sexta-feira, 31 de outubro de 2014

Consolo na praia (Carlos Drummond de Andrade)



Recordamos o Dia D, de Carlos Drummond de Andrade, poeta brasileiro nascido na cidade de Itabira, no estado de Minas Gerais, no dia 31 de outubro de 1902.


CONSOLO NA PRAIA

Vamos, não chores.
A infância está perdida.
A mocidade está perdida.
Mas a vida não se perdeu.

O primeiro amor passou.
O segundo amor passou.
O terceiro amor passou.
Mas o coração continua.

Perdeste o melhor amigo.
Não tentaste qualquer viagem.
Não possuis carro, navio, terra.
Mas tens um cão.

Algumas palavras duras,
em voz mansa, te golpearam.
Nunca, nunca cicatrizam.
Mas, e o humour?

A injustiça não se resolve.
À sombra do mundo errado
murmuraste um protesto tímido.
Mas virão outros.

Tudo somado, devias
precipitar-te, de vez, nas águas.
Estás nu na areia, no vento...
Dorme, meu filho.

Carlos Drumond de Andrade recita o seu próprio poema



segunda-feira, 27 de outubro de 2014

A minha esplanada (Carlos Moura Carvalho)

Parque Eduardo VII. Vê-se a estátua do Marquês de Pombal
e o Rio Tejo ao fundo



A minha esplanada

Uma das minhas esplanadas favoritas em Lisboa é no Parque Eduardo VII. Gosto da calma, da localização, da arquitectura, idealizada por Keil do Amaral. Nos últimos anos, por muitas razões, que não são difíceis de compreender, está (quase) totalmente ao abandono. O restaurante que serve de apoio é muito pouco atractivo, o ambiente é decadente, os chapéus de sol com publicidade variada, o lago sujo, o piso levantado, as plantas por cuidar. Incúria, esquecimento, incompetência, falta de dinheiro e de capacidade, são seguramente as razões para tal estado. Como em tantos outros exemplos, quem decide gosta mais de fazer de novo, do que de recuperar. Prefere construir a reconstruir. Talvez por isso, um pouco mais acima, no Jardim Amália Rodrigues, existe uma esplanada moderna, um ambiente sofisticado, equipamentos de vanguarda, caros e "de autor". A incapacidade financeira é explicação para muitas opções, mas nem sempre é a determinante. A falta de dinheiro cada vez nos acompanha mais no dia a dia, provocando situações a que nem sempre estamos preparados para enfrentar, mas muitas vezes o que falta mesmo é vontade.

Na esplanada do Parque, num recente final de tarde de agosto, depois de ter pedido, como habitualmente, um Ginger Ale com limão e duas pedras de gelo, de ter sentido o momento, observado os cisnes e folheado uma revista, aconteceu algo que não acontecia há muito, provavelmente desde os tempos de estudante, em que partilhava uma garrafa de leite com chocolate com uma antiga namorada: verifiquei que não tinha dinheiro suficiente para pagar a despesa. Procurei 1,20€ na carteira, por todos os bolsos e não tinha mais do que 80 cêntimos. Propus pagar com cartão multibanco, mas não era possível. Foram segundos complicados. Mas, com simpatia, o empregado aceitou apenas o dinheiro disponível dizendo que o resto era por "conta dele". Agradeci e comprometi-me na próxima oportunidade a pagar o que faltava.

Um feliz exemplo de falta de dinheiro, compensada por uma demonstração de educação e vontade. O que nem sempre acontece. Mas que acaba por constituir mais uma razão (embora não fosse necessária) para preferir a minha esplanada, e mais um pretexto para voltar lá muito em breve. É sempre bom voltar aos locais de que temos boas memórias e que nos tratam bem. Mesmo quando existem adversidades.


Carlos Moura Carvalho



segunda-feira, 20 de outubro de 2014

"Sacudiam as crianças a areia das sandalias..."(Mário Cláudio)




Sacudiam as crianças a areia das sandalias,
como austeros profetas que uma cidade amaldiçoasse,
e tomavam o caminho de regresso a casa.

Um grão de sal ardia em sua pele,
o balde chocalhava, de encontro às paredes,
dormiam, enfim, até o dia seguinte.

Que nautas se concebiam, ao nadar!
Que países divisavam, na neblina!
Que infantes, que lusitanos, que esquecidos que eram!

Mário Cláudio


Do seu livro Dois Equinócios (1996)




terça-feira, 14 de outubro de 2014

segunda-feira, 6 de outubro de 2014

Balada do caixão (António Nobre)




BALADA DO CAIXÃO

O meu vizinho é carpinteiro,
Algibebe de Dona Morte.
Ponteia e cose o dia inteiro,
Fatos de pau de toda a sorte:
Mogno, debruados de veludo,
Flandres gentil, pinho do Norte...
Ora eu que trago um sobretudo
Que já me vai a aborrecer,
Fui-me lá ontem: (era Entrudo,
Havia imenso que fazer...)
– Olá, bom homem! Quero um fato,
Tem que me sirva? – Vamos ver...
Olhou, mexeu na casa toda.
– Eis aqui um e bem barato.
– Está na moda? – Está na moda.
(Gostei e nem quis apreçá-lo:
Muito justinho, pouca roda...)
– Quando posso mandar buscá-lo?
– Ao pôr-do-Sol. Vou dá-lo ao ferro:
(Pôs-se o bom homem a aplainá-lo...)
Ó meus Amigos! Salvo erro,
Juro-o pela alma, pelo Céu:
Nenhum de vós, ao meu enterro,
Irá mais dândi, olhai!, do que eu!

Paris, 1891

António Nobre

António Pereira Nobre (1867 — 1900), mais conhecido como António Nobre, foi um poeta português cuja obra se insere nas correntes ultra-romântica, simbolista, decadentista e saudosista (interessada na ressurgência dos valores pátrios) da geração finissecular do século XIX português.

A sua principal obra, (Paris, 1892), é marcada pela lamentação e nostalgia, imbuída de subjectivismo, mas simultaneamente suavizada pela presença de um fio de auto-ironia e com a rotura com a estrutura formal do género poético em que se insere, traduzida na utilização do discurso coloquial e na diversificação estrófica e rítmica dos poemas. Apesar da sua produção poética mostrar uma clara influência de Almeida Garrett e de Júlio Dinis, ela insere-se decididamente nos cânones do simbolismo francês. A sua principal contribuição para o simbolismo lusófono foi a introdução da alternância entre o vocabulário refinado dos simbolistas e um outro mais coloquial, reflexo da sua infância junto do povo nortenho. 




sexta-feira, 3 de outubro de 2014

Publicado um romance inacabado de José Saramago: 'Alabardas, Alabardas, Espingardas, Espingardas'



Quando José Saramago falou sobre o seu último livro

Na sessão de lançamento de Caim, na Culturgest, em Lisboa, em Outubro de 2009, José Saramago falou sobre o livro que estava a escrever na altura e que hoje [23-09-2014] foi lançado agora para as livrarias.


“Alabardas, alabardas, Espingardas, espingardas” nas livrarias portuguesas – dossier de imprensa (Fundação José Saramago)

Alabardas, alabardas, Espingardas, espingardas, o romance inacabado de José Saramago, encontra-se a partir de hoje [23-09-2014] nas principais livrarias de Portugal. Para além dos capítulos escritos pelo Nobel português de Literatura, a edição portuguesa inclui um texto do escritor italiano Roberto Saviano e outro do espanhol Fernando Gómez Aguilera.

Na capa e no seu miolo são reproduzidas ilustrações do escritor alemão Günter Grass, Prémio Nobel de Literatura.




“Vai à merda”, diria ela no fim. Assim queria Saramago

A obra começou por se chamar Belona (nome da deusa romana da guerra), passou a ser Belona S.A., depois Produtos Belona, S.A. e, por fim, chegou esta terça-feira às livrarias portuguesas com o título Alabardas, Alabardas, Espingardas, Espingardas, que é retirado da tragicomédia Exortação da Guerra de Gil Vicente.

A notícia completa no jornal Público (23-09-2014)






quarta-feira, 1 de outubro de 2014

Passemos, tu e eu, devagarinho (Reinaldo Ferreira)



Passemos, tu e eu, devagarinho
Sem ruído, sem quase movimento,
Tão mansos que a poeira do caminho
A pisemos sem dor e sem tormento.

Que os nossos corações, num torvelinho
De folhas arrastadas pelo vento,
Saibam beber o precioso vinho,
A rara embriaguez deste momento.

E se a tarde vier, deixá-la vir
E se a noite quiser, pode cobrir
Triunfalmente o céu de nuvens calmas

De costas para o Sol, então veremos
Fundir-se as duas sombras que tivemos
Numa só sombra, como as nossas almas.

Reinaldo Ferreira


Reinaldo Edgar de Azevedo e Silva Ferreira (Barcelona, 1922; Lourenço Marques, 1959) foi um poeta português que realizou toda a sua obra em Moçambique. 

Recordemos que o nome da capital de Moçambique mudou para Maputo aquando da independência de Portugal.

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