sexta-feira, 21 de junho de 2019

Louvor da Poesia (Sebastião da Gama)



LOUVOR DA POESIA

Dá-se aos que têm sede,
não exige pureza.
Ah!, se fôssemos puros,
p'ra melhor merecê-la...

Sabe a terra, a montanhas,
caules tenros, raízes,
e no entanto desce
da floresta dos mitos.

Água tão generosa
como a que a gente bebe,
fuja dela Narciso
e quem não tenha sede.

Sebastião da Gama






quinta-feira, 20 de junho de 2019

Um salmo (Adélia Prado)



UM SALMO

Tudo que existe louvará.
Quem tocar vai louvar,
quem cantar vai louvar,
o que pegar a ponta de sua saia
e fizer uma pirueta, vai louvar.
Os meninos, os cachorros,
os gatos desesquivados,
os ressuscitados,
o que sob o céu mover e andar
vai seguir e louvar.
O abano de um rabo, um miado,
u’a mão levantada, louvarão.
Esperai a deflagração da alegria.
A nossa alma deseja,
o nosso corpo anseia
o movimento pleno:
cantar e dançar TE-DEUM.

Adélia Prado





quarta-feira, 19 de junho de 2019

De boca a barlavento (Corsino Fortes)



DE BOCA A BARLAVENTO

I

Esta
a minha mão de milho & marulho
Este
o sól a gema E não
o esboroar do osso na bigorna
E embora
O deserto abocanhe a minha carne de homem
E caranguejos devorem
esta mão de semear
Há sempre
Pela artéria do meu sangue que g
o
t
e
j
a
De comarca em comarca
A árvore E o arbusto
Que arrastam
As vogais e os ditongos
para dentro das violas


II

Poeta! todo o poema:
geometria de sangue & fonema
Escuto Escuta

Um pilão fala
árvores de fruto
ao meio do dia
E tambores
erguem
na colina
Um coração de terra batida
E lon longe
Do marulho á viola fria
Reconheço o bemol
Da mão doméstica
Que solfeja

Mar & monção mar & matrimónio
Pão pedra palmo de terra
Pão & património

Corsino Fortes


Escritor cabo-verdiano, Corsino Fortes nasceu em 1933, na ilha de S. Vicente, em Cabo Verde, e desde cedo foi considerado uma esperança da poesia cabo-verdiana. Licenciado em Direito em 1966, foi, depois da independência do seu país, embaixador e membro do Governo por diversas vezes.

No seu poema mais conhecido, Pão & Fonema, de 1974, Corsino Fortes proclama o povo cabo-verdiano como detentor de uma identidade própria.

O poema, que suscita múltiplas análises e interpretações, encontra-se dividido em três Cantos. Nele se evoca a odisseia dos cabo-verdianos, perdidos numa terra pouco fértil mas com uma poderosa força de viver, que os leva frequentemente à emigração e à adoção de costumes que não são genuinamente seus. É um libelo à esperança e à capacidade de resistência perante a adversidade.

Artigo da Infopédia





terça-feira, 18 de junho de 2019

"Não sei como o perceberão as crianças de agora..." (José Saramago)


Não sei como o perceberão as crianças de agora, mas, naquelas épocas remotas, para as infâncias que fomos, o tempo aparecia-nos como feito de uma espécie particular de horas, todas lentas, arrastadas, intermináveis. Tiveram de passar alguns anos para que começássemos a compreender, já sem remédio, que cada uma tinha apenas sessenta minutos, e, mais tarde ainda, teríamos a certeza de que todos estes, sem excepção, acabavam ao fim de sessenta segundos ...

José Saramago

As Pequenas Memórias (2006)


José Saramago morreu a 18 de junho de 2010 em Lanzarote. Tinha nascido na Azinhaga, Golegã, a 16 de novembro de 1922.





segunda-feira, 17 de junho de 2019

Aurora boreal (António Gedeão)

Fotografia de César Augusto V.R. para este poema


AURORA BOREAL

Tenho quarenta janelas
nas paredes do meu quarto.
Sem vidros nem bambinelas
posso ver através delas
o mundo em que me reparto.
Por uma entra a luz do Sol,
por outra a luz do luar,
por outra a luz das estrelas
que andam no céu a rolar.
Por esta entra a Via Láctea
como um vapor de algodão,
por aquela a luz dos homens,
pela outra a escuridão.
Pela maior entra o espanto,
pela menor a certeza,
pela da frente a beleza
que inunda de canto a canto.
Pela quadrada entra a esperança
de quatro lados iguais,
quatro arestas, quatro vértices,
quatro pontos cardeais.
Pela redonda entra o sonho,
que as vigias são redondas,
e o sonho afaga e embala
à semelhança das ondas.
Por além entra a tristeza,
por aquela entra a saudade,
e o desejo, e a humildade,
e o silêncio, e a surpresa,
e o amor dos homens, e o tédio,
e o medo, e a melancolia,
e essa fome sem remédio
a que se chama poesia,
e a inocência, e a bondade,
e a dor própria, e a dor alheia,
e a paixão que se incendeia,
e a viuvez, e a piedade,
e o grande pássaro branco,
e o grande pássaro negro
que se olham obliquamente,
arrepiados de medo,
todos os risos e choros,
todas as fomes e sedes,
tudo alonga a sua sombra
nas minhas quatro paredes.

Oh janelas do meu quarto,
quem vos pudesse rasgar!
Com tanta janela aberta
falta-me a luz e o ar.

António Gedeão 

Obra Poética, Edições João Sá da Costa 2001



sexta-feira, 14 de junho de 2019

Catorze de junho (José Saramago)



CATORZE DE JUNHO

Cerremos esta porta.
Devagar, devagar, as roupas caiam
Como de si mesmos se despiam deuses,
E nós o somos, por tão humanos sermos.
É quanto nos foi dado: nada.
Não digamos palavras, suspiremos apenas
Porque o tempo nos olha.
Alguém terá criado antes de ti o sol,
E a lua, e o cometa, o negro espaço,
As estrelas infinitas.
Se juntos, que faremos? O mundo seja,
Como um barco no mar, ou pão na mesa,
Ou rumoroso leito.
Não se afastou o tempo. Assiste e quer.
É já pergunta o seu olhar agudo
À primeira palavra que dizemos:
Tudo.

José Saramago



quinta-feira, 13 de junho de 2019

"Subiste à glória pela escada abaixo..." (Fernando Pessoa / Alvaro de Campos)

Fotografia de Vi


Subiste à glória pela escada abaixo.
Paradoxo? Não: a realidade.
O paradoxo é o que é palavras;
A realidade é o que és.
Subiste porque desceste.
Está bem.
Amanhã talvez eu faça a mesma coisa.
Por ora, se calhar, invejo-te,
Não sei se te invejo a vitória,
Não sei se te invejo o consegui-la,
Mas realmente creio que te a invejo...
Sempre é vitória...
Façam um embrulho de mim
E depois deitem-me ao rio.
E não esqueçam o «se calhar» quando lá me deitarem.
Isso é importante.
Não esqueçam o «se calhar».
Isso é que é importante.
Porque tudo é se calhar...

Álvaro de Campos / Fernando Pessoa

Poesia (Álvaro de Campos). Obras de Fernando Pessoa. Edição de Teresa Rita Lopes. Assírio & Alvim, Março de 2002




segunda-feira, 10 de junho de 2019

A Camões, comparando com os dele os seus próprios infortúnios (Bocage)



A Camões, comparando com os dele os seus próprios infortúnios

Camões, grande Camões, quão semelhante
Acho teu fado ao meu quando os cotejo!
Igual causa nos fez perdendo o Tejo
Arrostar co sacrílego gigante:

Como tu, junto ao Ganges sussurrante
Da penúria cruel no horror me vejo;
Como tu, gostos vãos, que em vão desejo,
Também carpindo estou, saudoso amante:

Ludíbrio, como tu, da Sorte dura,
Meu fim demando ao Céu, pela certeza
De que só terei paz na sepultura:

Modelo meu tu és... Mas, ó tristeza!...
Se te imito nos transes da Ventura,
Não te imito nos dons da Natureza.

Bocage



Posto me tem Fortuna em tal estado (Luís de Camões)

Alciato: Fortuna


Posto me tem Fortuna em tal estado,
E tanto a seus pés me tem rendido!
Não tenho que perder já, de perdido;
Não tenho que mudar já, de mudado.

Todo o bem pera mim é acabado;
Daqui dou o viver já por vivido;
Que, aonde o mal é tão conhecido,
Também o viver mais será escusado,

Se me basta querer, a morte quero,
Que bem outra esperança não convém;
E curarei um mal com outro mal.

E, pois do bem tão pouco bem espero,
Já que o mal este só remédio tem,
Não me culpem em querer remédio tal.

Luís de Camões


sexta-feira, 7 de junho de 2019

Para o Ruy Belo (Joaquim Manuel Magalhães)

O poeta Ruy Belo (1933 - 1978)


Duas versões de um mesmo poema de Joaquim Manuel Magalhães: a publicada originalmente em segredos, sebes, aluviões, e a reescrita anos depois, como fez com grande parte da sua obra já publicada. Essas novas versões são consideradas definitivas por Magalhães.



PARA O RUY BELO

1.

Levanto-me para a cruz de claridade da janela.
Vejo afastar-se ao nevoeiro o corpo.
Pelo mais improvável dos caminhos
a natureza responde-me:
dentre os ramos das flores caídas.


A esperança de sobreviver ao inverno que vem
estende-me na areia deste verão mortal.
Uma rajada de cinza bate no crepúsculo
contra os rubros nimbos sobre um lago.


2.

Não sei bem quem morre quando morrem os mortos.
Os guizos dos outros voltados sobre nós
apostam se valemos bastante a despedida.
As supostas mágoas somam dividendos
aos tempos vários e felizes em que permanecemos.
A morte somos nós a calcular a palmo
o choro organizado e o que vamos fingir a seguir.
O nosso punhal sobrevivente dispara
que também somos, que bom, grandes face ao que morreu.
Na putice das letras morre-se sempre a jeito
para a momentânea maior glória dos vivos.


In segredos, sebes, aluviões. Presença, 1981.

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PARA O RUY BELO

1.

Levanto-me para a cruz de claridade da janela.
Vejo afastar-se ao nevoeiro o corpo.
Pelos mais improváveis dos caminhos
a natureza responde-me:
dentre os ramos das flores caídas
a ironia da sombra sobre o peito deitado.

A esperança de sobreviver ao inverno que vem
estende-me ao sol de areia deste verão mortal.
Uma asa de cinza corre no crepúsculo
branca e difícil contra os rubros
nimbos abatidos sobre o mar.


2.

Não sei bem quem morre quando morrem os mortos.
Os olhares dos outros voltados sobre nós
apostam se valemos bastante a despedida.
As supostas mágoas somam dividendos
aos tempos vários e felizes em que permanecemos.
A morte somos nós a calcular a palmo
o choro organizado e o que vamos fingir a seguir.
O nosso revólver sobrevivente dispara
que também somos, que bom, grandes face ao que morreu.
Na putice das letras morre-se sempre a jeitoh
para a momentânea maior glória dos vivos.


Texto no blogue O melhor amigo




terça-feira, 4 de junho de 2019

Fidelidade (Jorge de Sena)

Fotografia de Rolf Winquist

Jorge de Sena morreu a 4 de junho de 1978 em Santa Bárbara, na Califórnia.


FIDELIDADE

Diz-me devagar coisa nenhuma, assim
como só a presença com que me perdoas
esta fidelidade ao meu destino.
Quanto assim não digas é por mim
que o dizes. E os destinos vivem-se
como outra vida. Ou como solidão.
E quem lá entra? E quem lá pode estar
mais que o momento de estar só consigo?
Diz-me assim devagar coisa nenhuma.
o que à morte se diria, se ela ouvisse,
ou se diria aos mortos, se voltassem.

26/8/1956


Do seu livro Fidelidade (1958)



segunda-feira, 3 de junho de 2019

Morreu Agustina Bessa-Luís




"Morreu Agustina Bessa-Luís, o nosso grande “mistério literário”" (Público, 3-06-2019)

"Morreu Agustina Bessa-Luís, a escritora que marcou a nossa literatura" (DN, 3-06-2019)


Há pequenas impressões finas como um cabelo e que, uma vez desfeitas na nossa mente, não saberemos onde elas nos podem levar. Hibernam por assim dizer, nalgum circuito da memória e um dia saltam para fora, como se acabassem de ser recebidas. Só que, por efeito desse período de gestação profunda, alimentada ao calor dos sangue e das aquisições da experiência temperada de cálcio e de ferro e de nitratos, elas aparecem já no estado adulto e prontas a procriar. Porque as memórias procriam como se fossem pessoas vivas.

Antes do degelo (2004)

(Record)