sexta-feira, 29 de junho de 2018

"Pareço uma destas árvores que se transplantam..." (Miguel Torga)



Como a gente se perde! A linguagem que o meu sangue entende — é esta. A comida que o meu estômago deseja — é esta. O chão que os meus pés sabem pisar — é este. E, contudo, eu não sou já daqui. Pareço uma destas árvores que se transplantam, que têm má saúde no país novo, mas que morrem se voltam à terra natal.

Miguel Torga, Diário




quarta-feira, 27 de junho de 2018

O Alentejo (Eugénio de Andrade)

Alter do Chão - Fotografia de António Sardinha


O ALENTEJO

No Alentejo, em fins de Julho ou princípios de Agosto, o olhar atinge o seu zénite. No horizonte raso e limpo tudo parece pegado à terra: muros, árvores, medas de palha, montes, quando se avistam distantes. Um delírio de luz sobe à cabeça, como a música das cigarras, e faz doer. As coisas todas estalam como romãs maduras, e ficam cheias de brilhos. Mesmo dentro de casa, com portas e janelas trancadas, a luz entra pelas frestas, entorna-se pelas tijoleiras e reflecte-se, tenuamente rosada, na brancura das paredes. No pátio, uma oculta água ergue-se num repuxo exíguo – e é pura delícia. Cheira a barro e a cal, cheira a coentros e a queijo seco. Cheira ao que é da terra e regressa à terra. Um som de guizos, o trote miúdo das mulas, o grito de uma criança, custam a distinguir, de tão longe vêm. Neste longo, ardente Verão do Sul, apenas as cigarras têm modulações amplas. À roda tudo é silêncio e secura. Os próprios homens quase não têm fala, mas os seus olhos queimam como duas pedras expostas ao sol durante milhares de dias. Só eles afirmam que nem tudo no Alentejo nasce e morre acachapado à terra. Eles, e uns pombos bravos que subitamente rasgam o céu, como quem foge ao áspero, ardido, amargo coração do meu país.

Falei da luz do Alentejo, mas não é ela que verdadeiramente me liga e religa a esta terra: é demasiado ácida, falta-lhe uma doçura última, mediterrânea, que só encontraremos mais a sul. O que me fascina aqui é uma conquista do espírito sem paralelo no resto do país, numa palavra: um estilo. O melhor do Alentejo é uma liberdade que escolheu a ordem, o equilíbrio. Estas formas puras, sóbrias de linha e de cor, que vão da paisagem à arquitectura, da arquitectura ao vestuário, do vestuário ao cante, são a expressão de um espírito terreno cioso de limpidez, capaz da suprema elegância de ser simples. Povertà é talvez a palavra ajustada a uma estética alheia ao excesso, ao desmedido, ao espectacular. Ao luxo prefere-se a modéstia; à anarquia, o rigor; à paixão, um concentrado amor. O Alentejo é inimigo do barroco em nome da claridade. Mundo cerrado (quase apetecia escrever: encarcerado), sem dúvida; mas dos seus limites tira o alentejano a força. O seu olhar, na impossibilidade de ir mais longe, irá cada vez mais fundo, e o que lhe sai das mãos é fruto de uma paisagem enxuta, quase hirta, de uma magreza reduzida ao osso. Uma paisagem essencial, de que pode orgulhar-se um homem, quando lhe reflecte o rosto ou a alma.

Eugénio de Andrade

Alentejo (1997)




segunda-feira, 25 de junho de 2018

"há colares que são coleiras" (Bénédicte Houart)

Bénédicte Houart (*)



há colares que são coleiras
há mulheres que são cadelas
certos homens, cães raivosos

os cães propriamente ditos
não foram para aqui chamados
embora metam o nariz em todo o lado
farejando coisas imaginárias
e, de resto, não falam, ladram
têm com certeza razão

Bénédicte Houart

in Vida: variações, Cotovia.


Bénédicte Houart, filha de pai belga e mãe portuguesa, nasceu em Braine-le-Conte, uma pequena cidade nos arredores de Bruxelas, em 1968. Mudou-se ainda na infância para Portugal, em 1975, onde tem vivido desde então. Crescendo bilíngue, adotou a língua portuguesa por pátria, como diria Pessoa. (...)

Poema e dados biográficos: modo de usar & co. - revista de poesia e outras textualidades conscientes



sexta-feira, 22 de junho de 2018

A terra onde a camioneta parava num largo (João Tunes)



A TERRA ONDE A CAMIONETA PARAVA NUM LARGO

Com os meus sete anos de idade tive direito às minhas primeiras férias de praia no Algarve. Iria para Sagres a banhos durante dois meses nas férias grandes. Na altura, primeira metade da década de 50, o Algarve não era terra de turismo, exceptuando a Praia da Rocha e pouco mais e mesmo aí com dimensões muito modestas. Os algarvios viviam, a maioria muito mal, da agricultura, da pesca, das conservas e da indústria corticeira concentrada em Silves. Aliás, nos seus modos de viver, a pobreza algarvia era uma continuidade da pobreza alentejana, numa homogeneidade de paisagem humana e social, com a excepção da dimensão das propriedades agrícolas (mais concentrada no Alentejo e mais dispersa no Algarve) e que só as serranias de fronteira davam conta da mudança de província. E se o turismo em todo o Algarve era minúsculo, em Sagres o único forasteiro (turista) a banhos era eu. A razão deste tamanho privilégio devia-se à Dona Francisca, uma algarvia nómada que fazia temporadas de costura como modista em Lisboa, recolhendo-se à sua terra durante o verão em retorno à sua condição de pequena camponesa e cujos magros proventos compunha com os ganhos amealhados a costurar na capital. Como a senhora costurava para a minha Tia Ana, foram ajustadas com ela umas férias algarvias para o sobrinho enfezado e a quem talvez o iodo e umas braçadas ajudassem a encorpar. E foi assim, em suplemento de receita para a Dona Francisca, que ela se dispôs a ser minha hospedeira turística e eu usufrui dessa regalia a poucos acessível de me tornar um dos poucos turistas no Algarve da época.

Mas para veranear em Sagres, havia que lá chegar e usando os vagarosos meios de transporte daquele tempo e em que poucos eram os passageiros com tal destino. Fui metido mais a mala de bagagem na camioneta da carreira da Companhia dos Belos que saía de Cacilhas e ia até Faro. A mala foi guardada no tejadilho da camioneta juntamente com as tralhas dos restantes passageiros. De cada vez que a camioneta parava, o motorista subia ao tejadilho através de uma escada metálica e descarregava as malas e embrulhos dos que se apeavam e iam indicando quais os seus pertences e depois carregava as mercadorias acartadas pelos novos passageiros que se iam juntando à viagem. Eu tinha a recomendação que devia descer em Lagos, onde a Dona Francisca me esperava para me levar, noutra ligação rodoviária, para Sagres. Era a minha primeira viagem entregue a mim próprio. Perguntei como é que eu saberia quando tinha chegado a Lagos. Explicaram-me que Lagos era uma terra grande e a camioneta parava num largo, logo que lá chegasse disso me daria conta. Tentei fixar estes pormenores que eram fundamentais para me orientar. Repeti para comigo diversas vezes: “Lagos é uma terra grande e lá, a camioneta pára num largo”. Feitas as despedidas, a camioneta arrancou. Ao passar por Setúbal, a viagem já me parecia muito comprida. Tanto o tempo demorava a passar e o desfilar da paisagem pela janela me surgia monótona que me convenci que, passado que era essa tal terra grandinha de Setúbal, já não devia faltar muito para o meu destino. O Algarve, Lagos, devia ser um bocado mais à frente mas não muito. A camioneta entra em Alcácer do Sal sem me aperceber do nome da terra em que tinha entrado, vejo compridos casarios e dou com a camioneta a parar num largo. Sobressaltei-me com aquela visão de um largo, lembrando que a camioneta parava em Lagos num largo, apresto-me a sair, suando com o receio de passar Lagos e ir parar a um destino mais longínquo onde nunca mais encontraria a Dona Francisca. Peço ao motorista que tire a minha mala do tejadilho. Indico qual é e num instantinho já a tinha ao pé de mim. Olho em volta e não vejo sinal da Dona Francisca ou de quem, a seu mando, desse sinais de me esperar. Aflijo-me sem capacidade de reacção, a mala ao meu lado em companhia inerte. O motorista prepara-se para retomar a marcha mas um sexto sentido fá-lo reparar no meu ar em bloqueio aflito. Desce da camioneta e pergunta-me se está tudo bem. Eu explico que não vejo quem me vinha buscar a Lagos para me levar para Sagres. “Lagos? Sagres? Estamos em Alcácer”. É a minha vez de não entender o que se passava. “Alcácer? Mas eu quero ir para Lagos”. O motorista volta a carregar a maleta no tejadilho da camioneta, manda-me subir e diz para estar tranquilo que, quando chegasse a Lagos, me avisaria. A viagem pareceu-me interminável. E, para atrapalhar, em quase todas as terras onde a camioneta parava, havia largos. Fixava crispado o motorista pois estava sempre com um tremendo medo de o homem se esquecer de mim e passar à frente de Lagos. A solução era fixar, placa a placa, os nomes de todas as terras. Mas os nomes que ia vendo desfiarem-se perante os meus olhos nada me diziam. Cercal seria antes ou depois de Lagos? E Milfontes? E Aljezur? A concentração e o nervoso eram tantos que não toquei na merenda que me tinha sido preparada para a viagem para os confins do Sul. Não me podia distrair e o nervoso afugentava a fome. Lá cheguei a Lagos, com aviso prévio dado pelo motorista. E passada mais uma viagem adicional, já estava instalado na casa da Dona Francisca para início das minhas primeiras férias algarvias, estreando o turismo de praia em Sagres.

No regresso, tudo foi mais fácil. A camioneta dos Belos parava em Cacilhas e imobilizava-se a olhar para o Tejo, a bisbilhotar os passageiros dos cacilheiros. No meu raciocínio de então, formulei o juízo definitivo de que as camionetas estavam muito mal organizadas. Elas deviam sair de um sítio até outro sem paragens pelo meio que só serviam para baralhar os passageiros. O certo é que daquelas longas férias de praia algarvia só acessível a um forasteiro privilegiado, mais que dos banhos e das brincadeiras, que foram prazenteiras e com muito bom trato da hospedeira, no que a minha memória ficou mais marcada foi a odisseia e sofrimento para chegar a Lagos, uma terra onde a camioneta parava num largo.

João Tunes


Lido no blogue Caminhos da memória (28 de julho de 2009)


João Tunes, um dos autores do blogue Caminhos da Memória, fala nele sobre si:

Sou homem de voltas trocadas. Transmontano de nascimento, fui criado como barreirense adoptivo. Filho biológico de camponeses com fome em demasia, uns parentes piedosos adoptaram-me para que tivesse “algum futuro”. Como estudante, andei mais na luta que de volta das “sebentas”. Pugnando pela liberdade, puseram-me a dormir em Caxias. Paisano enraizado, fardaram-me e fizeram-me oficial de comandar tropa para disparar canhão. Militante da luta anti-colonial, fiz comissão onde a guerra ferveu mais, na Guiné. Tendo gasto a juventude a intoxicar-me vivendo o fascismo à portuguesa, quando vinda a democracia, virei militante comunista a querer saltar para a revolução. Ateu e anticlerical de pequeno, sempre houve padres católicos que insistiram em serem meus amigos. Fui quadro técnico de uma grande empresa e, em vez de cuidar da carreira, andei feito dirigente sindical da classe operária organizada. Aliviei-me, farto, de tanta contradição. Quase só me resta o nojo pelas ditaduras (todas). Tento, com o jeito possível, dar testemunho, sobretudo dos meus enganos (que é do que mais sei em política). E olhar sempre nos olhos filhos e netos. Espero morrer coerente. Finalmente.


EDITORIAL

Caminhos da Memória é um blogue que pretende dar voz a formas de lembrar, de evocar e de interpretar o passado, recorrendo a leituras contemporâneas da história e da memória.

Procurará fazê-lo recorrendo a diferentes formulações que se coadunem com as características específicas da blogosfera e que ajudem a desenhar percursos para redescobrir os legados que recebemos do país e do mundo.

Incluirá também informação sobre documentos, livros, filmes e eventos relacionados com os objectivos que nos propomos perseguir, bem como ligações a instituições, publicações e blogues que privilegiem temas ligados à memória e à história.

O núcleo redactorial é constituído maioritariamente, por membros da Associação «Não Apaguem a Memória!», mas este blogue não compromete a direcção daquela Associação e mantém com a mesma um relacionamento puramente informal. No entanto, acompanhará de perto as suas actividades e está empenhado em contribuir para o desenvolvimento das mesmas.

(...)

Editorial de Caminhos da Memória


A última mensagem foi publicada a 16 de maio de 2010.





quarta-feira, 20 de junho de 2018

Palavras (João de Mancelos)

Palavras - Fotografia de Ana Tiersen



PALAVRAS

Vem aí o Verão,
e as palavras trocam de pele,
algumas, de raça até.

O canto já não é o canto mesmo,
e mesmo as suas proas
são agora doutras bocas,
salgadas, e mais a sul.

Hereditárias de sol,
elas desabrocham, as palavras,
um doce fruto escorrendo pela voz,
o rumor leve, adolescente,

o lento fiar do vento
nas suas conchas naufragadas.

João de Mancelos



(Blogue Rua das Pretas)


Alguns dados: João de Mancelos, nome literário de Joaquim João Cunha Braamcamp de Mancelos, nasceu em Coimbra, em 1968. (...)

Escreveu diversos livros de poesia, conto e ensaio. Tem trabalho disperso por várias antologias literárias, bem como em revistas literárias ou universitárias.

(escritores.online)


segunda-feira, 18 de junho de 2018

Essa cachorra vira-latas (Isabela Figueiredo)



ESSA CACHORA VIRA-LATAS

O meu pai quis emigrar para o Brasil, mas não conseguiu. Moçambique foi uma segunda escolha.
Do Brasil, nos anos 40, vinham os brasileiros, todos ricos, de fato branco, e ao meu pai devia agradar a ideia. Barrigudo, de anéis nos dedos.
Se o meu pai tivesse emigrado para o Brasil toda a nossa vida teria sido diferente. Primeiro, ele não poderia agir por lá como colonialista; segundo, é provável que nunca daí tivéssemos saído; terceiro, eu não teria de esperar pela próxima vida para ser brasileira, e poderia sentir-me todos os dias na minha verdadeira pele.
Eu gosto de brasileiros. Gosto da forma como encaram a vida, cantam, dançam, comem, bebem e riem. Gosto da sua expressividade. "Acaba não, mundão", dizem, chegando à praia, abrindo os braços ao sol. A senhora da loja de vernizes, na Costa da Caparica, diz-me "você pode usar esse prateado aí, e um dia especiau, pr'a brilhar mesmo, você mete este outro por cima e ninguém a segura" - e em vez de um verniz, vende-me dois, porque ela acertou, eu quero brilhar, eu quero que ninguém me segure.
Será assim tão impossível compreender o fascínio que o mundo inteiro sente pelo Brasil e a enorme vontade de aprender português para saber pedir uma cachaça, uma água de coco, e dizer pr'o mulato, você é lindo?

Compreendo lindamente, e gostaria que os portugueses fossem muito mais brasileiros, muito mais leves, sorridentes. Que levantassem o rabo das cadeiras e não vivessem no medo do que pensam os outros.
Passeando hoje com a Morena, apanhei-me a dizer-lhe, sai daí vira-latas. O que fazia ela? Virava lata. Ou seja, investigava as imediações dos contentores do lixo com um interesse extraordinário. E apercebi-me de que a expressão que os brasileiros usam para designar o cão rafeiro é a mais bonita, a mais expressiva. Nunca me ocorre que a Morena seja rafeira, mas cachorra vira-latas, sim, todos os dias, durante os passeios. É vira-latas mesmo.
O português falado no Brasil tem uma série de outras palavras compostas absolutamente deliciosas, criadas pelo uso, pela observação, pelo povo. Uma língua constrói-se e evolui dessa forma. É uma tristeza sentir que os portugueses têm a presunção de pensar que só o Português europeu é Português a sério.

Isabela Figueiredo

Retirado do seu blogue Novo Mundo, 26 de julho de 2011


sábado, 16 de junho de 2018

Ah, no terrível silêncio do quarto (Álvaro de Campos/Fernando Pessoa)

Fotografia de Paul Jackson


Ah, no terrível silêncio do quarto
O relógio com o seu som de silêncio!
Monotonia!
Quem me dará outra vez a minha infância perdida?
Quem ma encontrará no meio da estrada de Deus —
Perdida definitivamente, como um lenço no comboio.

16-8-1929

Álvaro de Campos / Fernando Pessoa
 

Álvaro de Campos - Livro de Versos. Fernando Pessoa. (Edição crítica. Introdução, transcrição, organização e notas de Teresa Rita Lopes.) Lisboa: Estampa, 1993. - 109.


(Arquivo Pessoa)


sexta-feira, 15 de junho de 2018

"Não batas palmas diante da beleza...." (Ricardo Reis / Fernando Pessoa)

Afrodita, cópia romana de um original grego de Praxíteles


Não batas palmas diante da beleza.
Não se sente a beleza demasiado.
           Saibamos como os deuses
           Sentir divinamente.

Ao ver o belo, lembra-te que morre.
E que a tristeza desse pensamento
           Torne elevada e calma
           A tua admiração.

E se é estátua ou de Píndaro alta estrofe
Em quem teus olhos são abandonados
           Não te esqueças de que essa
           Beleza não é viva.

Sempre ao belo uma cousa há-de faltar
Para que seja triste contemplá-lo
           E nunca se poder
           Bater palmas ao vê-lo...

Calma é a beleza. Ama-a calmamente.
Os dons dos deuses como um deus aceita
           E terás tua parte
           Do néctar dado aos calmos.

12-2-1915

Ricardo Reis / Fernando Pessoa


Poesia, de Ricardo Reis. Edição de Manuela Parreira da Silva. Assírio & Alvim, 2ª edição, Junho 2007




quinta-feira, 14 de junho de 2018

Poema XX de O Guardador de Rebanhos (Fernando Pessoa / Alberto Caeiro)



XX

O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia,
Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia
Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia,

O Tejo tem grandes navios
E navega nele ainda,
Para aqueles que vêem em tudo o que lá não está,
A memória das naus.

O Tejo desce de Espanha
E o Tejo entra no mar em Portugal.
Toda a gente sabe isso.
Mas poucos sabem qual é o rio da minha aldeia
E para onde ele vai
E donde ele vem.
E por isso, porque pertence a menos gente,
É mais livre e maior o rio da minha aldeia.

Pelo Tejo vai-se para o Mundo.
Para além do Tejo há a América
E a fortuna daqueles que a encontram.
Ninguém nunca pensou no que há para além
O rio da minha aldeia.

O rio da minha aldeia não faz pensar em nada
Quem está ao pé dele está só ao pé dele.

7-3-1914

Alberto Caeiro / Fernando Pessoa


“O Guardador de Rebanhos”. In Poemas de Alberto Caeiro. Fernando Pessoa. (Nota explicativa e notas de João Gaspar Simões e Luiz de Montalvor.) Lisboa: Ática, 1946 (10ª ed. 1993). - 46.

“O Guardador de Rebanhos”. 1ª publ. in Athena, nº 4. Lisboa: Jan. 1925.


(Arquivo Pessoa)




quarta-feira, 13 de junho de 2018

A criança que fui chora na estrada... (Fernando Pessoa)



I

A criança que fui chora na estrada.
Deixei-a ali quando vim ser quem sou;
Mas hoje, vendo que o que sou é nada,
Quero ir buscar quem fui onde ficou.

Ah, como hei-de encontrá-lo? Quem errou
A vinda tem a regressão errada.
Já não sei de onde vim nem onde estou.
De o não saber, minha alma está parada.

Se ao menos atingir neste lugar
Um alto monte, de onde possa enfim
O que esqueci, olhando-o, relembrar,

Na ausência, ao menos, saberei de mim,
E, ao ver-me tal qual fui ao longe, achar
Em mim um pouco de quando era assim.


II

Dia a dia mudamos para quem
Amanhã não veremos. Hora a hora
Nosso diverso e sucessivo alguém
Desce uma vasta escadaria agora.

E uma multidão que desce, sem
Que um saiba de outros. Vejo-os meus e fora.
Ah, que horrorosa semelhança têm!
São um múltiplo mesmo que se ignora.

Olho-os. Nenhum sou eu, a todos sendo.
E a multidão engrossa, alheia a ver-me,
Sem que eu perceba de onde vai crescendo.

Sinto-os a todos dentro em mim mover-me,
E, inúmero, prolixo, vou descendo
Até passar por todos e perder-me.


III

Meu Deus! Meu Deus! Quem sou, que desconheço
O que sinto que sou? Quem quero ser
Mora, distante, onde meu ser esqueço,
Parte, remoto, para me não ter.

22-9-1933


Novas Poesias Inéditas. Fernando Pessoa. (Direcção, recolha e notas de Maria do Rosário Marques Sabino e Adelaide Maria Monteiro Sereno.) Lisboa: Ática, 1973 (4ª ed. 1993). - 90.


(Arquivo Pessoa)





segunda-feira, 11 de junho de 2018

eu sei lá, sei lá (Marta Lança)

Fotografia de Kris Harvestter


eu sei lá, sei lá

Já não passava a época dos santos populares em Lisboa há muito tempo. Apesar do ritual repetido (as músicas, as sardinhas, os manjericos e os bezanos ancestrais) há uma alegria nestas noites que não deixa de ser entusiamante e sempre renovada.

O Santo António traz ao de cima o que há de mais bairrista, buçal e provinciano nos lisboetas, mas também por isso mesmo, retrai qualquer coisa de muito igual que atravessa o mundo. Para perplexidade de europeus que visitam a cidade nesta altura, o castiço, a informalidade, a música pimba, os amassos, o calor, tanto humano como do outro, vingam e valem a pena. Aquelas pessoas que não se cruzam durante o resto do ano, arrumadas nos seus códigos e representações socio-culturais, frequentando espaços de acordo com critérios de meio, gostos e amigos, ali se acotevelam, sorriem, comunicam, brindam, admiram-se ironica e mutuamente. Dançam lado a lado sucessos de criativas letras como “é o bicho é o bicho”, a “cabritinha” ou a “garagem da vizinha”. As feministas dos bar dos Anos 60 fazem olhinhos aos betos de Santos, o Toni da oficina bebe do mesmo plástico do chinês da papelaria e o casal vamp partilha a calçada portuguesa com o par de barrigudos que dança solene aqueles dois toques com 40 anos de prática. Todos dão o show.

Na noite de dia 12 para 13 de Junho em qualquer recanto do centro histórico, da Graça a Alfama, da Bica à Mouraria, o movimento é um corpo colectivo a descer e subir as colinas de Lisboa. Sem faltar o territorial desfile alegórico das marchas populares na Avenida, na competição renhida mas fraterna entre os não tão diferentes bairros, com as suas coreografias, adereços, altares em riste, que reforçam identidades não problemáticas, como bem quis o Estado Novo. E a encerrar o desfile, decrépito e triste como todos os mundos pirotécnicos, o fogo-de-artifício.

Bonita festa de palcos suspensos e sintetizadores estereofónicos, os verdadeiros protagonistas das canções. De arraial em arraial, a mesma dúvida existencial é-nos oferecida na cantiga mais em voga esta ano: “mas quem será, mas quem será o pai da criança? Eu sei lá sei lá!” Mais à frente uma roda de kuduro, do outro lado a música tecno ganha terreno com gente aos pulos e mão indicadora dançando sem amanhã. Os grelhadores improvisados reforçam na febra, bifana e sardinha, e a facturar. Há uns quantos indianos com perucas onde desponta uma careca de santo António. Serão funcionários da Câmara a vender a imagem do multiculturalismo da cidade?

O bom povo português que, por estes dias, descontrói o poder com toda a gente junta a desprivatizar a rua entre a “cabritinha” e as cervejas, ocupando as esquinas e as escadas com o seu sound system, a sua alegria e o seu “não quero saber”, o mesmo que comenta nas tascas a troika e os políticos - todos iguais, é só promessas e cantigas - e votam nos que lá estão.

E assim vamos, ao menos em Junho o ar é de todos.

Marta Lança


No seu blogue A vida escrita (20-6-2011)



domingo, 10 de junho de 2018

Error meus, má fortuna, amor ardente

Autor ?



Erros meus, má fortuna, amor ardente
Em minha perdição se conjuraram;
Os erros e a fortuna sobejaram,
Que para mim bastava o amor, somente.

Tudo passei; mas tenho tão presente
A grande dor das cousas que passaram,
Que as magoadas iras me ensinaram
A não querer já nunca ser contente.

Errei todo o discurso de meus anos;
Dei causa a que a Fortuna castigasse
As minhas mal fundadas esperanças.

De amor não vi senão breves enganos…
Oh! Quem tanto pudesse que fartasse
Este meu duro Génio de vinganças!

Luís de Camões


Análise deste soneto no blogue Sonetos camonianos



sábado, 9 de junho de 2018

Amor é... (Abade de Jazente e Luís de Camões)



Paulino António Cabral de Vasconcelos (Amarante, 6 de Maio de 1719 — 20 de Novembro de 1789), melhor conhecido por Abade de Jazente, foi um poeta português.

É claro que depois de ler este soneto, podemos reler o inspirador soneto camoniano "Amor é um fogo que arde sem se ver"


Amor é um arder que não se sente,
É ferida que doi e não tem cura,
É febre que no peito faz secura,
É mal que as forças tira de repente.

É fogo que consome ocultamente,
É dor que mortifica a criatura,
É ansia a mais cruel, a mais impura,
É fragoa que devora o fogo ardente.

É um triste penar entre lamentos,
É um não acabar sempre penando,
É um andar metido em mil tormentos.

É suspiros lançar de quando em quando,
É quem me causa eternos sentimentos,
É que me mata e vida me está dando.

Abade de Jazente 



Frontispício da primeira edição em 1786 de Poesias
de Paulino António Cabral, Abade de Jazente.



Amor é um fogo que arde sem se ver;
É ferida que dói, e não se sente;
É um contentamento descontente;
É dor que desatina sem doer.

É um não querer mais que bem querer;
É um andar solitário entre a gente;
É nunca contentar-se e contente;
É um cuidar que ganha em se perder;

É querer estar preso por vontade;
É servir a quem vence, o vencedor;
É ter com quem nos mata, lealdade.

Mas como causar pode seu favor
Nos corações humanos amizade,
Se tão contrário a si é o mesmo Amor?

Luís de Camões





sexta-feira, 8 de junho de 2018

Sinais de Fogo (Jorge de Sena)



Ramon Berenguer de Cabanellas y Puigmal já era célebre, quando, por fusão de duas turmas, passou a ser meu colega no 6.º ano dos liceus. As suas calmas e sonhadoras extravagâncias, o seu ar de senhor de idade, o mistério adulto de que rodeava a sua figura pequena e atlética, a sua profunda convicção de que, desde o século XII ou XIII, a Espanha devia à sua família o condado de Barcelona, as pergun­tas absurdas, feitas com o ar mais convicto e ingénuo do mundo, com que ele era o terror dos professores inseguros, e o seu famoso sistema filosófico que tudo explicava e o dispensava, «graças ao con­trole das energias do cérebro», de estudar as lições (salvo em casos de última emergência), tudo isto não fazia dele um ídolo nem um chefe, mas um ente respeitadíssimo, apesar da ironia com que todos o apontavam. Uma vez, numa aula de filosofia (o professor era um pobre diabo, muito lendário pela degradação intelectual a que che­gara, e a quem, certo dia, na indisciplina ruidosa que eram essas aulas, demonstrámos o argumento de Diógenes arrastando todas as carteiras, sentados nelas, para os vários cantos da sala), D. Ramon levantou-se, e objectou que todos os seres vivos tinham alma, o que, segundo as regras da ciência, era uma verdade, e não um ponto controverso da especulação filosófica. Fez-se um silêncio de expec­tativa risonha. E o professor, debruçando sobre a secretária os bigo­des pendentes e amarelados, perguntou-lhe: - Quais regras da ciên­cia? - E ele, entreabrindo os lábios finos que nunca se sabia quando sorriam ou se apertavam de contrariedade, respondeu: - A observa­ção e a experimentação. - Ah, muito bem, e como foi que o senhor observou e experimentou a alma dos animais? - Como, senhor dou­tor? Pessoalmente -. E foi uma gargalhada geral. Ficou imperturbá­vel. - Pessoalmente? - repetiu o professor. - Sim senhor.Fotografando a morte de um gafanhoto -. Nova gargalhada. - Um gafanhoto? E o que deu a fotografia? - continuou o professor como que desperto da sua sonolência costumeira. - A fotografia, senhor doutor, foi tirada por um irmão meu, enquanto eu matava o gafa­nhoto. Mas de modo que se visse a alma passar. E, nela, vê-se niti­damente a alma subindo ao céu. - A alma do gafanhoto, a alma do gafanhoto -, repetíamos todos por entre as risadas. E ele, circunva­gando um olhar por sobre as nossas cabeças, afirmou: - Sim, a alma do gafanhoto subindo ao céu -. O professor riu também, como nunca o tínhamos visto rir: - Essa é boa, sr. Puigmal, essa é muito boa. Subindo ao céu? Ah, ah, ah. E como subia ela? - Em espiral, sr. Doutor -. Foi um charivari de riso. Ele levantou a mão, solici­tando silêncio; o rosto enublou-se-lhe de um ar muito compungido, e disse: - Perdão, eu equivoquei-me -. Todos ficaram suspensos da pausa que se seguiu; ele ia, num golpe de teatro, confessar a brin­cadeira. - Equivoquei-me, cometi um lapso, não era em espiral, era em hélice que ela subia -. E sentou-se. Foi constrangido o riso que se seguiu. O professor enfureceu-se: - E essa fotografia onde está? Tem-na aí consigo? Tem? Passe-a para cá -. O Puigmal levantou-se muito digno: - Tenho, sim senhor, mas não há lei nenhuma que possa obrigar um cientista a revelar os documentos das suas pes­quisas, enquanto não estiverem concluídas -. Os nossos olhares iam de um para o outro. - Não há? Não há? Pois sou eu quem manda. Eu! Ouviu bem? Eu! -. Nunca o tínhamos visto assim. - Não posso, nem devo, até porque as experiências não me pertencem, mas a meu irmão também. - Ah não pertencem? Não lhe pertencem, por­que o senhor é um intrujão. - O senhor doutor ofende-me sem necessidade. Mas todos os cientistas esperam sempre a hora de serem mártires. Peço licença para me retirar -. A esta altura o silên­cio e a imobilidade eram totais. - Pede-me licença? Pede-me licença? Eu é que o ponho na rua, e vou participar do senhor. Saia! Ponha­-se lá fora! -. Ramon ajustou o fato, saiu da carteira, passou por entre as filas, e, ao pé da porta, voltou-se para dizer: - É uma injustiça que o senhor comete. Eu fotografei, com meu irmão, a alma do gafa­nhoto. Mas nem teria sido preciso senão como documento. Porque eu vi-a -. E, abrindo a porta com a sua mansidão, saiu. Alguns ten­taram rir-se. Todos estávamos perplexos. Mas qual não foi o nosso espanto, ao perceber que o professor chorava: - A mim... Isto só a mim... E se eu tivesse feito o mesmo com a Alicinha, quando ela morria, quem sabe, quem sabe... -. A Alicinha era uma filha dele, todos sabiam, que morrera já crescida, e sobre a qual, nos seus devaneios, às vezes dissertava em aula. Felizmente, a campainha veio tirar-nos do embaraço. E corremos para o pátio, onde Puigmal se passeava de mãos atrás das costas. As opiniões dividiam-se: ele exagerara na brincadeira, aquilo era a sério, não era... Fizemos um apertado círculo à volta dele. E o Mesquita, que era o sempre reeleito chefe de turma, pelo prestígio das suas aventuras amorosas (era amante de uma mulher casada, e que não era a primeira, não), plan­tou-se na frente dele, e perguntou: - Puigmal, essa do gafanhoto... tu inventaste para gozar o gajo? - Ele levantou os olhos indiferentes e claros na face quadrada e mate, e repetiu: - Eu vi. - Viste o... - disse o Mesquita. - Não, isso não vi. Mas a alma do gafanhoto eu vi -. O Mesquita ergueu a mão, com o ar de quem significava que o que ele fazia ao velho Torres não lhe fazia a ele. Mas baixou-a, talvez pensando que um dos poderes do Puigmal era saber luta, e arris­cava a sua autoridade ante demasiado público. E disse: - Tu juras que é verdade essa história? - Claro que juro, e pelo que vocês quiserem. E é o que repetirei ao reitor, se ele me chamar. Mas não chama, que o Torres não participou de mim -. A expectativa desperdiçou-se na discussão de se o professor participaria ou não. E a campainha con­vocou-nos para a aula seguinte, a última da tarde. (...)

Jorge de Sena

Parte do capítulo I do romance Sinais de Fogo.

Sinais de Fogo é um romance autobiográfico de Jorge de Sena, inacabado (o que existe é apenas uma parte do todo que o autor havia delineado) e publicado postumamente em 1979, um ano após a morte do autor.

A acção desenrola-se em Lisboa e na Figueira da Foz, nos anos trinta do século XX, em paralelo com a Guerra Civil de Espanha.


V. Pressa de chegar





quarta-feira, 6 de junho de 2018

" Amor, saudades tenho..." (Jorge de Sena)

Mécia de Sena, numa fotografia de Fernando Lemos




“AMOR, SAUDADES TENHO...”

Amor, saudades tenho desta vida.
Por mais que a viva ou a deteste, ou ranja
de raiva os dentes por não estar saciado
do que ela mais recusa a quem deseja mais,
tenho saudades já. Quando morrer,
não hei-de tê-la e não terei saudades:
agora sim que a sinto devorar-me
e tanto quanto se me esvai no tempo
o tanto que devoram quando ela passa.
Amor, dá-me a tua mão, aperta a minha:
saudades tenho desta vida, amor.

Jorge de Sena


De Conheço o sal... e outros poemas (1974)




segunda-feira, 4 de junho de 2018

"Quem muito viu, sofreu, passou trabalhos..." (Jorge de Sena)



Quem muito viu, sofreu, passou trabalhos,
mágoas, humilhações, tristes surpresas;
e foi traído, e foi roubado, e foi
privado em extremo da justiça justa;
e andou terras e gentes, conheceu
os mundos e submundos; e viveu
dentro de si o amor de ter criado;
quem tudo leu e amou, quem tudo foi –

não sabe nada, nem triunfar lhe cabe
em sorte como a todos os que vivem.
Apenas não viver lhe dava tudo.
Inquieto e franco, altivo e carinhoso,
será sempre sem pátria. E a própria morte,
quando o buscar, há-de encontrá-lo morto.

Jorge de Sena


De Peregrinatio ad Loca Infecta (1969), incluído em Poesia III (1978)

Este poema em Estúdio Raposa


V. jornal i



40 anos da morte de Jorge de Sena

Jorge de Sena e Eugénio de Andrade


A JORGE DE SENA, NO CHÃO DA CALIFÓRNIA

É por orgulho que já não sobes
as escadas? Terás adivinhado
que não gostei desse ajuste de contas
que foi a tua agonia?
É só por isso que não vieste
este verão bater-me à porta?
Não sabes já
que entre mim e ti
há só a noite e nunca haverá morte?

Não te faltou orgulho, eu sei;
orgulho de ergueres dia a dia
com mãos trementes
a vida à tua altura
− mas a outra face quem a suspeitou?
Quem amou em ti
o rapazito frágil, inseguro,
a irmã gentil que não tivemos?

Escreveste como o sangue canta:
de-ses-pe-ra-da-men-te,
e mostraste como não é fácil
neste país exíguo ser-se breve.
Talvez o tempo te faltasse
para pesar com mão feliz o ar
onde sobrou
um juvenil ardor até ao fim.

No que nos deixaste há de tudo,
desde o copo de água fresca
ao uivo de lobos acossados.
Há quem prefira ler-te os versos,
outros a prosa, alguns ainda
preferem o que sobre a liberdade
de ser homem
foste deixando por aí
em prosa ou verso, e tangível
brilha
onde antes parecia morta.

Às vezes orgulhavas-te
de ter, em vez de uma, duas pátrias;
pobre de ti: não tiveste nenhuma;
ou tiveste apenas essa
que te roía o coração,
fiel às palavras da tribo.

Andaste por muito lado a ver se o mundo
era maior do que tu – concluíste que não.
Tiveste mulher e filhos portuguesmente
repartidos pela terra,
e alguns amigos,
entre os quais me conto.
E se conta o vento.

Eugénio de Andrade

Agosto, 78




"Jorge de Sena nasceu em Lisboa, a 2 de novembro de 1919, e faleceu em Santa Barbara, na Califórnia, a 4 de junho de 1978. É hoje considerado um dos grandes poetas de língua portuguesa e uma das figuras centrais da cultura do nosso século XX."

Jorge de Sena, por Jorge Fazenda Lourenço (Centro Virtual Camões)

"Jorge de Sena. O homem que queria ser tudo" (Observador, 19-7-2017)



sexta-feira, 1 de junho de 2018

Uma pequenina luz (Pedro Mexia e Jorge de Sena)



UMA PEQUENINA LUZ

Bruxuleante, como a luz do Sena,
a esperança é uma vela de emergência,
coto colorido, quando a electricidade
falha. Lembrar a vela, procurá-la,
depois os fósforos, o trabalho patético
de a acender, reacender, firmar a base
e depois cinco segundos bruxuleantes,
a esperança, e a luz (eléctrica) voltou

Pedro Mexia
Senhor Fantasma (2007)


«Uma pequenina luz» de Pedro Mexia, para [ajudar a] ler «Uma pequenina luz» de Jorge de Sena, em Ágora Gaia





UMA PEQUENINA LUZ

Uma pequenina luz bruxuleante
não na distância brilhando no extremo da estrada
aqui no meio de nós e a multidão em volta
une toute petite lumière
just a little light
una picolla... em todas as línguas do mundo
uma pequena luz bruxuleante
brilhando incerta mas brilhando
aqui no meio de nós
entre o bafo quente da multidão
a ventania dos cerros e a brisa dos mares
e o sopro azedo dos que a não vêem
só a adivinham e raivosamente assopram.
Uma pequena luz
que vacila exacta
que bruxuleia firme
que não ilumina apenas brilha.
Chamaram-lhe voz ouviram-na e é muda.
Muda como a exactidão como a firmeza
como a justiça.
Brilhando indeflectível.
Silenciosa não crepita
não consome não custa dinheiro.
Não é ela que custa dinheiro.
Não aquece também os que de frio se juntam.
Não ilumina também os rostos que se curvam.
Apenas brilha bruxuleia ondeia
indefectível próxima dourada.
Tudo é incerto ou falso ou violento: brilha.
Tudo é terror vaidade orgulho teimosia: brilha.
Tudo é pensamento realidade sensação saber: brilha.
Tudo é treva ou claridade contra a mesma treva: brilha.
Desde sempre ou desde nunca para sempre ou não:
brilha.
Uma pequenina luz bruxuleante e muda
como a exactidão como a firmeza
como a justiça.
Apenas como elas.
Mas brilha.
Não na distância. Aqui
no meio de nós.
Brilha.

Jorge de Sena

Fidelidade (1959)

Aqui dito por Tânia Pinto.