segunda-feira, 14 de fevereiro de 2022

Adélia Prado - Dona Doida



DONA DOIDA

Uma vez, quando eu era menina, choveu grosso
com trovoadas e clarões, exatamente como chove agora.
Quando se pôde abrir as janelas,
as poças tremiam com os últimos pingos.
Minha mãe, como quem sabe que vai escrever um poema,
decidiu inspirada: chuchu novinho, angu, molho de ovos.
Fui buscar os chuchus e estou voltando agora,
trinta anos depois. Não encontrei minha mãe.
A mulher que me abriu a porta, riu de dona tão velha,
com sombrinha infantil e coxas à mostra.
Meus filhos me repudiaram envergonhados,
meu marido ficou triste até a morte,
eu fiquei doida no encalço.
Só melhoro quando chove.

Adélia Prado


"Neste curta gravado em 2005, Jandira Testa, atriz da Cia de Theatro Fase 3, de Londrina-PR, interpreta o poema Dona Doida, de Adélia Prado, no interior da caixa cênica Orgonizador Paduhélio."

(Nota. Há algumas mudanças no texto.)



sexta-feira, 11 de fevereiro de 2022

Júlio Dantas - Uma anedota

Fotografia de Manuel Raposo


UMA ANEDOTA

Um dia, nos tempos de D. Miguel, certo saloio astuto foi condenado a acabar na forca por crime de morte de homem. Quando já estava no oratório, com o baraço ao pescoço, pediu que o conduzissem à presença do rei, porque queria, antes de morrer, revelar um facto importante à Sua Majestade.

Fizeram a vontade ao saloio, atiraram-lhe um ferragoulo de burel às costas, e levaram-no a Queluz.

– Que é que tu queres? – perguntou-lhe D. Miguel, fitando no homem aqueles olhos negros de italiano.

– Ah, meu Senhor! Queria pedir à Vossa Majestade que me concedesse mais um ano de vida. Não é que eu tenha medo da morte, meu Senhor, porque a gente não morre senão uma vez. Mas, com perdão de Vossa Majestade, eu estava ensinando o meu burro a ler, um burro de grande entendimento, que lá tenho em Loures, e custa-me deixar este mundo sem ver o animal ensinado...

– Quê? Então o teu burro lê?

– Já conhece as letras, meu Senhor!

O rei achou-lhe graça, chamou o conde de Basto, concedeu ao homem o ano de vida que lhe pedia e prometeu-lhe o perdão da forca, se ele lhe trouxesse o burro em estado de soletrar a Constituição de 1820.

– E agora, como é que tu te arranjas? – perguntava à saida o ministro ao saloio, que pulava de contente.

– Ora, senhor! Num ano, ou morre o rei, ou morre o burro, ou morro eu!


Júlio Dantas
(1876 - 1962)

Os galos de Apolo 
 
 

segunda-feira, 7 de fevereiro de 2022

Alexandre O'Neill - O beijo

Fotografía de Víctor M. Pérez


O BEIJO

Congresso de gaivotas neste céu
Como uma tampa azul cobrindo o Tejo.
Querela de aves, pios, escarcéu.
Ainda palpitante voa um beijo.

Donde teria vindo! (Não é meu...)
De algum quarto perdido no desejo?
De algum jovem amor que recebeu
Mandado de captura ou de despejo?

É uma ave estranha: colorida,
Vai batendo como a própria vida,
Um coração vermelho pelo ar.

E é a força sem fim de duas bocas,
De duas bocas que se juntam, loucas!
De inveja as gaivotas a gritar...

Alexandre O'Neill

No Reino da Dinamarca (1958)

Víctor M. Pérez


quarta-feira, 2 de fevereiro de 2022

Gonçalves Dias - Canção do exílio




CANÇÃO DO EXÍLIO

Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o Sabiá;
As aves, que aqui gorjeiam,
Não gorjeiam como lá.

Nosso céu tem mais estrelas,
Nossas várzeas têm mais flores,
Nossos bosques têm mais vida,
Nossa vida mais amores.

Em cismar – sozinho – à noite –
Mais prazer encontro eu lá;
Minha terra tem palmeiras;
Onde canta o Sabiá.

Minha terra tem primores,
Que tais não encontro eu cá;
Em cismar – sozinho – à noite –
Mais prazer encontro eu lá;
Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o Sabiá.

Não permita Deus que eu morra,
Sem que eu volte para lá;
Sem que eu desfrute os primores
Que não encontro por cá;
Sem qu'inda aviste as palmeiras,
Onde canta o Sabiá.

Gonçalves Dias

(1823 - 864)