domingo, 31 de julho de 2022

Miguel Torga - “Tens agora outro rosto, outra beleza...”

 


Tens agora outro rosto, outra beleza:
Um rosto que é preciso imaginar,
E uma beleza mais furtiva ainda...
Assim te modelaram caprichosas,
Mãos irreais que tornam irreal
O barro que nos foge da retina.
Barro que em ti passou de luz carnal
A bruma feminina...

Mas nesse novo encanto
Te conjuro
Que permaneças.
Distante e preservada na distância.
Olímpica recusa, disfarçada
De terrena promessa
Feita aos olhos tentados e descrentes.
Nenhum mito regressa....
Todas as deusas são mulheres ausentes…

Miguel Torga




(Fotografia de Miguel & Strogoff)


sábado, 30 de julho de 2022

José Tolentino Mendonça - Da verdade do amor



DA VERDADE DO AMOR

Da verdade do amor se meditam
relatos de viagens confissões
e sempre excede a vida
esse segredo que tanto desdém
guarda de ser dito

pouco importa em quantas derrotas
te lançou
as dores os naufrágios escondidos
com eles aprendeste a navegação
dos oceanos gelados

não se deve explicar demasiado cedo
atrás das coisas
o seu brilho cresce
sem rumor

José Tolentino Mendonça




Baldios, 1999



(Giorgio Morandi (1890-1964) - Autoritratto, 1917-1919)


sexta-feira, 29 de julho de 2022

João Miguel Fernandes Jorge - Vivi nesta casa muitos anos




Vivi nesta casa muitos anos

Agora mudaram já de certo a fechadura
e as pequenas coisas que fazem uma casa.
As chaves já não as trago
ao lado dos meus gestos.
Mudaram os móveis
deitaram fora as cortinas
e as paredes
trazem agora um calendário novo.
Uma casa é sempre
caliça cheiros alianças.
Eu avanço sobre o silêncio de
ainda esperar por ti.

João Miguel Fernandes Jorge



(Fotografia de André Pipa, Azulejos, Lisboa)


quinta-feira, 28 de julho de 2022

Manuel Bandeira - Último poema

 

Fotografia de Aurelio Candido 


ÚLTIMO POEMA

Assim eu quereria o meu último poema.
Que fosse terno dizendo as coisas mais simples e menos intencionais
Que fosse ardente como um soluço sem lágrimas
Que tivesse a beleza das flores quase sem perfume
A pureza da chama em que se consomem os diamantes mais límpidos
A paixão dos suicidas que se matam sem explicação.

Manuel Bandeira




Jorge de Sena - "Conheço o sal da tua pele seca..."

 


 

Conheço o sal da tua pele seca
depois que o estio se volveu inverno
da carne repousada em suor nocturno.

Conheço o sal do leite que bebemos
quando das bocas se estreitavam lábios
e o coração no sexo palpitava.

Conheço o sal dos teus cabelos negros
ou louros ou cinzentos que se enrolam
neste dormir de brilhos azulados.

Conheço o sal que resta em minhas mãos
como nas praias o perfume fica
quando a maré desceu e se retrai.

Conheço o sal da tua boca, o sal
da tua língua, o sal de teus mamilos,
e o da cintura se encurvando de ancas.

A todo o sal conheço que é só teu,
ou é de mim em ti, ou é de ti em mim,
um cristalino pó de amantes enlaçados.
 

                                          Madrid, 16 de março de 1973

Jorge de Sena



(Fotografia de Marcos Souza)


terça-feira, 26 de julho de 2022

Jorge Sousa Braga - Dióspiros

 



DIÓSPIROS

Há frutos que é preciso
acariciar
com os dedos com
a língua

e só depois
muito depois

se deixam morder

Jorge Sousa Braga



(Fotografia de Griffin & Sabine)


quinta-feira, 21 de julho de 2022

João José Cochofel - Sol

 

SOL

É o sol que flameja
ou o teu cabelo
que incendeia o ar?

É a tua boca
que segura nos dentes
o sabor do dia?

É a tua pele
que vem redourar
a fome da vida?

João José Cochofel



Lido em Rua das Pretas

(Fotografía de Marina Alfaya - beleza de creuza, 2009)


segunda-feira, 18 de julho de 2022

Gonçalves Crespo - Odor di femina

 

ODOR DI FEMINA

Era austero e sisudo; não havia
Frade mais exemplar nesse convento;
No seu cavado rosto macilento
Um poema de lágrimas se lia.

Uma vez que na extensa livraria
Folheava o triste um livro pardacento,
Viram-no desmaiar, cair do assento,
Convulso e torvo sobre a lagea fria.

De que morrera o venerando frade?
Em vão busco as origens da verdade,
Ninguém ma disse, explique-a quem puder.

Conste que um bibliófilo comprara
O livro estranho, e que ao abri-lo achara
Uns dourados cabelos de mulher…

Gonçalves Crespo


António Cândido Gonçalves Crespo (Rio de Janeiro, 1846 — Lisboa, 1883) foi um jurista e poeta português de influência parnasiana, membro das tertúlias intelectuais portuguesas do último quartel do século XIX. Nascido nos arredores da cidade do Rio de Janeiro, filho de mãe escrava, fixou-se em Lisboa aos 14 anos de idade e estudou Direito na Universidade de Coimbra. Dedicou-se essencialmente à poesia e ao jornalismo.

(Wikipédia)


sexta-feira, 15 de julho de 2022

Fernando Pessoa - “Como inútil taça cheia…”

 

Como inútil taça cheia
Que ninguém ergue da mesa
Transborda de dor alheia
Meu coração sem tristeza

Sonhos de mágoa figura
Só para ter que sentir
E assim não tem a amargura
Que se temeu a fingir

Ficção num palco sem tábuas
Vestida de papel seda
Mima uma dança de mágoas
Para que nada suceda.

Fernando Pessoa

19-08-1930



Poesía: 1918-1930, edição Manuela Parreira da Silva, Ana Maria Freitas, Madalena Dine, Lisboa, Assírio & Alvim, 2005



segunda-feira, 11 de julho de 2022

Bénédicte Houart - "já penélope não sou..."


 

já penélope não sou
nem ulisses regressa
mudo de nome noite
a noite ao sabor da saliva
dos meus amantes
de dia troco lençóis
coso bainhas
descanso os olhos
dantes tecia para
enganar a corte que
me servia de prisão
agora chamo-me eu
não tenho estado civil e
na cela que me tem cativa
tornei-me finalmente livre

Bénédicte Houart




(Anthony Frederick Augustus Sandys (1829-1904) - Penelope, 1878)


segunda-feira, 4 de julho de 2022

Daniel Filipe - Romance de Tomasinho Cara-Feia


ROMANCE DE TOMASINHO CARA-FEIA

Farto de sol e de areia
Que é o mais que a terra dá,
Tomasinho Cara-Feia
vai prá pesca da baleia.
Quem sabe se tornará?

Torne ou não torne, que tem?
Vai cumprir o seu destinho.
Só nha Fortunata, a mãe,
Que é velha e não tem ninguém,
Chora pelo seu menino.

Torne ou não torne, que importa?
Vai ser igual ao avô.
Não volta a bater-me à porta;
Deixou para sempre a horta,
que a longa seca matou.

Tomasinho Cara-Feia
(outro nome, quem lho dá?),
farto de sol e de areia,
foi prá pesca da baleia.

— E nunca mais voltará!

Daniel Filipe


Lêdo Ivo - A capa


 

A CAPA

No chão da infância vou encontrar
todos os objetos que perdi:
a capa azul, o livro de gravuras,
o retrato do irmão morto
e tua boca fria, tua boca fria.

Minha capa azul, no chão da infância,
cobre os objetos e alucinações.
É uma capa azul, de um azul profundo
que em tempo algum será encontrado.
Azul como este não existe mais.
E a todos vocês que são puros ou relapsos,
virgens no inverno e repulsivos no verão,
faço meu pedido de um azul profundo:
cubram-me com esta capa no dia em que eu morrer.

Quando eu estiver morrendo, podem ter certeza,
uma capa azul, de um azul profundo,
envolverá meu corpo da cabeça aos pés.

Lêdo Ivo

 


sexta-feira, 1 de julho de 2022

Vinicius de Moraes - A Anunciação

Fotografia de Iasmin Santiago



A ANUNCIAÇÃO
 
Virgem! filha minha
De onde vens assim
Tão suja de terra
Cheirando a jasmim
A saia com mancha
De flor carmesim
E os brincos da orelha
Fazendo tlintlin?

Minha mãe querida
Venho do jardim
Onde a olhar o céu
Fui, adormeci.
Quando despertei
Cheirava a jasmim
Que um anjo esfolhava
Por cima de mim...

                   Rio de Janeiro, 1962


Vinicius de Moraes