segunda-feira, 28 de novembro de 2011

"Eis-me acordado" (Al Berto)


Clip Voz da RTP - "Eis-me acordado", poema de Al Berto
lido por Paulo Pires.


Eis-me acordado
Com o pouco que me sobejou da juventude nas mãos
Estas fotografias onde cruzei os dias sem me deter
E por detrás de cada máscara desperta
A morte de quem partiu e se mantém vivo...

A luz secou na orla desértica da cidade
Escrevo para sobreviver
Como quem necessita de partilhar um segredo...

Este corpo em que me escondi... gastou-se...

Quantas noites permanecerão intactas no fundo do mar?
O rosto ainda jovem
Foi o tesouro de seivas que me entonteceu
Pelo corpo condeno-me à vida
De susto em susto à inutilidade da escrita...

Mas eis-me acordado
muito tempo depois de mim
Esperando por alguma fulguração do corpo esquecido
À porta do meu próprio inferno...

Al Berto


Al Berto é o  pseudónimo de Alberto Raposo Pidwell Tavares (Coimbra, 1948 - 1997), poeta, pintor, editor e animador cultural português.



sexta-feira, 25 de novembro de 2011

A língua portuguesa é de borracha (Isabela Figueiredo)



A LÍNGUA PORTUGUESA É DE BORRACHA

Os portugueses, e se calhar os povos de outros idiomas, usam a sua língua como certos provincianos: ao comprar um sofá de pele nunca lhe tiram o plástico protetor, para não se estragar. O resultado é que passam a sentar-se num sofá de plástico, e, quando finalmente removem a proteção, porque entretanto lhes cheirou a mofo, a pele que tanto protegeram, apodreceu.

Todos são donos da língua e a usam e modificam a cada dia das suas vidas. As línguas não se alteram quanto à grafia, léxico, semântica ou sintaxe por mero decreto. Quando chega o decreto já elas mudaram há muito, e somos nós os responsáveis. Sentámo-nos nela, gastámo-la, remendámo-la, arranjámos formas de tornar o assento da língua mais confortável. A lei de Lavoisier aplica-se a quase tudo, mas à língua, que nem ginjas. Nela, nada se perde, e mesmo o que se ganha, transforma-se. Ninguém se preocupa com a evolução sofrida pelos diversos falares do Latim em contato com as línguas dos territórios para onde foram levados pela expansão do Império Romano, mas se uma palavra do Português europeu perde uma consoante muda, o nosso país indigna-se como não se indignaria se tivéssemos um primeiro-ministro mentiroso ou um presidente lerdo das ideias. Que estamos a imitar os brasileiros. Que nós não falamos brasileiro. E, sobretudo, que a nossa língua é melhor que a deles. Não levo as mãos à cabeça porque não posso perder tempo com dramatizações, embora goste.

Os meus alunos, que ainda há um ano davam erros ortográficos que deixarão de o ser a partir do momento em que o acordo vigore nas escolas - no próximo ano letivo, embora nos exames nacionais já tenhamos sido avisados para aceitar as duas grafias - insurgem-se contra ele. Escrevo-lhes, no quadro, redacção, e peço que leiam. Leem redação. Segundo passo: escrevo redação, e leem redação. Qual a diferença, pergunto. Bem, a diferença, é que sem a consoante muda está errado. Porquê? Porque altera. Mas a alteração prejudica a mensagem? Na leitura, não, mas na escrita fica estranho. Explico: a aquisição das regras gráficas de uma língua leva anos a fazer-se, e confere um estatuto cultural. Quem escreve de acordo com as regras pertence automaticamente a uma élite bem escrevente, com os privilégios sociais que daí advêm.. Nunca se sabe tudo, mas convém estimar o que se aprendeu, porque não foi fácil adquiri-lo, e porque mudar hábitos custa; no caso dos meus alunos, também porque a aprendizagem é recente, e estão inchados com ela: vêm agora dizer-lhes que têm de desaprender?! E, para mais, a extraordinária arrogância dos 17 anos, diferente da dos 20, dos 30 e dos 40...

Recusam-se a ler livros em Português do Brasil. Não é Português, alegam. Dou o meu melhor explicando-lhes tudo o que aprendi sobre dialetologia, regionalismos, história da língua. Provam-me que é uma língua diferente porque os brasileiros dizem que usam terno e deixam crescer a grama nos jardins. Explico que os dois vocábulos têm origem latina, e que embora constituam, hoje, para nós, arcaísmos, foram os portugueses que os levaram para o Brasil, e que ainda se encontram em todos os dicionários. Reforço que ainda há poucos dias, em Páre, Escute e Olhe, documentário de Jorge Pelicano, ouvi um velhote de Trás-os-Montes dizer que não tinha grana. Ah, que isso é porque nas aldeias são muitos atrasados, não falam bem, argumentam! Tento fazer-lhes ver que nas zonas mais isoladas os vocábulos de uso antigo se mantiveram. Mas o Brasil não é isolado. Não é agora, mas foi. Enfim, uma luta diária.

Passam a palavra, e há alunos de turmas que não me pertencem a interpelarem-me sobre como é possível eu ser professora de Português e defender o acordo ortográfico e a alteração da língua. Olham-me como se fosse uma professora sacrílega.

Entretanto, os brasileiros riem-se. Os brasileiros e todos os africanos e timorenses que usam a nossa língua, que é deles, quotidianamente, como lhes serve melhor. A língua portuguesa, felizmente, é de borracha. Eu admiro sinceramente o que fazem com ela. Parece uma grande manta de crochet que vai crescendo com malhas e desenhos diferentes, partindo de uma mesma técnica.

As alterações no léxico e na grafia de uma língua são peixe miúdo. Como é que se diz refogado no norte de Portugal e batata na Madeira? O que pode realmente afastar o português europeu do que se fala no Brasil e em África é a fonética ou a sintaxe ou ambas. E contra isso, nada a fazer. Não é impossível que o Português, no futuro, venha a divergir conforme o continente onde é falado, formando novas línguas. Por questões políticas e económicas isso é assunto que não interessa aos falantes da variante europeia. Embora a evolução linguística tenha um profundo desprezo pela política e pela economia, por enquanto, não há que temer. O Português ainda se mantém uno - embora o documentário de Jorge Pelicano, gravado em Trás-os-Montes, estivesse legendado; e se ajudava!

Isabela Figueiredo


No seu blogue Novo Mundo




segunda-feira, 21 de novembro de 2011

O senhor Brecht (Gonçalo M. Tavares)



O desempregado com filhos

Disseram-lhe: só te oferecemos emprego se te cortarmos a mão.
Ele estava desempregado há muito tempo; tinha filhos, aceitou.
Mais tarde foi despedido e de novo procurou emprego.
Disseram-lhe: só te oferecemos emprego se te cortarmos a mão que te resta.
Ele estava desempregado há muito tempo; tinha filhos, aceitou.
Mais tarde foi despedido e de novo procurou emprego.
Disseram-lhe: só te oferecemos emprego se te cortarmos a cabeça.
Ele estava desempregado há muito tempo; tinha filhos, aceitou.


O homem mal-educado

O mal-educado não tirava o chapéu em nenhuma situação. Nem às senhoras quando passavam, nem em reuniões importantes, nem quando entrava na igreja.
Aos poucos a população começou a ganhar repulsa pela indelicadeza desse homem, e com os anos esta agressividade cresceu até chegar ao extremo: o homem foi condenado à guilhotina.
No dia em questão colocou a cabeça no cepo, sempre, e orgulhosamente, com o chapéu.
Todos aguardavam.
A lâmina da guilhotina caiu e a cabeça rolou.
O chapéu, mesmo assim, permaneceu na cabeça.
Aproximaram-se, então, para finalmente arrancarem o chapéu àquele mal-educado. Mas não conseguiram.
Não era um chapéu, era a própria cabeça que tinha um formato estranho.


Avaria

Por um curto-circuito eléctrico incompreensível o electrocutado foi o funcionário que baixou a alavanca e não o criminoso que se encontrava sentado na cadeira.
Como não se conseguiu resolver a avaria, nas vezes seguintes o funcionário do governo sentava-se na cadeira eléctrica e era o criminoso que ficava encarregue de baixar a alavanca mortal.


O labirinto

A cidade investiu tudo na construção de uma imponente catedral. Ouro, pedras trabalhadas, tectos pintados pelos grandes pintores do século.
Para a valorizar ainda mais decidiu-se dificultar o acesso. O que se atinge com facilidade deixa de ter valor, filosofava com esforço um determinado político.
Construiu-se então um labirinto que era o único meio de chegar à catedral. O labirinto foi tão bem feito que nunca ninguém conseguiu encontrar a passagem para a catedral.
O labirinto transformou-se na grande atracção da cidade.


O mestre

O mestre mais importante da cidade queria desenhar uma circunferência, mas errou e acabou por desenhar um quadrado.
Pediu aos alunos para copiarem o seu desenho.
Eles copiaram, mas por erro, desenharam uma circunferência.


Os sábios

Uma galinha, finalmente, descobriu a maneira de resolver os principais problemas da cidade dos homens. Apresentou a sua teoria aos maiores sábios e não havia dúvidas: ela tinha descoberto o segredo para todas as pessoas poderem viver tranquilamente e bem.
Depois de a ouvirem com atenção, os sete sábios da cidade pediram uma hora para reflectir sobre as consequências da descoberta da galinha, enquanto esta esperava numa sala à parte, ansiosa por ouvir a opinião destes homens ilustres.
Na reunião, os sete sábios por unanimidade, e antes que fosse tarde demais, decidiram comer a galinha.

Gonçalo M. Tavares

Do seu livro O senhor Brecht.

(Fonte: Contos de aula)


Sinopse: «O Senhor Brecht é um contador de histórias. Senta-se numa sala praticamente vazia e vai contando pequenas histórias entre o absurdo e o humor negro. A sala vai enchendo aos poucos, o que lhe trará no final um novo problema: o público tapa a porta de saída – e o senhor Brecht fica assim encurralado com o seu próprio sucesso.»

Aqui, uma recensão crítica



Gonçalo M. Tavares é um escritor português. Nasceu em agosto de 1970 em Luanda, Angola, e em 2001 publicou a sua primeira obra.



segunda-feira, 14 de novembro de 2011

"Não deixem morrer as palavras!" (José Gomes Ferreira)

 José Gomes Ferreira (1900-1985)


- O Senhor já reparou bem num dicionário? Num dicionário qualquer... Tanto faz... Já reparou? Pois a mim faz-me lembrar sabe o quê?

Um jazigo de família, ou melhor, um jazigo da nação. Uma espécie de mausoléu de papel, onde gerações empilharam séculos e séculos de palavras. Algumas já definitivamente mortas, cobertas de bichos, outras quase a morrer... E muitas, apenas adormecidas, à espera de um toque de dedos para regressarem à vida diária... onde utilizamos ao todo quantas palavras vivas - diga-me lá quantas? Quinhentas? Mil? Nem tantas talvez!

Garanto-lhe que (...) quando ouço de manhã até à noite os mesmos termos... as eternas expressões... os substantivos inevitáveis... os adjectivos fatais... e o verbo ser, o verbo haver, e o verbo fazer... sabe o que me apetece? (...) Gritar aos homens: não deixem morrer as palavras! 

 José Gomes Ferreira, escritor, poeta e ficcionista nascido no Porto.

Biografia e obras de Gomes Ferreira em As tormentas e na Wikipédia



quinta-feira, 10 de novembro de 2011

Canção do Mestiço (Francisco José Tenreiro)

Mestiço (1934) pintura de Cândido Portinari


CANÇAO DO MESTIÇO

Mestiço!

Nasci do negro e do branco
e quem olhar para mim
é como se olhasse
para um tabuleiro de xadrez:
a vista passando depressa
fica baralhando cor
no olho alumbrado de quem me vê.

Mestiço!

E tenho no peito uma alma grande
uma alma feita de adição
como l e l são 2.
Foi por isso que um dia
o branco cheio de raiva
contou os dedos das mãos
fez uma tabuada e falou grosso:
— mestiço!
a tua conta está errada.
Teu lugar é ao pé do negro.

Ah!
Mas eu não me danei ...
E muito calminho
arrepanhei o meu cabelo para trás
fiz saltar fumo do meu cigarro
cantei do alto
a minha gargalhada livre
que encheu o branco de calor! ...

Mestiço!

Quando amo a branca
sou branco...
Quando amo a negra
sou negro.
Pois é...

Francisco José Tenreiro

Francisco José Tenreiro nasceu em São Tomé e Príncipe em 1921 e faleceu em 1963, numa altura em que se intensificava a Guerra Colonial. Geógrafo por formação, usou a poesia para exprimir a nova África, já não a dos postais ilustrados e dos povos, plantas e animais exóticos, mas a de um novo tempo, marcado pela fusão de culturas nativas.

Mais dados e poemas em Lusofonia.


sexta-feira, 4 de novembro de 2011

José (Carlos Drummond de Andrade)

 Desenho de Kleber Sales

Ficou atrás o dia 31 de outubro, mas não faz mal. Esse é o Dia  D, de Drummond, no Brasil. No dia 31 de outubro de 1902 nasceu em Itabira, estado de Minas Gerais, o poeta Carlos Drummond de Andrade.

Porque Drummond é um dos poetas preferidos de Um reino maravilhoso, festejamos esse dia com um dos melhores poemas do autor brasileiro, que podemos, aliás, escutar recitado por Paulo José.


JOSÉ

E agora, José?
A festa acabou,
a luz apagou,
o povo sumiu,
a noite esfriou,
e agora, José?
e agora, você?
você que é sem nome,
que zomba dos outros,
você que faz versos,
que ama, protesta?
e agora, José?

Está sem mulher,
está sem discurso,
está sem carinho,
já não pode beber,
já não pode fumar,
cuspir já não pode,
a noite esfriou,
o dia não veio,
o bonde não veio,
o riso não veio,
não veio a utopia
e tudo acabou
e tudo fugiu
e tudo mofou,
e agora, José?

E agora, José?
Sua doce palavra,
seu instante de febre,
sua gula e jejum,
sua biblioteca,
sua lavra de ouro,
seu terno de vidro,
sua incoerência,
seu ódio - e agora?

Com a chave na mão
quer abrir a porta,
não existe porta;
quer morrer no mar,
mas o mar secou;
quer ir para Minas,
Minas não há mais.
José, e agora?

Se você gritasse,
se você gemesse,
se você tocasse
a valsa vienense,
se você dormisse,
se você cansasse,
se você morresse...
Mas você não morre,
você é duro, José!

Sozinho no escuro
qual bicho-do-mato,
sem teogonia,
sem parede nua
para se encostar,
sem cavalo preto
que fuja a galope,
você marcha, José!
José, para onde?





terça-feira, 1 de novembro de 2011

O monólogo de Orfeu (Vinícius de Moraes)



Orfeu da Conceição é uma peça teatral escrita por Vinicius de Moraes em 1954, baseada no drama da mitologia grega de Orfeu e Eurídice.


Orfeu:

Ai, que agonia que você me deu
Meu amor! que impressão, que pesadelo!
Como se eu te estivesse vendo morta
Longe como uma morta...

Eurídice:

Morta eu estou.
Morta de amor, eu estou; morta e enterrada
Com cruz por cima e tudo!

Orfeu (sorrindo):

Namorada!
Vai bem depressa. Deus te leve. Aquí
Ficam os meus restos a esperar por ti
Que dás vida!

(Eurídice atira-lhe um beijo e sai).


Mulher mais adorada!
Agora que não estás, deixa que rompa
O meu peito em soluços! Te enrustiste
Em minha vida; e cada hora que passa
É mais porque te amar, a hora derrama
O seu óleo de amor, em mim, amada...
E sabes de uma coisa? cada vez
Que o sofrimento vem, essa saudade
De estar perto, se longe, ou estar mais perto
Se perto, - que é que eu sei! essa agonia
De viver fraco, o peito extravasado
O mel correndo; essa incapacidade
De me sentir mais eu, Orfeu; tudo isso
Que é bem capaz de confundir o espírito
De um homem - nada disso tem importancia
Quando tu chegas com essa charla antiga
Esse contentamento, essa harmonia
Esse corpo! e me dizes essas coisas
Que me dão essa fôrça, essa coragem
Esse orgulho de rei. Ah, minha Eurídice
Meu verso, meu silêncio, minha música!
Nunca fujas de mim! sem ti sou nada
Sou coisa sem razão, jogada, sou
Pedra rolada. Orfeu menos Eurídice...
Coisa incompreensível! A existencia
Sem ti é como olhar para um relógio
Só com o ponteiro dos minutos. Tu
És a hora, és o que dá sentido
E direção ao tempo, minha amiga
Mais querida! Qual mãe, qual pai, qual nada!
A beleza da vida és tu, amada
Milhões amada! Ah! criatura! Quem
Poderia pensar que Orfeu: Orfeu
Cujo violão é a vida da cidade
E cuja fala, como o vento à flor
Despetala as mulheres - que êle, Orfeu
Ficasse assim rendido aos teus encantos!
Mulata, pele escura, dente branco
Vai teu caminho que eu vou te seguindo
No pensamento e aqui me deixo rente
Quando voltares, pela lua cheia
Para os braços sem fim do teu amigo!
Vai tua vida, pássaro contente
Vai tua vida que eu estarei contigo!