraiçoasse — proporia
Cada dia a cada um a liberdade e o reino
— Na concha na flor no homem e no fruto
Se nada adoecer a própria forma é justa
E no todo se integra como palavra em verso
Sei que seria possível construir a forma justa
De uma cidade humana que fosse
Fiel à perfeição do universo

Por isso recomeço sem cessar a partir da página em branco
E este é meu ofício de poeta para a reconstrução do mundo




quinta-feira, 7 de novembro de 2019

Poema de Helena Lanari (Sophia de Mello Breyner Andresen)

Coqueiro, fotografia de Eduardo Deboni


Sophia de Mello Breyner Andresen (Porto, 6 de novembro de 1919 — Lisboa, 2 de Julho de 2004)


POEMA DE HELENA LANARI

Gosto de ouvir o português do Brasil
Onde as palavras recuperam sua substância total
Concretas como frutos nítidas como pássaros
Gosto de ouvir a palavra com suas sílabas todas
Sem perder sequer um quinto de vogal

Quando Helena Lanari dizia o «coqueiro»
O coqueiro ficava muito mais vegetal


Geografia (1967)



quarta-feira, 6 de novembro de 2019

Arte Poética II (Sophia de Mello Breyner Andresen)

Sophia na casa da Travessa das Mónicas, 1964.
Foto de Eduardo Gageiro


Sophia de Mello Breyner Andresen (Porto, 6 de novembro de 1919 — Lisboa, 2 de Julho de 2004)


Arte Poética II

A poesia não me pede propriamente uma especialização pois a sua arte é uma arte do ser. Também não é tempo ou trabalho o que a poesia me pede. Nem me pede uma ciência nem uma estética nem uma teoria. Pede-me antes a inteireza do meu ser, uma consciência mais funda do que a minha inteligência, uma fidelidade mais pura do que aquela que eu posso controlar. Pede-me uma intransigência sem lacuna. Pede-me que arranque da minha vida que se quebra, gasta, corrompe e dilui uma túnica sem costura. Pede-me que viva atenta como uma antena, pede-me que viva sempre, que nunca me esqueça. Pede-me uma obstinação sem tréguas, densa e compacta.

Pois a poesia é a minha explicação com o universo, a minha convivência com as coisas, a minha paiticipação no real, o meu encontro com as vozes e as imagens. Por isso o poema não fala de uma vida ideal mas sim de uma vida concreta: ângulo da janela, ressonância das ruas, das cidades e dos quartos, sombra dos muros, aparição dos rostos, silêncio, distância e brilho das estrelas, respiração da noite, perfume da tília e do orégão.

É esta relação com o universo que define o poema como poema, como obra de criação poética. Quando há apenas relação com uma matéria há apenas artesanato.

É o artesanato que pede especialização, ciência, trabalho, tempo e uma estética. Todo o poeta, todo o artista é artesão de uma linguagem. Mas o artesanato das artes poéticas não nasce de si mesmo, isto é, da relação com uma matéria, como nas artes artesanais. O artesanato das artes poéticas nasce da própria poesia a qual está consubstancialmente unido. Se um poeta diz «obscuro», «amplo», «barco», «pedra» é porque estas palavras nomeiam a sua visão do mundo, a sua ligação com as coisas. Não foram palavras escolhidas esteticamente pela sua beleza, foram escolhidas pela sua realidade, pela sua necessidade, pelo seu poder poético de estabelecer uma aliança. E é da obstinação sem tréguas que a poesia exige que nasce o «obstinado rigor» do poema. O verso é denso, tenso como um arco, exactamente dito, porque os dias foram densos, tensos como arcos, exactamente vividos. O equilíbrio das palavras entre si é o equilíbrio dos momentos entre si.

E no quadro sensível do poema vejo para onde vou, reconheço o meu caminho, o meu reino, a minha vida.


Arte Poética II foi publicado pela primeira vez em 21 de Janeiro de 1963. Seguidamente a Arte Poética I e II foram publicadas com alterações em Geografia, 1967.


Fonte: Sophia de Mello Breyner Andresen no seu tempo. Momentos e Documentos

© 2011 Biblioteca Nacional de Portugal



Homero (Sophia de Mello Breyner Andresen)


Sophia de Mello Breyner Andresen (Porto, 6 de novembro de 1919 — Lisboa, 2 de Julho de 2004)


HOMERO

Quando eu era pequena, passava às vezes pela praia um velho louco e vagabundo a quem chamavam o Búzio.

O Búzio era como um monumento manuelino: tudo nele lembrava coisas marítimas. A sua barba branca e ondulada era igual a uma onda de espuma. As grossas veias azuis das suas pernas eram iguais a cabos de navio. O seu corpo parecia um mastro e o seu andar era baloiçado como o andar dum marinheiro ou dum barco. Os seus olhos, como o próprio mar, ora eram azuis, ora cinzentos, ora verdes, e às vezes mesmo os vi roxos. E trazia sempre na mão direita duas conchas. Eram daquelas conchas brancas e grossas com círculos acastanhados, semi-redondas e semitriangulares, que têm no vértice da parte triangular um buraco.

O Búzio passava um fio através dos buracos, atando assim as duas conchas uma à outra, de maneira a formar com elas umas castanholas. E era com essas castanholas que ele marcava o ritmo dos seus longos discursos cadenciados, solitários e misteriosos como poemas.

O Búzio aparecia ao longe. Via-se crescer dos confins dos areais e das estradas. Primeiro julgava-se que fosse uma árvore ou um penedo distante. Mas quando se aproximava via-se que era o Búzio. Na mão esquerda trazia um grande pau que lhe servia de bordão e era seu apoio nas longas caminhadas e sua defesa contra os cães raivosos das quintas. A este pau estava atado um saco de pano, dentro do qual ele guardava os bocados do pão que lhe davam e os tostões. O saco era de chita remendada e tão desbotada que quase se tornara branca.

O Búzio chegava de dia, rodeado de luz e de vento, e dois passos à sua frente vinha o seu cão, que era velho, esbranquiçado e sujo, com o pêlo grosso, encaracolado e comprido e o focinho preto. E pelas ruas fora vinha o Búzio com o sol na cara e as sombras trémulas das folhas dos plátanos nas mãos. Parava em frente duma porta e entoava a sua longa melopeia ritmada pelo tocar das suas castanholas de conchas. Abria-se a porta e aparecia uma criada de avental branco que lhe estendia um pedaço de pão e dizia:

- Vai-te embora, Búzio.

E o Búzio, demoradamente, desprendia o saco do seu bordão, desatava os cordões, abria o saco e guardava o pão. Depois de novo seguia. Parava debaixo de uma varanda cantando, alto e direito, enquanto o cão farejava o passeio. E na varanda debruçava-se alguém rapidamente, tão rapidamente que o seu rosto nem se mostrava, e atirava-lhe um tostão e dizia:

- Vai-te embora, Búzio.

E o Búzio demoradamente - tão demoradamente que cada um dos seus gestos de via - desprendia o saco do pau, desatava os cordões, abria o saco, guardava o tostão, e de novo fechava o saco e o atava e o prendia. E seguia com o seu cão.

Havia na terra muitos pobres que apareciam aos sábados em bandos acastanhados e trágicos, e que pediam esmola pelas portas e faziam pena. Eram cegos, coxos, surdos e loucos, eram tuberculosos cuspindo sangue nos trapos, eram mães escanzeladas de filhos quase verdes, eram velhas curvadas e chorosas com as pernas incrivelmente inchadas, eram rapazes novos mostrando chagas, braços torcidos, mãos cortadas, lágrimas e desgraça. E sobre o bando pairava um murmúrio incansável de gemidos, queixas, rezas e lamentações. Mas o Búzio aparecia sozinho, não se sabia em que dia da semana, era alto e direito, lembrava o mar e os pinheiros, não tinha nenhuma ferida e não fazia pena. Ter pena dele seria como ter pena de um plátano ou de um rio, ou do vento. Nele parecia abolida a barreira que separa o homem da natureza.

O Búzio não possuía nada, como uma árvore não possui nada. Vivia com a terra toda que era ele próprio. A terra era sua mãe e sua mulher, sua casa e sua companhia, sua cama, seu alimento, seu destino e sua vida. Os seus pés descalços pareciam escutar o chão que pisavam.

E foi assim que o vi aparecer naquela tarde em que eu brincava sozinha no jardim. A nossa casa ficava à beira da praia. A parte da frente, virada para o mar, tinha um jardim de areia. Na parte de trás, voltada para leste, havia um pequeno jardim agreste e mal tratado, com o chão coberto de pequenas pedras soltas, que rolavam sob os passos, um poço, duas árvores e alguns arbustos desgrenhados pelo vento e queimados pelo sol.

O Búzio, que chegou pelo lado de trás, abriu a cancela de madeira, que ficou a baloiçar, e atravessou o jardim, passando sem me ver. Parou em frente da porta de serviço e ao som das suas castanholas de conchas pôs-se a cantar. Assim esperou algum tempo. Depois a porta abriu-se e no seu ângulo escuro apareceu um avental.

Visto de fora, o interior da casa parecia misterioso, sombrio e brilhante. E a criada estendeu um pão e disse:

- Vai-te embora, Búzio.

Depois fechou a porta. E o Búzio, sem pressa, demoradamente como que desenhando na luz cada um dos seus gestos, puxou os cordões, abriu o saco, tornou a atar o saco, prendeu-o no pau e seguiu com o seu cão. Depois deu a volta à casa, para sair pela frente, pelo lado do mar.

Então eu resolvi ir atrás dele. Ele atravessou o jardim de areia coberto de chorão e lírios do mar e caminhou pelas dunas. Quando chegou ao lugar onde principia a curva da baía, parou. Ali era já um lugar selvagem e deserto, longe de casas e estradas.

Eu, que o tinha seguido de longe, aproximei-me escondida nas ondulações da duna e ajoelhei-me atrás de um pequeno monte entre as ervas altas, transparentes e secas. Não queria que o Búzio me visse, porque o queria ver sem mim, sozinho.

Era um pouco antes do pôr do sol e de vez em quando passava uma pequena brisa. Do alto da duna via-se a tarde toda como uma enorme flor transparente, aberta e estendida até aos confins do horizonte. A luz recortava uma por uma todas as covas da areia. O cheiro nu da maresia, perfume limpo do mar sem putrefacção e sem cadáveres, penetrava tudo. E a todo o comprimento da praia, de norte a sul, a perder de vista, a maré vazia mostrava os seus rochedos escuros cobertos de búzios e algas verdes que recortavam as águas. E atrás deles quebravam incessantemente, brancas e enroladas e desenroladas, três fileiras de ondas que, constantemente desfeitas, constantemente se reerguiam.

No alto da duna o Búzio estava com a tarde. O sol pousava nas suas mãos, o sol pousava na sua cara e nos seus ombros. Ficou algum tempo calado, depois devagar começou a falar. Eu entendi que falava com o mar, pois o olhava de frente e estendia para ele as suas mãos abertas, com as palmas em concha viradas para cima. Era um longo discurso claro, irracional e nebuloso que parecia, com a luz, recortar e desenhar todas as coisas. Não posso repetir as suas palavras: não as decorei e isto passou-se há muitos anos. E também não entendi inteiramente o que ele dizia. E algumas palavras mesmo não as ouvi, porque o vento rápido lhas arrancava da boca. Mas lembro-me de que eram palavras moduladas como um canto, palavras quase visíveis que ocupavam os espaços do ar com a sua forma, a sua densidade e o seu peso. Palavras que chamavam pelas coisas, que eram o nome das coisas. Palavras brilhantes como as escamas de um peixe, palavras grandes e desertas como praias. E as suas palavras reuniam os restos dispersos da alegria da terra. Ele os invocava, os mostrava, os nomeava: vento, frescura das águas, oiro do sol, silêncio e brilho das estrelas.

Sophia de Mello Breyner Andresen

"Homero", in Contos Exemplares



terça-feira, 5 de novembro de 2019

"Terror de te amar num sítio tão frágil como o mundo..." (Sophia de Mello Breyner Andresen)



Sophia de Mello Breyner Andresen (Porto, 6 de novembro de 1919 — Lisboa, 2 de Julho de 2004)

Terror de te amar num sítio tão frágil como o mundo
Mal de te amar neste lugar de imperfeição
Onde tudo nos quebra e emudece
Onde tudo nos mente e nos separa.




"Terror de te amar" in «Coral» (1950) Natália Luiza in Gastão Cruz (ed.), Ao Longe os Barcos de Flores (Livro + 2 CDs, Assírio & Alvim, 2004) Audio: Prelúdio coral de J.S. Bach, "Ich ruf zu Dir, Herr Jesu Christ" [Chamo-Te, Senhor Jesus Cristo], BWV 639. Atriz: Telma Santos.




segunda-feira, 4 de novembro de 2019

Sophia de Mello Breyner Andresen, de João César Monteiro (1969)


Pelo facto de se celebrar no dia 6 de novembro o centenário do nascimento desta grande autora portuguesa, nesta semana só será publicada obra dela ou ligada a ela.

Sophia de Mello Breyner Andresen (Porto, 6 de novembro de 1919 — Lisboa, 2 de Julho de 2004)

Sirva o documentário de João César Monteiro como apresentação.

Sophia de Mello Breyner Andresen, de João César Monteiro (1969)

"No que ao meu filme diz respeito, suponho que, antes do mais, ele é a prova, para quem a quiser entender, que a poesia nao é filmável e não adianta persegui-la." JCM

(naquela altura  João César Monteiro assinava como  João César Santos)




sábado, 2 de novembro de 2019

Jorge de Sena nasceu há 100 anos



Recordamos os 100 anos do nascimento de...

Jorge de Sena (Lisboa, 2 de novembro de 1919 — Santa Barbara, Califórnia, 4 de junho de 1978) foi poeta, crítico, ensaísta, ficcionista, dramaturgo, tradutor e professor universitário português, naturalizado brasileiro em 1963.


OS OLHOS DAS CRIANÇAS

Estes olhos vazios e brilhantes
que na criança se abrem para o mundo.
não amam,
não temem,
não odeiam,
não sabem como a morte existe.

São terríveis.
Porque a vida é isto.

O amor, o medo, o ódio, a mesma morte.
e este desejo de possuir alguém,
os aprendemos. Nunca mais olhamos
com tal vazio dentro das pupilas.

São terríveis.
Porque a vida é isto.

Jorge de Sena

Peregrinatio ad loca infecta (1969), in Poesia-III, Moraes Editores, 1978.






sexta-feira, 1 de novembro de 2019

O melhor pretexto (Alexandre O’Neill)

Gisa, fotografia de Tiago Zaniratti


O MELHOR PRETEXTO

É tão frágil a vida,
tão efémero, tudo!
(Não é verdade, amiga,
olhinhos-cor-de-musgo ?)

E ao mesmo tempo é forte,
forte da veleidade,
de resistir à morte
quanto maior a idade.

Assim, aos trinta e sete,
fechados alguns ciclos,
a vida ainda pede
mais sentimento, vínculos.

Não tanto os que nos deram
a fúria de viver,
como esses descobertos
depois de se saber

Que a vida não é outra
senão a que fazemos
(e a vida é uma só,
pois jamais voltaremos).

Partidários da vida,
melhor: do que está vivo,
digamos "não!" a tudo
que tenha outro sentido.

E que melhor pretexto
(quem o saiba que o diga!)
teremos p'ra viver
senão a própria vida?

Alexandre O’Neill

Poemas com endereço (1962)