quinta-feira, 30 de novembro de 2023

Dois versos de Fernando Assis Pacheco

 


Também morreu um 30 de novembro, no ano 1995, Fernando Assis Pacheco. Do seu poema “Monsenhor, passeando de bicicleta”, em Respiração Assistida (Assírio & Alvim, 2003), estes dois versos:


ó lameiro do coração
como endureces!





Fernando Pessoa - Ó sino da minha aldeia


Ó sino da minha aldeia,
Dolente na tarde calma,
Cada tua badalada
Soa dentro da minha alma.

E é tão lento o teu soar,
Tão como triste da vida,
Que já a primeira pancada
Tem o som de repetida.

Por mais que me tanjas perto
Quando passo, sempre errante,
És para mim como um sonho.
Soas-me na alma distante.

A cada pancada tua
Vibrante no céu aberto,
Sinto mais longe o passado,
Sinto a saudade mais perto.

s. d.

Fernando Pessoa



Poesias. Fernando Pessoa. (Nota explicativa de João Gaspar Simões e Luiz de Montalvor.) Lisboa: Ática, 1942 (15ª ed. 1995). - 93. 1ª publ. in Renascença. Lisboa: Fev. 1924.


segunda-feira, 27 de novembro de 2023

Jorge de Lima - “Estão aqui as pobres coisas…”

 



Estão aqui as pobres coisas: cestas
esfiapadas, botas carcomidas, bilhas
arrebentadas, abas corroídas,
com seus olhos virados para os que

as deixaram sozinhas, desprezadas,
esquecidas com outras coisas, sejam:
búzios, conchas, madeiras de naufrágio,
penas de ave e penas de caneta,

e as outras pobres coisas, pobres sons,
coitos findos, engulhos, dramas tristes,
repetidos, monótonos, exaustos,

visitados tão só pelo abandono,
tão só pela fadiga em que essas ditas
coisas goradas e órfãs se desgastam.

Jorge de Lima




(Fotografia de Julián del Nogal)


quinta-feira, 23 de novembro de 2023

Corsino Fortes - Pecado original




PECADO ORIGINAL

Passo pelos dias
E deixo-os negros
Mais negros
Do que a noute brumosa.

Olho para as coisas
E torno-as velhas
Tão velhas
A cair de carunchos.

Só charcos imundos
Atestam no solo
As pegadas do meu pisar
E fica sempre rubro vermelho
Todo o rio por onde me lavo.

E não poder fugir
Não poder fugir nunca
A este destino
De dinamitar rochas
Dentro do peito...

Corsino Fortes



(Fotografia de Harald Felgner, Tarrafal, Santiago, Cabo Verde)


sábado, 18 de novembro de 2023

Maria Bethânia lê Manoel de Barros



(Trecho extraído do DVD Língua de Brincar, direção Lúcia Castello Branco e Gabriel Sanna):


Um monge descabelado me disse no caminho: “Eu queria construir uma ruína. Embora eu saiba que ruína é uma desconstrução. Minha ideia era de fazer alguma coisa ao jeito de tapera. Alguma coisa que servisse para abrigar o abandono, como as taperas abrigam. Porque o abandono pode não ser apenas um homem debaixo da ponte, mas pode ser também de um gato no beco ou de uma criança presa num cubículo. O abandono pode ser também de uma expressão que tenha entrado para o arcaico ou mesmo de uma palavra. Uma palavra que esteja sem ninguém dentro. (O olho do monge estava perto de ser um canto.) Continuou: digamos que a palavra AMOR. A palavra amor está quase vazia. Não tem gente dentro dela. Queria construir uma ruína para a palavra amor. Talvez ela renascesse das ruínas, como o lírio pode nascer de um monturo”. E o monge se calou descabelado.

Manoel de Barros




quinta-feira, 16 de novembro de 2023

Rui Knopfli - Invernal




INVERNAL

Corre já um arrepio pela crista
de Novembro. A imprevisível surpresa
da luz de inverno é a sua agressiva
doçura horizontal. Toma-se de frio

o ombro esquerdo, a moinha persistente
espreitando o coração cansado.
Subo devagar o Mall e a luz
fere-me os olhos frontalmente, filtrada,

fina e branca, quase paralela ao solo,
como em África nunca aconteceria.
Perpendicular, fita-me de frente,
rasante ao chão como se lhe pedisse

que, por fim, me receba. Novembro,
agora pressago, Novembro, agora
sobre o ombro esquerdo, baixando,
insidioso, sobre o lado dito fatal.

Rui Knopfli



(Fotografia de Tracey Tann)

quarta-feira, 15 de novembro de 2023

Ana Luísa Amaral - Sarça ardente




SARÇA ARDENTE

Um toque leve,
e eu perder-me-ei
- pelas planícies todas do azul,
pelos campos mais longos
que quiseres,
em direcção a leste, a norte,
a sul

Um toque tão macio de rouxinol
que a tortura se apague,
um nome se incendeie
junto ao chão
e expluda com a tarde

Desliza-me na pele
o fio incandescente dos teus dedos,
que eu entrarei de frente
pelo sol,
e arderei no sol,
sem medo

Ana Luísa Amaral




quinta-feira, 9 de novembro de 2023

Maria do Rosário Pedreira - Língua madrasta



LÍNGUA MADRASTA

À procura de umas fotografias antigas em casa da minha mãe, fui dar com um desses caderninhos de significados em que escrevíamos, do lado esquerdo, uma palavra que não conhecíamos e, do direito (depois de consultarmos o dicionário ou perguntarmos a um adulto), um sinónimo ou a respectiva definição. E, tendo em conta que na capa estava escrito "3.ª Classe" a tinta permanente, fiquei admirada com o número de palavras lá registadas que hoje seriam consideradas difíceis para uma catraia de 8 anos: animosidade, baeta, comezinho, ícone, ninharia... De facto, desde que as novas tecnologias ditaram uma mudança de paradigma - e sobretudo por falta de leitura, mas também pela informalidade que se imprimiu à comunicação -, os jovens usam um léxico extremamente reduzido e estão cada vez mais longe de dominar a língua materna.

Não falo exclusivamente de Portugal. Na Nova Zelândia, num exame nacional de História realizado em Novembro passado, pedia-se aos alunos que comentassem a afirmação de Júlio César de que os acontecimentos importantes resultam muitas vezes de causas insignificantes ("Events of importance are often the result of trivial causes"). Ora, quando saíram as notas, eram inusitadamente baixas; e houve uma onda de indignação por parte dos estudantes até se concluir que a maioria (e estamos a falar de pré-universitários) não sabia o que queria dizer "trivial" ou, pelo menos, não conhecia o seu significado naquele contexto. (Um caderninho com a definição de "comezinho" e "ninharia" talvez os tivesse ajudado, mas julgo tratar-se de um instrumento pedagógico fora de moda.)

Se dantes praticamente só era mau aluno a História quem não pegava num livro, actualmente já não é bem assim, uma vez que o desconhecimento da língua afecta de forma decisiva a compreensão de qualquer matéria, incluindo as que, à primeira vista, dispensam a palavra. A este respeito, contaram-me, de resto, uma história curiosa. Num teste de Matemática, o enunciado de um problema começava assim: "Num aviário, os ovos são embalados em caixas de seis." Mal acabou de ler a frase, um dos alunos levantou-se para ir perguntar à professora: "De seis quê?" E, achando que o rapaz nem se dera ao trabalho de ler a frase com atenção, a senhora mandou-o para o lugar com uma resposta brincalhona: "De lagartixas, que havia de ser?" Porém, nos cinquenta minutos seguintes, acabou-se-lhe o sentido de humor: é que houve mais oito alunos a perguntar a mesmíssima coisa. Adeus, futuro.

Maria do Rosário Pedreira

Publicada no Diário de Notícias (30 de março de 2019)


(Fotografia de Marcos Ferreira da Silva)



quarta-feira, 1 de novembro de 2023

Manuel Bandeira - Momento num café

 



MOMENTO NUM CAFÉ

Quando o enterro passou
Os homens que se achavam no café
Tiraram o chapéu maquinalmente
Saudavam o morto distraídos
Estavam todos voltados para a vida
Absortos na vida.

Um no entanto se descobriu num gesto longo e demorado
Olhando o esquife longamente
Este sabia que a vida é uma agitação feroz e sem finalidade
Que a vida é traição
Esaudava a matéria que passava
Liberta para sempre da alma extinta.

Manuel Bandeira


Estrela da manhã (1936)



(Fotografia de Ivaldo Cavalcante)