segunda-feira, 28 de setembro de 2020

Fátima Maldonado - As Mulheres de Ozu

Setsuko Hara


AS MULHERES DE OZU

Em Ozu
as mulheres parecem conchas
macias do embate noutras pedras
arestas recolhidas e guelras aparadas
nas garras de volfrâmio.
Porta-chaves contra balcões de fórmica
por homens agitados
à busca de cervejas
Elas conservam
no meio da substância
onde o plástico coagulou em estrela,
em sachada na lama
ou baba dejectal,
a mesma bolsa de ar que declina
a arte sedosa da astúcia.
Mimoso camarão
na férvida água chamariz,
natureza trivial recolhida
à inócua tintagem de drageia
assomando à papila
a ante-deleição,
carne desfibrada entre palato e língua
até nada restar senão a ténue espuma
que sobrenada o acto,
o gesto inclinado,

a subserviente postura lateral.

Fátima Maldonado


Poemas Com Cinema: Organização de Joana Matos Frias, Luís Miguel Queirós e Rosa Maria Martelo, Lisboa, Assírio & Alvim, 2010.


Ineko Arima



quinta-feira, 24 de setembro de 2020

João Miguel Fernandes Jorge - E o chão fosse o meu coração

Fotografia de bbabyshambles


E O CHÃO FOSSE MEU CORAÇÃO

Partira. E por isso me doía a cabeça e não
dormira toda a noite. Ficara enrolado nos
lençóis, à escuta, esperando um regresso,
esperando não sabia o quê.
Compreendia que continuava ainda na mesma
sensação de expectativa,
à espera de qualquer coisa, numa ansiedade que
não passava como se a vida não pudesse mais
ser a mesma, apesar do próximo inverno
apagar inexoravelmente todos os sinais.

Partira. O inverno encarregar-se-ia, pouco a
pouco, de tudo esbater. Aqueles meses tão
cheios da sua presença haviam de recuar, de
perder importância, de desbotar e de se
irem fundindo noutros dias.
Perder-se-iam no abusivo uso dos infinitos que
dão sempre uma poesia frouxa,
uns versos de incidente
na pressa de registarmos um acontecimento
extravagante.

Partira. Não deixaria de tirar daí algum proveito,
um pano torcido acima de um balde como se
se lavasse o chão
e o chão fosse o meu coração.

João Miguel Fernandes Jorge

a jornada de cristóvão de távora. segunda parte. Presença, 1ª edição, 1988.



segunda-feira, 21 de setembro de 2020

Ruy Belo - Primeiro e Segundo Poemas do Outono

 

Fotografia de Francisco Oliveira



PRIMEIRO POEMA DO OUTONO

Mais uma vez é preciso
reaprender o outono –
todos nós regressamos ao teu
inesgotável rosto
Emergem do asfalto aquelas
inacreditáveis crianças
e tudo incorrigivelmente principia
Já na rua se não cruzam
olhos como armas
Recebe-nos de novo o coração

E sabe deus a minha humana mão


SEGUNDO POEMA DO OUTONO

Quantas vezes ainda verei eu cair
as pálidas leves folhas do outono?
- Não pode um homem vê-las
cair e conseguir viver
(e cá estou também eu
cá estou eu incorrigivelmente a cantar
as gastas folhas do outono
as mesmas das minhas mais antigas leituras
as primeiras e as últimas que tenho visto cair
Haverá outra poesia que não
a que cai nas tristes
folhas do outono?)
- Não pode o homem ver
cair as folhas e viver

Ruy Belo

Aquel Grande Rio Eufrates (1961)


segunda-feira, 14 de setembro de 2020

Pepetela - O nosso país é bué

Mercado de Roque Santeiro, Luanda. Fotografia de David Burke


O NOSSO PAÍS É BUÉ

Quando miúdo Lito irrompeu pela casa, feito bola de futebol a entrar na baliza do Primeiro d'Agosto, como ele gostava de ver no estádio da Cidadela, a mãe assustou, que passa, que passa? Eram tempos difíceis, qualquer notícia podia trazer uma tragédia, qualquer corrida podia significar perigo, qualquer grito significar agonia.

— Esse país é bué, mãe, esse país é bué!

Dona Fefa bem conhecia os entusiasmos repentinos do filho pelo país, aprendidos nos livros da escola, embora contrariados constantemente na rua. Desta vez ele vinha daí mesmo, da rua, se espantava ainda mais ela por tanto patriotismo. Parou de mexer a colher de pau na panela do feijão com óleo de palma, limpou as mãos ao avental, disse com voz cansada, explica então como esse país é bué, que mentira mais te pregaram? Que não era mentira, não, ele tinha visto mesmo, mãe, petróleo a sair no chão, aí no quintal de Dona Isaura.

— Deixa de brincadeiras, não vês estou a trabalhar?

Miúdo Lito se encostou na parede mal rebocada da cozinha, onde se notavam, entre os bocados de barro seco, os troncos tortos de mandioqueira que seguravam a construção precária. Encolheu os ombros. Falou mais baixo, mas ainda entusiasmado:

—Vi o petróleo a sair assim do buraco que eles cavaram no chão, mãe. Afinal tinham tapado aquele bocado com esteiras, nem nos deixavam entrar lá no quintal. Era para esconder o buraco que andavam cavar. Mas hoje se distraíram e eu entrei com o Pedro. Vi o buraco. Dona Isaura estava a receber o balde em cima, o pai do Pedro estava lá dentro do buraco. Quando me viram berraram bué com o Pedro, que ninguém que podia entrar no quintal, se ele não sabia já... Depois me pediram muito não conta embora a ninguém.

— E já me estás a contar a mim, ralhou Dona Fefa, seu fofoqueiro.

— Mas a senhora é minha mãe, posso contar. Até porque também vamos cavar buraco no quintal. O Pedro me disse que depois vai vender em garrafas na rua, como os outros estão fazer. Esse petróleo que serve para os candeeiros que agora se anda a comprar no Roque Santeiro, afinal não vem da Sonangol, está vir mesmo do chão.

Dona Fefa estava estranhar. Lito não era mentiroso e se dizia que tinha visto é porque era verdade. De facto já ouvira falar, no mercado Roque Santeiro vendiam petróleo para candeeiro mais barato que o tabelado pelo governo. Mas então a amiga Isaura se metia em negócios desses e nem lhe dizia nada? Sim, o kandengue fez bem em contar. Julgava ela que conhecia os amigos... Quando cheirava a dinheiro no ar, logo entravam os esconde-esconde, para não se perder negócio. Então Dona Isaura, quase vizinha, que só escapou ser comadre porque a menina morreu à nascença, ia lhe convidar para ser madrinha do segundo filho, essa mesma Dona Isaura que conhecia desde que se instalaram no bairro na altura da Independência afinal agora esqueceu a amizade e guardou segredo de que havia petróleo no quintal dela, hum, hum, não se faz a uma amiga! De facto havia esse cheiro que aparecera de repente no bairro, parecia vir de todos os sítios ao mesmo tempo. Julgava que vinha da refinaria, às vezes eles faziam umas limpezas e deitavam os líquidos à toa, até para o mar. Afinal vinha dos quintais vizinhos e era a prova do que dizia Lito. Mas se no quintal de Dona Isaura há petróleo, não quer dizer que aqui também tem, era Dona Fefa a querer duvidar ainda de uma sorte demasiada...

— Mas tem sim, mãe, tem em todos estes quintais da zona. O pai do Pedro também soube pelos vizinhos e pelo cheiro que vinha do lado. Todos andam a cavar, só que estão a esconder, têm medo do governo.

A prudência da mãe desconfiou de tanta fartura, se têm medo do governo é porque estão a fazer coisa má, o que não era no entanto certo, argumentava o miúdo ainda entusiasmado, só têm medo porque a polícia vem e fecha os poços à toa, ou a polícia pede gasosa demais. Logo veio acima o nacionalismo de Miúdo Lito que repetiu este país é bué, aqui nem é preciso refinar. Isso estudei na escola, o petróleo tem de ser refinado ali na Petrangol, só depois pode ser utilizado nos candeeiros ou nos carros ou nos aviões. Mas aqui sai já directo do chão para o candeeiro, não sei se também dá prós carros. E bué mesmo, ninguém que aguenta esta terra. Miúdo Lito saiu disparado para a rua, com o mujimbo a encher o peito. Dona Fefa ficou a pensar, então a vizinha Isaura vai mandar o Pedro vender petróleo na rua? É capaz de dar bom dinheiro. E que jeito lhe dava, também a ela. Viúva, obrigada a trabalhar de lavadeira para criar o filho, sem mais família na cidade e sem saber onde anda a que deixou no mato, perdida pelas guerras... uns garrafões de petróleo todos os dias podiam ajudar muito. Mas como cavar um buraco no quintal? Ela sozinha? O miúdo podia ajudar, mas não chegava. E para essas coisas não se pode contratar um roboteiro, aproveitam logo nas exigências e acaba por ficar muito caro. Nem dá pedir a um vizinho, não é mesmo coisa que se peça a um vizinho, por muita intimidade que haja. A latrina fora cavada há anos pelo marido e levou muito tempo, pois não é fácil cavar um buraco fundo. E Lito tinha dito que o pai do Pedro desaparecia no buraco para encher o balde, imagine-se a altura do buraco. Abanou a cabeça. Era uma tentação aproveitar a riqueza que jazia em baixo do quintal, lá isso era. E não estava a roubar ninguém, o petróleo estava na terra, era de quem apanhasse. Ou não?

Esperou que o feijão apurasse e foi falar à vizinha Isaura, saber mesmo das coisas, o coração dela estava a doer e mais doía se não tirasse a coisa alimpo. Avizinha que lhe desculpasse o atrevimento, mas o miúdo contou, sabe como são os miúdos, não podem guardar segredo, e o assunto é tão importante que merece mesmo o risco de criar incómodo entre amigos. A vizinha Isaura compreendeu, ficou muito embaraçada no princípio, até estava mesmo para contar à Dona Fefa, só que o meu marido disse, espera ainda mais um pouco para ver se sai alguma coisa, muitas vezes as promessas não se cumprem, mas era verdade mesmo, tinha saído petróleo, a amiga podia vir no quintal ver e cheirar, cheira mesmo a petróleo, logo mais vamos vender na rua e Dona Fefa também devia cavar um buraco, se tornar proprietária de um poço de petróleo, ainda vamos ser uns nababos a andar de Mercedes e fumar charuto, vizinha. Uma gargalhada de Isaura fugiu para as ralas nuvens no céu azul. Dona Fefa tinha dúvidas, e se a polícia sabe? Esse de facto era o problema, os vizinhos que tinham poços clandestinos andavam a discutir muito isso, disse Dona Isaura, porque para uns garimpo de petróleo é proibido, os angolanos não podem ter poços, só os estrangeiros, o que é evidentemente uma injustiça os donos da terra serem afastados dessas riquezas, outros no entanto diziam não, agora já há garimpo livre, não só de diamante mas de tudo, não há mais partido único, nem garimpo único, é a democracia petrolífera. E o que está no subsolo não tem dono. Ainda preciso de pensar bem, rematou Dona Fefa, sozinha como vou cavar, mesmo com o Lito a ajudar? E voltou às suas enegrecidas panelas. Não teve tempo de tomar uma decisão. Miúdo Lito e os outros miúdos da zona se pássaram o mujimbo e não aguentaram o peso de o reterem, eram tão patriotas que tiveram de o transmitir a vizinhos mais longe, para estes também se congratularem com o país que tinham, de modo que a notícia chegou a uma rádio, depois a outra, a cidade ficou a saber, o país e o mundo. Depois a polícia também soube e veio no bairro proteger a empresa encarregada de tapar os buracos à força, dizendo que afinal andava a morrer gente com explosões e incêndios provocados por esse petróleo que não era petróleo bruto e não saía da terra só assim, afinal antes tinha passado pela refinaria e depois se infiltrado pelo chão vermelho por algum tubo gasto, formando um lençol subterrâneo. Então não ouviram falar de Só Afonso, aquele fazedor de tijolos já velho mas sempre rijo, que morreu numa explosão a acender o candeeiro? Era desse líquido aí, mistura de gasolina com outro produto, um perigo para todos, sobretudo as crianças. Os supostos donos dos poços ainda tentaram resistir aos homens da empresa e aos polícias, até porque agora somos proprietários e não podemos ser tratados como deslocados de guerra sem voz, têm de nos ouvir, a nós, os micrempresários, agentes económicos. Mas as autoridades disseram, esse produto tem dono, saiu da refinaria ou de tubos da refinaria ou de outro sítio qualquer, além disso é perigoso, já morreu gente, portanto, senhores micrempresários, se insistem, chamamos os ninjas, eles sabem dar cabo rapidamente de qualquer resistência à autoridade. Foi o ponto final no garimpo de petróleo, que de facto era gasolina adulterada pela muita ferrugem dos canos. Mais tarde veio a explicação nos órgãos de comunicação social, a refinaria era velha e há muito tempo não tinha manutenção a sério, daí as fugas de líquido.

Miúdo Lito ficou desiludido. Não por ter desaproveitado a riqueza que dormia no seu quintal. Mas porque afinal o país não era assim tão bué como imaginara.

Pepetela

1999 (escrito para a Revista da Sonangol)



quinta-feira, 10 de setembro de 2020

Carlos de Oliveira - Infância

Fotografia de Juca Filho


INFÂNCIA

Sonhos
enormes como cedros
que é preciso
trazer de longe
aos ombros
para achar
no inverno da memória
este rumor
de lume:
o teu perfume,
lenha
da melancolia.

Carlos de Oliveira



segunda-feira, 7 de setembro de 2020

Teixeira de Pascoaes - Poeta


POETA

Quando a primeira lágrima aflorou
Nos meus olhos, divina claridade
A minha pátria aldeia alumiou
Duma luz triste, que era já saudade.

Humildes, pobres cousas, como eu sou
Dor acesa na vossa escuridade...
Sou, em futuro, o tempo que passou-
Em num, o antigo tempo é nova idade.

Sou fraga da montanha, névoa astral,
Quimérica figura matinal,
Imagem de alma em terra modelada.

Sou o homem de si mesmo fugitivo;
Fantasma a delirar, mistério vivo,
A loucura de Deus, o sonho e o nada.

Teixeira de Pascoaes

Sempre (1898)


(CVC)



"Teixeira de Pascoaes", por Maria das Graças Moreira de Sá, em Instituto Camões.



terça-feira, 1 de setembro de 2020

José Cardoso Pires dizendo "Fumar ao Espelho"



"Aos cinquenta anos dei por mim a fumar ao espelho e a perguntar E agora, José. Fumar ao espelho, qualquer José sabe isso, é confrontarmo-nos com o nosso rosto mais quotidiano e mais pensado. Por trás, em fundo, tem-se um cenário do presente imediato (a porta do quarto, um cabide vazio) mas esse presente, logo à segunda fumaça já é passado (a porta desfez-se, o cabide voou) e tanto mais passado quanto mais mergulhamos no cigarro. O olhar envelheceu, foi o que foi.

E então, por mais que a gente diga que não, começam a aparecer as pegadas históricas do Dinossauro que nos andou a foder a vida durante cinquenta anos. Adivinhamo-las à super- -superfície do vidro, são manchas fósseis, gretadas, então não se vê logo?, e, escuta à distância, ouve-se o carrossel do medo. Aqui e ali vão-se levantando farrapos do muito que em nós se adiou e do muito que em nós se morreu, e nalguns casos podemos até distinguir o traço de liberdade que abrimos com os nossos livros nessa desolação prolongada. Pronto, estamos feitos, José. De agora em diante começa o rememorar, devias saber.

Certo, cinquentas... muito ano. Muito silêncio, muita humilhação. Mas diz-me, espelho, vale a pena recordá-los? A que propósito agora esse arranhar de ferida, essa recriminação?

José, no espelho, encolhe os ombros. É como se não me ouvisse, como se não se ouvisse, nada a fazer.

No espelho os olhos só se vêem reflectidos noutras coisas, segreda-me por cima do ombro o honorável William Shakespeare a páginas tantas (e com franqueza, deitam um bafo podre, estas palavras). Mas nem assim, José continua na dele. José é José, suspeita que o querem despir do passado para que fique incapaz de o reconhecer quando lho puserem pela frente na primeira oportunidade. E defende-se, não desarma. Daqui a pouco está com certeza a citar Santayana (não me admirava nada) e a sublinhar desgraças. Revê exemplos, concita mortos porque (palavras de Santayana, eu não dizia?) «quem esquece o passado arrisca-se a vivê-lo outra vez» e ao chegar a este ponto não adianta mais. Disse. Ou melhor, eu disse.

Mas fumar ao espelho não é só ver para trás olhando de frente. É também um modo-josé de futurar, para lá do rosto que o repete e que fumega. E aí, deixa que te diga, o pessimismo ... que nos lixa. Porquê? Ah bom, porque... uma dor de colhões, não te rias. Absolutamente. O pessimismo, se não sabes ficas a saber, sempre teve a ver com carências afectavas. Daí que ele seja incómodo por natureza. Incómodo para o próprio que, sabe Deus, tem de viver toda a vida com essa dor, esse nó, e incómodo para a Pátria que já mandou para o Camões todos os Velhos do Restelo que lhe andavam a dar azar. Isto - por um lado, aquele a que podemos chamar Da Saúde Nacional. Mas há o outro, o da superstição. Absolutamente. O pessimismo acaba sempre por funcionar como uma superstição de prudência: prevê o pior para ir acumulando resistências contra o mau mas sempre na esperança de que o mau nunca venha a acontecer. E se acontecer, percebes, também já não perde tudo, ganhou pelo menos a glória da razão. Uma superstição pela negativa ou por efeito contrário, dirá algum, mas muitas ... realmente nesse jogo a dois gumes que acaba o austero pessimismo. Que horas serão isto?

Horas? Nos colóquios de espelho nunca é tarde nem é cedo nem hora certa sequer, quem me ensinou isto foi o reverendo Lewis Carrol que tinha a mania dos vidrinhos às cores. Se calhar ... Por isso que estes exercícios, se a gente não tiver cuidado, acabam num ritual que não interessa nem ao Menino Jesus. Um ritual, José, onde o padecente, em vez de incenso se esfumaça em nicotina. Em vez de incenso, tabaco, em vez de hossanas, Provocações, e às duas por três, se a gente não mete travões, esta coisa, este frente-frente, acaba numa auto- contemplação. Ou numa autoflagelação, para o caso tanto faz. Porque aqui tudo se passa entre o indivíduo e as suas imagens e, curiosamente, numa conversa muda que sabe tanto a círculo vicioso como este cigarro que eu tenho nos dedos. Fumo-o e ele fuma-me, estás a ver?

Fumar ao espelho, solidão dobrada - diria o meu irmão se aqui estivesse (mas não está, morreu aos vinte e um anos num avião militar), ele que, sem cigarro e sem espelho, acabou por conhecer a mais estranha e a mais ampla solidão que se pode conhecer. A do espaço final, vê tu. A da imensidão azul onde a morte o foi procurar, 3500 pés acima do planeta dos homens.

Não, nisto de alguém se interrogar ao espelho, olhos nos olhos, é consoante. Tem muitos ângulos - e tu estás aí, que não me deixas mentir. Vários ângulos. Há quem procure, santa inocência, fazer um discurso de silêncio capaz de estilhaçar o vidro e há quem espere receber, por reflexo da própria imagem, algum calor animal que desconhece. Seja como for, o que dói, e assusta, e é triste e desastradamente cómico neste exercício, é o pleonasmo de si mesma em que a pessoa se transforma. Repete-se. Se bem que com feroz independência (todo o seu esforço é esse) repete-se em imagens controversas que a possam explicar.

Quanto à solidão de há pouco não há pleonasmo nem desdobramento que a salve nem mesmo os psicanalistas que temos cofres cheios dela. Para o vulgar contribuinte, a solidão resume-se a um vocábulo lamentoso ou a um fatalismo social de crédito comprovado, mas em boa verdade talvez não passe de uma metáfora do medo, simplesmente. Seja ela o que for, peço desculpa mas sem solidão ninguém vive. Solitário, não vamos mais longe, é este escritor que aqui está quando se entrega ao acto de escrever. Quer ele queira, quer não, só assim pode cumprir linha a linha a sua escrita na qualidade simultânea de autor e de leitor que são duas figuras distintas da Utopia de si mesmo. E depois? Há algum mal nisso?

De modo que fuma, José, deixa correr. Solidões, duplicações, masturbações, é tudo conversa ou pouco menos. Queimam os dedos, reduzem-nos a fibras secas se nos deixamos arrastar por elas. Concreto, concreto, só esse alguém que nos vigia, que te vigia, aí no espelho, e que nos escuta por dentro. Mas escutar, realmente? Para te ser sincero, ainda não percebi. Ainda não sei se... por arrogância, se por desconfiança que ele nos encara com tanta dureza.

Somos três agora. (Sempre fomos, tu é que não reparaste: dois que se olham e um terceiro que os escreve, olhando-se). No entanto, o rosto que nos é comum aos três está devastado pelo tempo. Esse aí não tarda muito que lhe caiam os dentes e fique coberto de rugas a bulir de vermes. Duvidas? Então espera por mais dois ou três outonos de cigarros e já vais ver. Três outonos, não lhe dou mais. Até lá vai continuar assim, em aresta viva, e com a tal contensão que, não sendo arrogância nem suspeita, ser o quê? Orgulho?

Não, orgulho, nem pensar. E se fosse, pior para ele que se calhar pouco fez para mudar o mundo e muito para não se deixar mudar. Aceitemos que é, antes, um endurecimento defensivo, para aí, sim. E aguardemos. O resto, Deus o dirá, se alguma vez o souber ler devidamente.

Tudo isto, já te disse, tem de ser encarado a vários ângulos. Sempre a vários ângulos, não te esqueças, porque, segundo alguns, os personagens deste tipo são de visagem errante. Como toda a gente? Como toda a gente, possível. Só que esse que tens diante de ti nunca na vida soube administrar a sua ima em pública, como se pode depreender logo à primeira abordagem. Porquê, não se sabe; as razões podem ser muitas. Pudor, impaciência, falta de traquejo, sei lá. Há também a independência, a independência... demasiado impeditiva, sempre foi, mas por essa ou por outras razões, a verdade é que esse talento nunca ele teve. E não se julgue que a lacuna não é grave porque a imagem de marca que os corretores das Letras e os lobbies da Opinião põem a circular no mercado a cotações de estarrecer. Ah, os lobbies, ah, os lobbies. Ah, perfumadas sacristias onde o livro em branco, antes de ser livro, já foi condenado ou marcado com uma pétala seca na página da eternidade.

Uma vez mais, silêncio, José mantém-se olhos nos olhos. Parece desconhecer que em qualquer álbum de glórias o verdadeiro retrato do paciente pode ser desfigurado com a mesma facilidade com que o fumo do cigarro o encobre ali no espelho. Nesse caso que se lixe e cara alegre, então não é?

Deixemo-lo portanto assim. Em directo e ao natural. Como se vê, tem o cabelo mais branco neste momento mas mantém a vislumbrada malícia de si mesmo que sempre se lhe conheceu. Pelo menos... o que eu penso - ou, antes, o que ele pensa. Vez por outra nota-se-lhe um perpassar de ironia pelo olhar, mas se o tem... luz breve e em geral magoada, não dá sequer para temperar o desalinho aparente que há nele e que provém mais de uma certa Lisboa à balda do que propriamente de outra coisa.

Quanto ao mais, pouco a acrescentar. Visagem martelada (já se disse), máscara prevenida, assimetrias de quem se talhou ao azar - e é tudo.

Ah, e os cigarros! Em 1990, este autor ainda continua a fumar, imagine-se, e a perguntar todos os dias E agora, José. A cada interrogação aspira, fundo e lento, até o morrão do cigarro abrir brasa no vidro do espelho, e há alturas em que encolhe os ombros e pensa de alto «Acta est fabula», se assim me posso exprimir em sinal de despedida.

Mas é um dizer por dizer, nada de especial. Quando menos se esperar, ele aí estará outra vez nesta cadeira e neste lugar, a fazer resumo e projecto de si mesmo, e diga-se de passagem que não se dá mal assim. Como sempre, não tem angústia nem surpresa porque vai encontrar alguém que amanhã, dia comum, recomeça de novo a vida na primeira linha do capítulo que se segue.

Aqui tens, José, o homem que te interroga. Que te fuma e te duvida. Que te acredita.

E com esta me despeço, adeus até outro dia, e que a terra nos seja leve por muitos anos e bons neste lugar e nesta companhia.

Pá, apaga-me essas rugas. Riscam o espelho, não vês?


Cardoso Pires por Cardoso Pires, entrev. de Artur Portela, 1ª edição, Publicações D. Quixote, 1991, 124 p., pp. 89-94


(Fonte do texto CITI)