terça-feira, 27 de abril de 2021

Paulo Henriques Britto - Geração Paissandu




GERAÇÃO PAISSANDU

Vim, como todo mundo,
do quarto escuro da infância,
mundo de coisas e ânsias indecifráveis,
de só desejo e repulsa.
Cresci com a pressa de sempre.

Fui jovem, com a sede de todos,
em tempo de seco fascismo.
Por isso não tive pátria, só discos.
Amei, como todos pensam.
Troquei carícias cegas nos cinemas,
li todos os livros, acreditei
em quase tudo por ao menos um minuto,
provei do que pintou, adolesci.

Vi tudo que vi, entendi como pude.
Depois, como de direito,
endureci. Agora a minha boca
não arde tanto de sede.
As minhas mãos é que coçam -
vontade de destilar
depressa, antes que esfrie,
esse caldo morno da vida.

Paulo Henriques Britto

Paulo Henriques Britto (Rio de Janeiro, 1951) é um poeta, professor e tradutor brasileiro.


"A geração Paissandu" em Digestivo Cultural e em Setaro's Blog.



quinta-feira, 15 de abril de 2021

Sá de Miranda - Comigo me desavim

Sá de Miranda, por Elvira Palma. Évora. Foto de Jaime Silva


Comigo me desavim,
Sou posto em todo perigo,
Não posso viver comigo,
Não posso fugir de mim.

Com dor, de gente fugia,
Antes que esta assim crescesse:
Agora já fugiria
De mim, se de mim pudesse.

Que meio espero ou que fim
Do vão trabalho que sigo,
Pois que trago a mim comigo,
Tamanho imigo de mim?

Sá de Miranda



Meio: Mais 

Imigo: Inimigo.


segunda-feira, 12 de abril de 2021

Filipa Leal - "Talvez por causa da Luísa..."

Filipa Leal


Talvez por causa da Luísa,
não guardei do colégio amigos de infância.
Cresci entre as minhas primas,
na quinta dos avós.
Um dia fizemos o nosso esconderijo
na pocilga já vazia de animais.
Numa parede pintámos o sol,
na outra a lua,
e fechávamo-nos naquele cubículo,
a fumar cigarros roubados aos pais,
como quem começa a preferir a arte
à natureza.

Filipa Leal


 


sexta-feira, 9 de abril de 2021

Mário de Andrade - "Na rua Aurora eu nasci..."

Casa em que M. de Andrade nasceu, em São Paulo, rua Aurora nº320* 


Na rua Aurora eu nasci
Na aurora da minha vida
E numa aurora cresci.

No largo do Paissandu
Sonhei, foi luta renhida,
Fiquei pobre e me vi nu.

Nesta rua Lopes Chaves
Envelheço, e envergonhado
Nem sei quem foi Lopes Chaves.

Mamãe! me dá essa lua,
Ser esquecido e ignorado
Como esses nomes da rua.

Mário de Andrade

Lira Paulistana (1945)

https://www.culturagenial.com/poemas-de-mario-de-andrade/



terça-feira, 6 de abril de 2021

Miguel Torga - Dies Irae

Fotografia de André Pipa

 

DIES IRAE

Apetece cantar, mas ninguém canta.
Apetece chorar, mas ninguém chora.
Um fantasma levanta
A mão do medo sobre a nossa hora.

Apetece gritar, mas ninguém grita.
Apetece fugir, mas ninguém foge.
Um fantasma limita
Todo o futuro a este dia de hoje.

Apetece morrer, mas ninguém morre.
Apetece matar, mas ninguém mata.
Um fantasma percorre
Os motins onde a alma se arrebata.

Miguel Torga 



domingo, 4 de abril de 2021

António Reis - "É domingo hoje..."

Fotografía de Gonçalo Filipe
 


É domingo hoje
mas nós não saímos

é o único dia
que não repetimos

e que dura menos

Mas põe o teu rouge
que eu mudo a camisa

não como quem
de ilusão
precisa

Tomaremos chá
leremos um pouco

e iremos à varanda
absortos

António Reis

quinta-feira, 1 de abril de 2021

Manoel de Barros - A boca

© Monica Silveira

 

A BOCA

"Por mim passavas
- a água mais pura -
e eu sofri sede.

Agora penso
nessa abertura
com que por anos
me envenenaste,
com que por anos
a minha infância
tornaste impura,
tornaste indigna
de andar ao lado
de outras infâncias...
Agora penso
deixar na fenda
de tua boca,
dissimulada,
todo o veneno
de que me inundas.
Porém és morta
resignada,
ó boca amarga
de namorada
nunca atingida,
sempre ane
boca perdida
para as saudades,
jamais beijada.

Dorme entre flores.

(Será dos anjos?)

Vai para os anjos
vai para os pássaros
do firmamento,
ó boca amarga,
que me enganavas
com aquele riso
posto no canto!

Por mim passavas
- a água mais pura -
e eu sofri quanto.

Estás no seio
da morte, quente
como na terra;
me conturbavas
como na rua
tu exibias
teus belos dentes...

Vai, grota rasa!

Flor obscura
na minha infância
desabrochada,
continuada
na adolescência
perto de casa,
na vizinhança,
solta na rua
como uma fruta
covil aberto
de mil acenos,
cobra na rua
que me mordia,
que me injetava
sutis venenos...

Vai, pesadelo,
noites de insônia,
pura miragem
de minha sede;
vai para o diabo
que te carregue,
não me persiga:
sai, boca morta!"

Manoel de Barros