quinta-feira, 21 de abril de 2022

Paulo Leminski - "Nunca sei ao certo..."



Nunca sei ao certo
se sou um menino de dúvidas
ou um homem de fé

certezas o vento leva
só dúvidas ficam de pé

Paulo Leminski


segunda-feira, 11 de abril de 2022

Fernando Pessoa / Álvaro de Campos - Notas sobre Tavira



NOTAS SOBRE TAVIRA

Cheguei finalmente à vila da minha infância.
Desci do comboio, recordei-me, olhei, vi, comparei.
(Tudo isto levou o espaço de tempo de um olhar cansado).
Tudo é velho onde fui novo.
Desde já — outras lojas, e outras frontarias de pinturas nos mesmos prédios —
Um automóvel que nunca vi (não os havia antes)
Estagna amarelo escuro ante uma porta entreaberta.
Tudo é velho onde fui novo.
Sim, porque até o mais novo que eu é ser velho o resto.
A casa que pintaram de novo é mais velha porque a pintaram de novo.
Paro diante da paisagem, e o que vejo sou eu.
Outrora aqui antevi-me esplendoroso aos 40 anos — Senhor do mundo —
É aos 41 que desembarco do comboio [indolentão?].
O que conquistei? Nada.
Nada, aliás, tenho a valer conquistado.
Trago o meu tédio e a minha falência fisicamente no pesar-me mais a mala...
De repente avanço seguro, resolutamente.
Passou roda a minha hesitação
Esta vila da minha infância é afinal uma cidade estrangeira.
(Estou à vontade, como sempre, perante o estranho, o que me não é nada)
Sou forasteiro tourist, transeunte.
E claro: é isso que sou.
Até em mim, meu Deus, até em mim.

8-12-1931


Álvaro de Campos - Livro de Versos. Fernando Pessoa. (Edição crítica. Introdução, transcrição, organização e notas de Teresa Rita Lopes.) Lisboa: Estampa, 1993. - 154.



quinta-feira, 7 de abril de 2022

Vitorino Nemésio - A concha

Georg Tocker, Autorretrato



A CONCHA

A minha casa é concha. Como os bichos
Segreguei-a de mim com paciência:
Fachada de marés, a sonho e lixos,
O horto e os muros só areia e ausência.

Minha casa sou eu e os meus caprichos.
O orgulho carregado de inocência
Se às vezes dá uma varanda, vence-a
O sal que os santos esboroou nos nichos.

E telhados de vidro, e escadarias
Frágeis, cobertas de hera, oh bronze falso!
Lareira aberta ao vento, as salas frias.

A minha casa... Mas é outra a história:
Sou eu ao vento e à chuva, aqui descalço,
Sentado numa pedra de memória.

Vitorino Nemésio



sexta-feira, 1 de abril de 2022

Francisco José Tenreiro - Ritmo para a jóia daquela roça


Olie Ribeiro. Fotografia de Kris Haamer 


RITMO PARA A JÓIA DAQUELA ROÇA

Dona Jóia dona
dona de lindo nome
tem um piano alemão
desafinando de calor.

Dona Jóia dona
do nome de Sum Roberto
está chorando nos seus olhos
de outras terras saudades.

Dona Jóia dona
dona de tudo que é lindo:
do oiro cacaueiro
do café de frutos vermelhos
das brisas da nossa ilha.

Dona Jóia dona
dona de tudo que é triste:
meninos de barriga oca
chupando em peitos chatos;
negros de pezão grande
trabalhando pelos matos.

Ai! Dona Jóia,
dona de mim também –
Jesus, Maria, José
Credo! –
não me olhe assim-sim
que me pára o coração!

Francisco José Tenreiro