quinta-feira, 27 de abril de 2023

Chico Buarque recebeu o prêmio Camões de 2019 no dia 24 de Abril de 2023



Quatro anos depois de ter sido anunciado vencedor, Chico Buarque recebeu o prêmio Camões, maior láurea da literatura em língua portuguesa, das mãos do presidente Luiz Inácio Lula da Silva.



Boa noite excelentíssimos senhores presidente de Portugal, Marcelo Rebelo de Sousa; presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva; primeiro ministro de Portugal, António Costa; ministra da cultura brasileira, minha amiga, Margareth Menezes; ministro da Cultura português, Pedro Adão e Silva; querida Janja da Silva; presidente do júri, professor Frias Martins; e tantos amigos e amigas aqui presentes, Fafá de Belém, Carminho, Mia Couto, Miguel de Sousa Tavares, Pilar del Río, meu editor brasileiro Luiz Schwarz, minha editora portuguesa, Clara Capitão, e minha mulher, Carol.

Eu estou emocionado porque hoje de manhã ela saiu do hotel, atravessou a avenida e foi comprar essa gravata. (Risos) Isso me emociona.

Ao receber esse Prêmio eu penso no meu pai, o historiador e sociólogo Sérgio Buarque de Hollanda, de quem herdei alguns livros e o amor pela língua portuguesa. Relembro quantas vezes interrompi seus estudos para lhe submeter meus escritos juvenis, que ele julgava sem complacência e sem excessiva severidade, para em seguida me indicar leituras que poderiam me valer numa eventual carreira literária.

Mais tarde, quando me bandeei para a música popular, não se aborreceu, longe disso, pois gostava de samba, tocava um pouco de piano e era amigo próximo de Vinicius de Moraes, para quem a palavra cantada talvez fosse simplesmente um jeito mais sensual de falar a nossa língua. Posso imaginar meu pai coruja ao me ver hoje aqui, se bem que, caso fosse possível nos encontrarmos neste salão, eu estaria na assistência e ele cá, no meu posto, a receber o prêmio Camões com muito mais propriedade.

Meu pai também contribuiu para minha formação política, ele que durante a ditadura do Estado Novo militou na esquerda democrática, futuro Partido Socialista Brasileiro. No fim dos anos 60 retirou-se da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo em solidariedade a colegas cassados pela ditadura militar. Mais para o fim da vida participou da fundação do Partido dos Trabalhadores, sem chegar a ver a restauração democrática do nosso país, nem muito menos pressupor que um dia cairemos num fosso, sob muitos aspectos, mais profundo.

O meu pai era paulista, meu avô pernambucano, meu bisavô mineiro e meu tataravô baiano. Tenho antepassados negros e indigenas, cujos nomes meus antepassados brancos trataram de suprimir da história familiar. Como a imensa maioria do povo prasileiro, trago nas veias o sangue do açoitado e do açoitador, o que ajuda a nos explicar um pouco.

Recuando no tempo, em busca das minhas origens, recentemente vim a saber que tive por decavós paternos o casal Shemtov ben Abraham, batizado como Diogo Pires, e Provida Fidalgo, oriundos da comunidade barcelense. A exemplo de tantos cristãos novos portugueses, sua prole exilou-se no nordeste brasileiro do século XVI. Assim, enquanto descendente de judeus sefarditas perseguidos pela inquisição, pode ser que algum dia, eu também alcance o direito à cidadania portuguesa a modo de reparação histórica. (Risos)

Já morei fora do Brasil e não pretendo repetir a experiência, mas é sempre bom saber que tem uma porta entreaberta em Portugal, onde mais ou menos me sinto em casa e esmero-me nas colocações pronominais. Conheci Lisboa, Coimbra e Porto em 1966 ao lado de João Cabral de Melo Neto, quando aqui foi encenado seu poema “Morte e vida Severina” com músicas minhas. Ele, um poeta consagrado e eu um atrevido estudante de arquitetura.

O grande João Cabral, o primeiro brasileiro a receber o Prêmio Camões, sabidamente não gostava de música e nem sei se chegou a folhear algum livro meu.

Escrevi meu primeiro romance “Estorvo”; em 1990, e publicá-lo foi para mim como me arriscar novamente no escritório do meu pai em busca de sua aprovação. Contei dessa vez com padrinhos como Rubem Fonseca, Raduan Nassar e José Saramago, hoje meus colegas de Prêmio Camões. De vários autores aqui premiados, fui amigo de outros tantos de Brasil, Portugal, Angola, Moçambique, Cabo Verde... Sou leitor e admirador. Esqueci de citar antes o nosso grande Manuel Alegre, aqui presente, que também foi premiado com Camões.

Por mais que eu leia e fale de literatura, por mais que eu publique romances e contos, por mais que eu receba prêmios literários, faço gosto de ser reconhecido no Brasil como compositor popular, e em Portugal como o “gajo” que um dia pediu que lhe mandassem um cravo e um cheirinho de alecrim. Valeu a pena esperar por esta cerimônia marcada, não por acaso, para a véspera do dia em que os portugueses dessem a avenida Liberdade a festejar a revolução dos cravos.

Lá se vão quatro anos que meu prêmio foi anunciado e eu já me perguntava se não o haviam esquecido. Porque sabe-se: prêmios também são perecíveis, tem data de validade.

Quatro anos com uma pandemia no meio davam às vezes a impressão que um tempo bem mais longo havia transcorrido. No que se refere ao meu país, quatro anos de governo funesto duraram uma eternidade, porque foi um tempo em que o tempo parecia andar para trás. Aquele governo foi derrotado nas urnas mas nem por isso podemos nos distrair, pois a ameaça facista persiste, no Brasil e por toda parte. Hoje, porém nessa tarde de celebração, reconforta-me lembrar que o ex-presidente teve a rara fineza de não sujar o diploma do meu Prêmio Camões, deixando seu espaço em branco para assinatura do nosso presidente Lula.

Recebo esse prêmio menos como uma honraria pessoal e mais como um desagravo a tantos autores e artistas brasileiros humilhados e ofendidos nesses últimos anos de estupidez e obscurantismo. Muito obrigado.




terça-feira, 25 de abril de 2023

Sophia de Mello Breyner Andresen - Pátria

Pátria, fotografia de Ana Luísa Pinto


PÁTRIA

Por um país de pedra e vento duro
Por um país de luz perfeita e clara
Pelo negro da terra e pelo branco do muro

Pelos rostos de silêncio e de paciência
Que a miséria longamente desenhou
Rente aos ossos com toda a exactidão
Do longo relatório irrecusável

E pelos rostos iguais ao sol e ao vento
E pela limpidez das tão amadas
Palavras sempre ditas com paixão
Pela cor e pelo peso das palavras
Pelo concreto silêncio limpo das palavras
Donde se erguem as coisas nomeadas
Pela nudez das palavras deslumbradas

- Pedra rio vento casa
Pranto dia canto alento
Espaço raiz e água
Ó minha pátria e meu centro

Me dói a lua me soluça o mar
E o exílio se inscreve em pleno tempo.

Sophia de Mello Breyner Andresen


Livro Sexto (1962)



sexta-feira, 21 de abril de 2023

Mário de Sá-Carneiro - Como eu não possuo

 


COMO EU NÃO POSSUO

Olho em volta de mim. Todos possuem –
Um afecto, um sorriso ou um abraço.
Só para mim as ânsias se diluem
E não possuo mesmo quando enlaço.

Roça por mim, em longe, a teoria
Dos espasmos golfados ruivamente;
São êxtases da cor que eu fremiria,
Mas a minhalma pára e não os sente!

Quero sentir. Não sei... perco-me todo...
Não posso afeiçoar-me nem ser eu:
Falta-me egoísmo para ascender ao céu,
Falta-me unção pra me afundar no lodo.

Não sou amigo de ninguém. Pra o ser
Forçoso me era antes possuir
Quem eu estimasse – ou homem ou mulher,
E eu não logro nunca possuir!...

Castrado de alma e sem saber fixar-me,
Tarde a tarde na minha dor me afundo...
Serei um emigrado doutro mundo
Que nem na minha dor posso encontrar-me?...

Como eu desejo a que ali vai na rua,
Tão ágil, tão agreste, tão de amor...
Como eu quisera emaranhá-la nua,
Bebê-la em espasmos de harmonia e cor!...

Desejo errado... Se a tivera um dia,
Toda sem véus, a carne estilizada
Sob o meu corpo arfando transbordada,
Nem mesmo assim – ó ânsia! – eu a teria...

Eu vibraria só agonizante
Sobre o seu corpo de êxtases doirados,
Se fosse aqueles seios transtornados,
Se fosse aquele sexo aglutinante...

De embate ao meu amor todo me ruo,
E vejo-me em destroço até vencendo:
É que eu teria só, sentindo e sendo
Aquilo que estrebucho e não possuo.

Mário de Sá-Carneiro


Maio de 1913, Paris



(Fotografia de Marco Giusfredi - Sans titre. Paris, 2021)


segunda-feira, 17 de abril de 2023

Alda Lara - Testamento




TESTAMENTO

À prostituta mais nova
Do bairro mais velho e escuro,
Deixo os meus brincos, lavrados
Em cristal, límpido e puro...

E àquela virgem esquecida
Rapariga sem ternura,
Sonhando algures uma lenda,
Deixo o meu vestido branco,
O meu vestido de noiva,
Todo tecido de renda...

Este meu rosário antigo
Ofereço-o àquele amigo
Que não acredita em Deus...

E os livros, rosários meus
Das contas de outro sofrer,
São para os homens humildes,
Que nunca souberam ler.

Quanto aos meus poemas loucos,
Esses, que são de dor
Sincera e desordenada...
Esses, que são de esperança,
Desesperada mas firme,
Deixo-os a ti, meu amor...

Para que, na paz da hora,
Em que a minha alma venha
Beijar de longe os teus olhos,
Vás por essa noite fora...

Com passos feitos de lua,
Oferecê-los às crianças
Que encontrares em cada rua...

Alda Lara



segunda-feira, 10 de abril de 2023

Clarice Lispector - A paixão segundo G.H.



Dar a mão a alguém sempre foi o que esperei da alegria. Muitas vezes antes de adormecer – nessa pequena luta por não perder a consciência e entrar no mundo maior – muitas vezes, antes de ter a coragem de ir para a grandeza do sono, finjo que alguém está me dando a mão e então vou, vou para a enorme ausência de forma que é o sono. E quando mesmo assim não tenho coragem, então eu sonho.

Clarice Lispector

A paixão segundo G.H. (1964)





segunda-feira, 3 de abril de 2023

Fernando Assis Pacheco - Pranto por Manuel Doallo



PRANTO POR MANUEL DOALLO

Podia-se ter esborrachado qualquer 23 de Agosto
véspera do San Bartolomé e ele na moto
correndo de Vitoria para as mozas de Ourense
e para as tazas em que era ainda mais exímio

e deixa-se morrer unha serán poñamos
por caso desolada agora pai de filhos
a última queixa: que lhe doía um braço
em troques há tanto sacana que parece de ferro

vaite ó carallo ó morte que me levas
o meu primo galego Manuel Doallo
morte merdeira
coisa ruim de cinza e névoa e cinza

nem nunca nestas terras se me eu lembro
houve um outro rapaz de tanto garbo
como il que era cáseque um rei e querem
que eu o chore e ao coração coitelo?

barqueira que mo levas puta infame
eu berro e berro à soedá do rio

Fernando Assis Pacheco


A Profissão Dominante (1982), in A Musa Irregular, Edições Asa, 1996; Assírio & Alvim, 2006




(Fotografia de Alberto Cernuda, Fisterra)