sexta-feira, 21 de dezembro de 2012

Um trecho de Dalton Trevisan - Prémio Camões 2012



Dalton Trevisan (Curitiba, 14 de junho de 1925) é um escritor brasileiro, famoso por seus livros de contos, especialmente O Vampiro de Curitiba (1965), e por sua natureza reclusa.

Foi distinguido no passado mês de maio com o Prémio Camões deste ano. O autor curitibano já manifestou nesse mês a impossibilidade de viajar a Portugal para receber o Prémio por causa da idade.


Este é o início de um dos seus contos:

PENÉLOPE

Naquela rua mora um casal de velhos. A mulher espera o marido na varanda, tricoteia em sua cadeira de balanço. Quando ele chega ao portão, ela está de pé, agulhas cruzadas na cestinha. Ele atravessa o pequeno jardim e, no limiar da porta, beija-a de olho fechado.

Sempre juntos, a lidar no quintal, ele entre as couves, ela no canteiro de malvas. Pela janela da cozinha, os vizinhos podem ver que o marido enxuga a louça. No sábado, saem a passeio, ela, gorda, de olhos azuis e ele, magro, de preto. No verão, a mulher usa um vestido branco, fora de moda; ele ainda de preto. Mistério a sua vida; sabe-se vagamente, anos atrás, um desastre, os filhos mortos. Desertando casa, túmulo, bicho, os velhos mudam-se para Curitiba.

Só os dois, sem cachorro, gato, passarinhos. Por vezes, na ausência do marido, ela traz um osso ao cão vagabundo que cheira o portão. Engorda uma galinha, logo se enternece, incapaz de mata-la. O homem desmancha o galinheiro e, no lugar, ergue-se caco feroz. Arranca a única roseira no canto do jardim. Nem a uma rosa concede o seu resto de amor.

Além do sábado, não saem de casa, o velho fumando cachimbo, a velha trançando agulhas. Até o dia em que, abrindo a porta, de volta do passeio, acham a seus pés uma carta. Ninguém lhes escreve, parente ou amigo no mundo. O envelope azul, sem endereço. A mulher propõe queimá-lo, já sofridos demais. Pessoa alguma lhes pode fazer mal, ele responde.

Não queima a carta, esquecida na mesa. Sentam-se sob o abajur da sala, ela com o tricô, ele com o jornal. A dona baixa a cabeça, morde uma agulha, com a outra conta os pontos e, olhar perdido, reconta a linha. O homem, jornal dobrado no joelho, lê duas vezes cada frase. O cachimbo apaga, não o acende, ouvindo o seco bater das agulhas. Abre enfim a carta. Duas palavras, em letra recortada de jornal. Nada mais, data ou assinatura. Estende o papel à mulher que, depois de ler, olha-o . Ela se põe de pé, a carta na ponta dos dedos.

—Que vai fazer?

—Queimar.

Não, ele acode. Enfia o bilhete no envelope, guarda no bolso. Ergue a toalhinha caída no chão e prossegue a leitura do jornal.

A dona recolhe a cestinha, o fio e as agulhas.

—Não ligue, minha velha. Uma carta jogada em todas as portas.

O canto das sereias chega ao coração dos velhos? Esquece o papel no bolso, outra semana passa. No sábado, antes de abrir a porta, sabe da carta à espera. A mulher pisa-a, fingindo que não vê. Ele a apanha e mete no bolso.

Ombros curvados, contando a mesma linha, ela pergunta:

—Não vai ler?

Por cima do jornal admira a cabeça querida, sem cabelo branco, os olhos que, apesar dos anos, azuis como no primeiro dia.

—Já sei o que diz. —Por que não queima?


Sobre Dalton Trevisan:

" — Não vou responder às perguntas simplesmente porque não posso, é verdade; sou arredio, ai de mim! Incurávelmente tímido (um pouco menos com as loiras oxigenadas!)." Já se escreveu e se comprovou que os demais vampiros não podem encarar, sem pânico, um crucifixo. Ou réstias de alho, água corrente cristalina... Dalton não pode ver um jornalista. Vendo, foge, literalmente foge, apavorado. Suas raras fotos surgidas na imprensa foram feitas às escondidas (...).

(Ler mais em Releituras)


quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

Sonhei que era o Pai Natal (Francisco Sande e Castro)



Esta noite sonhei que era o Pai Natal. Tinha chegado o grande momento e, depois de doze meses de boa vida, regressava o dia de trabalho. Iria fazer uma direta ao volante do meu trenó. De manhã tinha estado a escovar as renas e, da parte da tarde, limpei e aparelhei a viatura. Bebi dois cafés ao jantar para não me dar o sono ao volante, e parti para a famosa noite. É difícil trabalhar um só dia por ano. É como quem bebe uma garrafa de vinho depois de um longo período de abstinência: pedrada certa.

Saí de casa pouco antes da meia-noite, ainda no meu estado normal. Não tinha ainda voado 500 metros quando uma das renas se estatelou no ar com gritinhos histéricos. Era uma cãibra. Tinha insistido para que fizessem ginástica ao longo do ano mas os pobres animais são preguiçosos e eu até os compreendo. Quando nos habituamos ao dolce far niente não queremos outra coisa. Depois de uma rápida massagem, seguimos viagem. Enquanto as «meninas» vão seguindo o caminho habitual, eu revelo a lista de presentes. Paramos à frente da primeira chaminé. É estreita, daquelas que eu odeio. Se pudesse dar nas vistas, deixava bilhetes a todos estes idiotas que mandam construir chaminés estreitas. Se o ano passado já tinha entrado com dificuldade, o álcool que me aquece as noites solitárias agravou o problema. A meio da chaminé, já com o fato todo chamuscado, ouvi vozes lá em baixo. A minha discrição tinha-me permitido nunca ter sido visto e deveria manter esse ar misterioso. Esperei calmamente a meio da chaminé que se fossem deitar enquanto rezava para que ninguém se lembrasse de acender a lareira. Cá fora uma das renas assobiava pelo topo da chaminé, lembrando-me o nosso atraso. Perdemos mais de meia hora com o problema e tivemos que nos esfalfar para tentar recuperar o tempo perdido. Comecei a andar depressa de mais para as possibilidades do trenó, que ia largando peças pelo caminho. Os livros das crianças que falam de nós estão longe da realidade, e preocupa-me que não haja ninguém a escrever uma opinião séria sobre a difícil tarefa do Pai Natal. A realidade é dura e triste. Eu passo a noite de Natal com o fato sujo e roto. As renas suam que nem cavalos depois de uma dura corrida, e o trenó fica feito num oito. Foi construído para escorregar na neve com pouco peso e aguenta mal as cargas que lhe ponho em cima. Ainda por cima tem de voar a velocidades para as quais não está concebido. Chegamos à segunda casa. As crianças daqui escolheram uns presentes horríveis, mas gostos não se discutem e eu tenho que os aceitar a todos. Continua a estafadeira e, pelas três da manhã, as renas já estão de rastos. Há uma mais desastrada, que todos os anos fica com as pernas cheias de nódoas negras porque não há poste ou chaminé em que ela não tropece. Eu já escorrego pelas chaminés sem me segurar. Nestas coisas emagreço entre três a quatro quilos.

São quatro da manhã e ainda temos centenas de lares para visitar. Engano-me na chaminé da casa dos Rebelos e entro pela da cozinha. Caio em cima de duas panelas e o estrondo é enorme. A senhora Rebelo acorda assustada e vem à cozinha com medo de encontrar um assaltante.

«Quem está aíl» pergunta a voz trémula. Distraído e nervoso respondo — «é o Pai Natal». A senhora desata a fugir pelas escadas acima aos gritos pelo marido e eu deixo os presentes na cozinha e volto a sair rapidamente por onde entrei. Quando a noite me começa a correr mal fico nervoso e só faço asneiras. Cá fora as renas estão deitadas em cima de um telhado, já demasiado cansadas para se preocuparem. Os aquecimentos solares são coisa que não existia quando me inventaram e têm provocado inúmeros problemas. As renas têm o vício de se deitarem em cima deles para se aquecerem e, gordas como estão, rebentam sempre com os frágeis sistemas. Não há noite de Natal em que não provoquem meia dúzia de inundações e temos sempre que fugir à pressa antes que os donos deem pela desgraça. O que vale é que nunca desconfiam de nós.

Já está a amanhecer e ainda não acabámos o serviço. Com a pressa, bato com o trenó numa chaminé que cai aos bocados. Um guarda-nocurno olha para cima e reconhece-nos. «Olha o Pai Natal!...».

 Antes que consiga acabar a frase atiro-lhe um presente à cabeça provocando-lhe um desmaio e consequente amnésia. São condicionalismos desta difícil profissão. Nem sempre podemos ser bonzinhos.

Regressamos a casa todos de rastos para encontrar meia dúzia de presentes esquecidos.

Enfureço-me: «quem é se esqueceu de pôr estes presentes no trenó?». Todas as renas disfarçam. É sempre a mesma coisa. Agora não foi ninguém. Verifico os nomes na etiqueta. Pertencem todos à família Florença. Volto a subir para o trenó e parto em direcção à sua casa o mais discretamente possível. Quando vou a entrar pela chaminé, oiço vozes. As crianças choram e os pais tentam consolá-las:

 - «O Pai Natal deve ter-se esquecido, mas nós amanhã compramos-vos outros presentes.»

- «Qual Pai Natal, qual carapuça», responde o Zezinho. «Nós sabemos muito bem que isso não existe. O pai não quis foi dar-nos presentes.»

Sinto-me ofendido com esta falta de fé e hesito em deixar os presentes; mas a aflição daquele pai faz-me pena. Atiro os embrulhos pela chaminé e ainda volto a ouvir a voz do Zezinho antes de me ir embora:

«O pai fez de propósito para partir o presente.»


Francisco Sande e Castro



(Revista K, anos 90)



segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

Há uma pedra feroz (Luís Miguel Nava)



HÁ UMA PEDRA FEROZ

Há uma pedra feroz,
um rapaz,
há o olhar do rapaz atado à pedra,
o olhar do rapaz, a minha casa,
o olhar do rapaz às vezes é a pedra.

Luís Miguel Nava


Películas. Lisboa: Livraria Moraes Editores (1979) (Prémio de Revelação da Associação Portuguesa de Escritores, 1978)


Luís Miguel Nava (1957-1995)




O poeta em Estúdio Raposa (áudio)

 


terça-feira, 11 de dezembro de 2012

Dois textos sobre a crise (José Pacheco Pereira)



ESCREVER SOBRE A CRISE

Estamos todos fartos de escrever sobre a crise, e eu em particular. Mas existe uma certa obrigação ética e “crítica” em fazê-lo, até porque isso é uma obrigação de comunhão e testemunho com os nossos concidadãos e com a nossa comunidade. Repare-se na abundância do prefixo “co”, com. É isso mesmo. Esta é uma obrigação que não é apenas racional, não emana da verificação de haver boas ou más políticas, e da sua identificação crítica, mas emana de um domínio afectivo de se querer “estar com”. Se o nosso catolicismo não estivesse tão impregnado de hipocrisia, e a palavra não estivesse adulterada pelas piores práticas, é isso que significa “caridade”, o “agape” dos gregos, a que se soma o “testemunho”. Esta última palavra tem uma origem que pode surpreender muita gente, - vem de “testículos”, - e num certo sentido agora é que se vai ver quem os tem ou não tem. Esta combinação serve-me e obriga-me a continuar a escrever sobre a crise.

 (Continua.) 

Blogue Abrupto


 PONTO DE NÃO RETORNO

 Há um aspecto desta crise que está longe de ser enunciado e analisado: é que ela é para milhões de portugueses um ponto sem retorno. Ou seja, nunca mais vão deixar o nível de pobreza em que estão a ser mergulhados. Mesmo que possa haver a prazo médio ou longo alguma recuperação económica e do emprego, não será para eles, nem no seu tempo, nem nas suas oportunidades. Para estes é que, em primeiro lugar, a crise é mais trágica, definitiva, cruel. E não há nem uma palavra, nem uma acção que os possa salvar.

 Estou a falar das pessoas e das famílias que o desemprego, os impostos, os salários e o custo de vida vão atirar para a linha abaixo da pobreza. Como é que a vão ultrapassar de novo na sua vida útil? Sim, na sua vida útil, que é o que conta. Vai haver emprego para os actuais desempregados? Nunca, jamais, em tempo algum, podem esperar voltar a ter emprego. Se alguma recuperação existir no emprego, será muito pequena e favorecerá os mais novos, e novos aqui é na casa dos vinte anos. Vão conhecer uma vida mais barata, preços mais baixos da renda, da luz, gaz, água, transportes? Nunca, jamais, em tempo algum, tal é previsível nas próximas décadas. Vão poder por milagre pagara as suas prestações e dívidas? Com que dinheiro? Vai diminuir a carga fiscal? Talvez daqui a cinco, dez anos, na melhor das hipóteses, mas sempre pouco. Os impostos têm a característica de se instalarem para a eternidade. Os estragos feitos em 2013, 2014, são para já suficientes para destruírem milhares de pequenas empresas e lançarem na insolvência milhares de família. Como é que se volta atrás? O governo não sabe como, nem quer saber. É o “ajustamento”.

Blogue Abrupto


Autor: José Pacheco Pereira



segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

Uns versos de Sá de Miranda




A António Pereira, Senhor de Basto,
quando se partiu para a Corte co’a casa toda

(...)

Não me temo de Castela,
Donde inda guerra não soa,
Mas temo-me de Lisboa
Que, ao cheiro desta canela,
o reino nos despovoa.
(...)

Sá de Miranda


Francisco de Sá de Miranda (1481-1558)


segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

Naturalidade (Rui Knopfli)

 Micaias em Moçambique


NATURALIDADE

Europeu, me dizem.
Eivam-me de literatura e doutrina
européias
e europeu me chamam.

Não sei se o que escrevo tem raiz a raiz de algum
pensamento europeu.
É provável ... Não. É certo,
mas africano sou.
Pulsa-me o coração ao ritmo dolente
desta luz e deste quebranto.
Trago no sangue uma amplidão
de coordenadas geográficas e mar Índico.
Rosas não me dizem nada,
caso-me mais à agrura das micaias
e ao silêncio longo e roxo das tardes
com gritos de aves estranhas.
Chamais-me europeu? Pronto, calo-me.
Mas dentro de mim há savanas de aridez
e planuras sem fim
com longos rios langues e sinuosos, uma fita de fumo vertical,
um negro e uma viola estalando.

Rui Knopfli 


"Rui Manuel Correia Knopfli (Inhambane, Moçambique, 10 de agosto de 1932 - Lisboa, 25 de dezembro de 1997) foi um poeta, jornalista e crítico literário e de cinema português" diz-nos a Wikipédia, mas parece que ele não se considerava português, mas moçambicano.

A Infopédia acrescenta, por sua vez: "Poeta moçambicano (...) Desde finais dos anos 50, desenvolveu uma sólida obra poética que não é facilmente incluída nas correntes literárias moçambicanas, assumindo-se antes como continuadora da tradição lírica do Ocidente. Camões, Carlos Drummond de Andrade, Fernando Pessoa ou T. S. Eliot poderiam servir de referência para analisar a poética de Knopfli. Isto apesar de, por ter nascido em plena savana de Moçambique, muita da sua imagética remeter para paragens africanas. A concisão e o cuidado formal de que se revestem os seus poemas refletem um sentir contido e desencantado, perante uma realidade muitas vezes altamente agressiva.Rui Knopfli viveu em Moçambique até aos 43 anos (...)"




quinta-feira, 29 de novembro de 2012

O dia cinzento (Mário Dionísio)



Da estação via-se a praia e o mar. A água vinha de longe, muito azul e muito lisa, e aproximava-se, cada vez menos azul e menos lisa, até espadanar em pequenos cachões de espuma que morriam na areia. A praia estava deserta. Uma ou outra pessoa descia os degraus de cimento da esplanada para matar o tempo, dava uns passos na areia, voltava a subir os degraus, sentava-se a uma mesa como toda a gente.

A aprendiza entregara os chapéus o mais depressa possível. Ficara com vinte minutos livres. E com um olho no relógio, o outro na esplanada, gozava aquele espectáculo dos guarda-sóis de tantas cores e das mesinhas brancas cheias de rapazes de pele queimada, raparigas bonitas de cabelos soltos e sem meias, estiraçados, fumando.

Nunca estivera tão perto do mar. Pelo menos desse mar assim azul, dessa língua de areia que só conhecia dos cartazes de turismo, dessas pessoas despreocupadas, saudáveis, felizes, vestindo roupas caras com o à-vontade com que ela usava a bata de trabalho e eram tal qual as pessoas dos filmes que passavam no pequeno cinema do seu bairro. Mas aquilo não era um filme, era verdade. Os cartazes não mentiam. Em Janeiro estava uma temperatura de princípios de Outono. Andava-se em cabelo. As raparigas não usavam meias. Janeiro e podia-se andar como no Verão. Que diferente do seu bairro de Lisboa, das ruas que sempre conhecera, do prédio onde trabalhava em casa da Madame Ivone, dos jardins da cidade! Agradecia a Deus a sua sorte. A Madame escolhera-a para trazer os chapéus àquela freguesa que pagava o bastante para se permitir o luxo de receber as encomendas em casa, a trinta quilómetros de Lisboa. Podia ter escolhido outra. Acaso. Sorte. Primeiro, nem queria crer. Perguntara de olhos espantados: Eu? E a Madame Ivone, sem dar por nada: «Sim, tu, despacha-te.» Dava as suas ordens, explicava: «Tiras um bilhete de terceira só para lá.» E ela só pensava: eu?, é possível que seja eu? «À volta, tiras de segunda, porque o comboio com terceira é muito tarde. Despacha-te. Quero-te cá antes da noite.»

Mário Dionísio 

O dia cinzento (1944)

Poeta, crítico, pintor, romancista, licenciou-se em Filologia Românica na Faculdade de Letras de Lisboa, onde viria a desenvolver atividade docente. Mário Dionísio desempenhou um papel importante na teorização do Neorrealismo, movimento literário que, pelas décadas de 40-50, à luz do materialismo histórico, valorizou a dimensão ideológica e social do texto literário, enquanto instrumento de intervenção e de consciencialização. (continua - Infopédia)

terça-feira, 27 de novembro de 2012

Palavras de José Saramago para os dias de hoje



"As misérias do mundo existem, e só há dois modos de reagir perante elas: ou uma pessoa acha que não tem culpa e, portanto, encolhe os ombros e diz que não está nas suas mãos remediar nada - e isto é verdade -, ou então assumir que, mesmo quando não está nas nossas mãos resolver, temos de nos comportar como se assim fosse" (pp 369-370)

 "A pergunta que todos devíamos colocar-nos é: O que é que eu fiz se nada mudou? Deveríamos viver mais no desassossego. O amanhã não acontecerá se não mudarmos hoje." (p.371)

"É a hora de uivar, porque se nos deixarmos levar pelos poderes que nos governam, e não fazermos nada para contrariar isso, pode dizer-se que merecemos o que temos" (p.375)

"Temos de começar a uivar, comecemos a uivar."(p.373)

José Saramago



Citações tiradas do livro: José Saramago nas Suas Palavras (edição e selecção de Fernando Gómez Aguilera, Lisboa, Caminho, Outubro de 2010 - selecção de citações por Maria Cardoso)



 (Fonte: blogue Matador de idiotas)



quinta-feira, 22 de novembro de 2012

Um 'ai' de Dalton Trevisan


O curitibano Dalton Trevisan recebeu o  Prémio Camões deste ano. Gostávamos de publicar um texto mais comprido dele. Por enquanto, uma breve amostra da sua prosa, um ai.


A tipinha de dois anos para a avó religiosa:
–Que livro bonito, vó. Acha pra mim a letra M.
–Deixa ver, aqui está.
–M de Maria. Que nem eu.
–Agora olha a letra V.
–V de vaca.
–E a letra O.
–O de ovo.
–Muito bem. E aqui a letra T.
–T de Jesús, né, vó?
E aponta para o pobre homem ali pregado na parede.


Notas
que nem eu = como eu.
né? = não é?


111 ais (Dalton Trevisan) L&PM Editores, 2000



segunda-feira, 19 de novembro de 2012

O velho Malaquias morreu (Germano Almeida)



O VELHO MALAQUIAS MORREU

O velho Malaquias foi-se a enterrar. Como ele próprio tinha determinado, morreu aos 95 anos, de velhice e simples cansaço da vida. Não de doença, pois que doença é coisa inventada pela loucura dos homens, afirmava, não existe na natureza.

Ironicamente, o velho Malaquias ganhava a vida como uma espécie de enfermeiro prático. Aliás, intitulava-se a si próprio "enfermeiro provisionário" e durante largos anos desempenhou essa função numa pequena dependência da sua casa onde tratava a gente pobre da ilha a preços de ocasião.

Ele era muito apreciado, quer como pessoa, quer como profissional, porque, além de nada careiro, possuía uma imensa consciência de missão, que colocava aberta e lealmente ao serviço de todos os seus pacientes. É facto que a doença não existe, proclamava, mas, se alguém entra no meu consultório pretendendo-se doente, certamente que não o vou abandonar na sua cisma. Creio que era por isso que ele utilizava muito a técnica dos placebos.

Racionalista cristão convicto e praticante, dizia ter confir­mado que tinha vindo ao mundo como uma reencarnação do grande Hipócrates com o fim de se ocupar da pobreza carenciada e desvalida.

E é verdade que nessa furiosa segurança algumas vezes chegou a exagerar nos desvelos que dedicava aos mais desprotegidos. Por exemplo, regressou certa vez de umas férias em Lisboa munido de um curso intensivo de prótese dentária por correspondência, coisa nova mesmo no estrangeiro quanto mais nas ilhas, explicou ufano. A partir daquela data, já não haveria mais razão para as pessoas não mastigarem bem a sua cachupa ou comerem o seu perentém. Se na sua indiscutível mas limitada bondade Deus tinha provido os humanos com apenas dois tipos de dentes, primeiro para "leites", depois para "carnes", ele, Malaquias, colocando uma técnica de ponta ao serviço dos ilhéus, ia resolver com competência todos os problemas de dentição da idade adulta. E não duas, mas até três ou mais vezes, afinal todas que fossem necessárias, porque de há muito que a ciência tinha ultrapassado com vantagem muitas das inegáveis insuficiências da divindade.

Nesse tempo ainda não se conheciam os nefastos efeitos da gravidez sobre os dentes, de modo que era quase uma raridade encontrar  mãe de filho com todos os dentes de nascença, e de tal forma até poderia ser perfeitamente possível, pelo simples exame de uma boca, determinar o número de filhos de uma mulher. E, de facto, a primeira paciente do sr. Malaquias foi uma senhora de meia idade que, conforme explicou, por cada um dos oito filhos tinha perdido em média quatro dentes.

O senhor Malaquias examinou quase com pena as faces agora encovadas, que nostalgicamente ela dizia terem sido cheiinhas, observou as gengivas já duras como pedra de tanto roer bolachas e foi peremptório: Garanto que ficará como nova!

Laboriosamente concebeu para a senhora uma prótese de primeira. E, para melhor a servir, ofereceu-lhe o bónus suplementar de mais quatro dentes, dois molares em cada um dos lados. Desse modo não só ficará com uma cara mais bolachuda e portanto mais agradável à vista, explicou-lhe prestimoso, como também melhor armada para enfrentar qualquer feijão pedra mais refractário ao pobre lume da nossa lenha.

E de facto dias depois colocava a nova dentição à senhora. Com muita facilidade, aliás, estava tão bem feita que foi chegar e entrar, nenhum ajuste foi necessário fazer. Só que a senhora não conseguia fechar a boca. O sr. Malaquias não entendeu logo a razão. Faça força, insistiu com a senhora, acabará por conseguir, olhe que nem a todos é dado ter 36 dentes. Porém, como a senhora acabasse permanecendo com a boca eternamente semiaberta, ele teve que aceitar a contragosto que há alguns casos particulares em que a natureza prefere dispensar ajudas.

Era. no entanto extremamente meticuloso nos seus serviços. Por exemplo, certa vez precisei de tomar algumas injecções de penicilina e dirigi-me a solicitar-lhe os serviços. Não havia problema, disse, seria uma coisa rápida. E logo me mandou encostar num balcão e descer as calças. E, após breve breve limpeza da zona com um algodão embebido em álcool, espetou a agulha. Porém, quando já ia a acoplar a seringa, lembrou-se: Ó diabo, não tenho cá antistina, disse batendo uma palmada na testa. E explicou-me que era absolutamente fundamental a antistina estar presente, quem poderia afirmar não ser eu alérgico à penicilina? Ora, sendo alérgico, poderia ser fatal, um deus nos acuda. Garanti-lhe que não era de certeza, ainda há poucos dias ... Mas calou-me com um gesto cortante:  Seria. uma grande imprudência, porque pode-se ficar alérgico de um dia para o outro, melhor é prevenir que remediar, vou até à farmácià e volto num instante, disse saindo porta afora.

Fiquei encostado ao balcão e de agulha espetada no rabo por cerca de meia hora, mas ele era um homem ufano da sua consciência profissional quando regressou. Perdemos cinco minutos, afirmou, mas ficamos tranquilos pela vida inteira.

Era assim o velho Malaquias. É certo que há muitos anos que se tinha reformado do seu apostolado, mas mesmo assim sofremos uma baixa considerável.

Germano Almeida

(Público, 4-maio-1997)

Germano Almeida é um escritor cabo-verdiano nascido na ilha da Boa Vista em 1945.



segunda-feira, 12 de novembro de 2012

Triste notícia dos dias de hoje



Enfermeiro despede-se de Cavaco Silva antes de emigrar e implora para não criar “imposto” às lágrimas e saudade 
17.10.2012 - 18:51 Por Lusa 


Pedro Marques, enfermeiro português de 22 anos, emigra quinta-feira de madrugada para o Reino Unido, mas antes despediu-se, por carta, do Presidente da República e pediu-lhe para não criar “um imposto” sobre as lágrimas e sobre a saudade.


“Quero despedir-me de si”, lê-se na missiva do enfermeiro portuense, enviada hoje a Cavaco Silva e que tem como título “Carta de despedida à Presidência da República”.

O enfermeiro Pedro Marques, que diz sentir-se “expulso” do seu próprio país, implora a Cavaco Silva para que não crie um “imposto sobre as lágrimas e muito menos sobre a saudade” e apela ao Presidente da República para que permita poder regressar um dia a Portugal.

“Permita-me chorar, odiar este país por minutos que sejam, por não me permitir viver no meu país, trabalhar no meu país, envelhecer no meu país. Permita-me sentir falta do cheiro a mar, do sol, da comida, dos campos da minha aldeia”, lê-se.

Em entrevista à Lusa, Pedro Marques conta que vai ser enfermeiro num hospital público de Northampton, a 100 quilómetros de Londres, que vai ganhar cerca de 2000 euros por mês com condições de progressão na carreira, mas diz também que parte triste por “abandonar Portugal” e a “família”.

Na mala, Pedro vai levar a bandeira de Portugal, ao pescoço leva um cachecol de Portugal e como companhia leva mais 24 amigos que emigram no mesmo dia.

Mónica Ascensão, enfermeira de 21 anos, é uma das companheiras de Pedro na diáspora.

“Adoro o meu país, mas tenho de emigrar, porque não tenho outra hipótese, porque quero a minha independência, quero voar sozinha”, conta Mónica, emocionada, pedindo ao Presidente da República e aos governantes de Portugal para que “se preocupem um pouco mais com a geração que está agora a começar a trabalhar”.

“Adoraria retribuir ao meu país tudo aquilo que o país deu de bom”, diz, acrescentando que está “zangada” com os governantes, porque o “país não a quer mais”.

Pedro Marques não pretende que o Presidente da República lhe responda.

“Sei que ser político obriga a ser politicamente correcto, que me desejará boa sorte, felicidades. Prefiro ouvir isso de quem o diz com uma lágrima no coração, com o desejo ardente de que de facto essa sorte exista no meu caminho”, lê-se na carta de despedida do filho de uma família de emigrantes que se quis despedir de Cavaco Silva.


Fonte: Diário Público

 

sexta-feira, 9 de novembro de 2012

Mobbing ou Assédio Psicológico (Mauro Brancorsini)



O QUE É O MOBBING? Violência moral ou psíquica no trabalho: actos, atitudes ou comportamentos de violência moral ou psíquica em situação de trabalho, repetidos ao longo do tempo de maneira sistemática ou habitual, que levam à degradação das condições de trabalho idôneo, comprometendo a saúde ou o profissionalismo ou ainda a dignidade do trabalho.

Em inglês, “to mob” significa “agredir”. Na prática, podemos traduzir isso com duas palavras: vergonhosa intimidação. Uma verdadeira praga social, comparável – pela gravidade e vastidão – ao fenómeno da usura. É um verdadeiro fenómeno de delinquência massiva, com três componentes: a vítima (o “mobizado”), o carnífice(s) (Mobbers) e os cúmplices (os colegas, a representação sindical...)

Perfil pessoal da vítima: inteligente um pouco mais do que a média, altruísta, ingênuo, insatisfeito, honesto, com uma certa consideração dos valores, apegado ao trabalho e à empresa. Não tolera injustiças com ninguém.

Perfil pessoal do mobber: malvado, muitas vezes com referência à meritocracia da firma, de nível medíocre, certamente com problemas na própria família, ladrão... Muitos dos comportamentos dos mobbers caracterizam fielmente aqueles mafiosos: motivações de fundo (na maioria das vezes, o dinheiro), mania de grandeza, vontade criminal, cumplicidade em eliminar alguém, o agir escondido...

O mobbing é usado naquelas firmas que querem afastar um dependente que se tornou incómodo. Muitas vezes não é a própria firma que começa o mobbing, mas acaba endossando a mesma. Pode-se imaginar uma firma que dá razão ao empregado e considera errado o manager (gerente, diretor, encarregado etc)? Essa é uma situação grave, porque a firma, mesmo sabendo e conhecendo, deixa a coisa correr e, a partir de um certo momento, participa da situação já que a aposentação ou afastamento do empregado é assinada pela firma e não pelo diretor.

O mobbing verifica-se nas firmas de grande e média dimensão. Em primeiro lugar porque naquelas firmas de carácter patronal, é mais fácil o afastamento/aposentação individual e, em segundo lugar, porque os grupos para-mafiosos mobbistas surgem e enraízam-se nas grandes firmas, justamente onde, na ausência de um patrão, é mais fácil reger as coisas como se deseja.

Porque existe o mobbing?

Na maioria dos casos, na origem das situações está o dinheiro: gorjetas, gratificações, trabalhos paralelos etc, que alguns, em virtude da própria posição, exigem e consideram justo pedir. Em algumas ocasiões, pode ser também que na origem do mobbing esteja algum preconceito (por ser gordo, p.ex.). Outras vezes, o mobbing atinge algum empregado “rebelde” quando, por exemplo, o mesmo rejeita trabalhar ao domingo, justificando com o seu contrato de trabalho.

(...)

O mobbing refere-se à vontade de libertar-se da pessoa incómoda através do afastamento/aposentação ou da demissão. No início, o fenómeno é vertical: do chefe para o empregado. Mas, em certo momento, também passa a ser horizontal, entre os colegas de trabalho.

O que é que o mobbing provoca? Muitos danos: ansiedade, insónia, depressão, e, nos casos mais graves, distúrbios (algumas vezes irreversíveis) psicológicos, além do surgimento de patologias como eczemas, erupções cutâneas, tumores.... O que fazer diante do mobbing? Duas coisas: resistir (resistir, resistir, resistir) e recolher provas. Por quê? Porque as firmas começarão a parar de usar o mobbing quando os juízes julgarem as firmas e lhes derem alguma sentença pesada.

Mauro Corradini


(Fonte)




segunda-feira, 5 de novembro de 2012

O mundo em que vivi (Ilse Losa)




O primeiro dia da escola. A saca às costas, caminhei ao lado da minha mãe, cheia de curiosidade e de receios. O sr. Brand, o professor, distribuía sorrisos animadores aos meninos, que o fitavam com desconfiança. A barba grisalha e o colarinho engomado davam-lhe um ar de austeridade, mas os olhos alegres protestavam contra tal impressão. Começou por nos falar, e doseava serenidade com humor para afugentar os nossos medos. De todas as escolas por que passei, a de que verdadeiramente gostei foi a escola primária. Quando o sr. Brand tomou nota do meu nome ninguém se virou para mim com sorrizinhos por soar a judaico, ninguém achou estranho eu responder «Israelita» à pergunta do sr. Brand à minha religião. Fora a mãe que me recomendara: «Quando o sr. Brand te perguntar pela religião, diz-lhe que és israelita. Soa melhor do que judia». Eu não concordava, porque achava «israelita» uma palavra estranha que não parecia pertencer à minha língua e, por isso, corei de embaraço ao pronunciá-la. E quando o sr. Brand quis saber a profissão do meu pai respondi «negociante de cavalos». Coisa natural. Muitos alunos eram filhos de lavradores e conheciam o meu pai. Não me sentia envergonhada daquilo que eu e o meu pai éramos, como aconteceria mais tarde, no liceu, quando a minha mãe me recomendou que às perguntas respondesse, além de «sou israelita», que o meu pai era «comerciante».

O liceu ficava em L..., a cidade onde havia o teatro e a sinagoga. Tomávamos, manhã cedo, o comboio e, com gesto arrogante, estendíamos o passe anual ao revisor.

No primeiro dia de aulas tivemos de dizer o nosso nome e profissão do pai e a religião. Conforme recomendação da minha mãe eu disse:

- O meu pai é comerciante. Sou israelita.

Na escola primaria tudo fora natural. No liceu colegas viraram-se e olharam-me. Mais duas judias faziam parte da turma e uma delas, Hanna Berg, respondeu à pergunta com voz firme: «Sou judia». Os gestos de Hanna eram extraordinariamente vivos e comunicativos, enquanto nos seus olhos havia a expressão dessa melancolia penetrante das seculares lendas de sabedorias e flagelos.

Hanna propôs-me que a acompanhasse a uma reunião dos sionistas. E nessa tarde. em que conheci o grupo juvenil a que ela pertencia, compreendi por que razão dissera com tanta firmeza: «Sou judia».

Numa sala espaçosa vi rapazes e raparigas de blusa branca e gravata azul e, encostada a um canto, a bandeira azul e branca. Hanna saudou o grupo com «Shalom», «paz», e todos lhe responderam do mesmo modo.

Desprendeu-se do grupo um rapaz. Bateu palmas. Fez-se silêncio, e ele disse:

- Vamos começar.

Hanna indicou-me uma cadeira e segredou-me:

- É o Bertold. Repara bem nele.

Bertold: alto, de calções de camurça, expressão franca e decidida. Levantou a mão para dar sinal de começar e vi que era uma mão larga e forte. No momento em que Bertold dobrou os ombros para trás, endireitou o tronco e moveu a mão, os rapazes e as raparigas começaram a falar em coro: primeiro um murmúrio crescente, depois vozes altas, vigorosas, que pareciam vir duma grande massa de gente. Diziam de injustiças, de orgulho, de expectativa duma vida livre em Israel. Como um chefe de orquestra, Bertold regia-os. Juntava as mãos em concha para em seguida as erguer num movimento rápido: as vozes elevavam-se; abria os braços como quem pedia para recuarem: as vozes baixavam; rasgava o ar com as mãos: as vozes emudeciam. As frases esperançosas, a convicção com que eram ditas, isso impressionava-me fortemente. Concluí que aniquilaram todas as dúvidas e resignação dos velhos, que encontraram rumos novos. «Devemos ter orgulho por sermos judeus», diziam os velhos, mas na verdade procuravam apenas consolo. Esses jovens, porém, esses sim orgulhavam-se deveras.

Depois das declamações começaram a dançar a «horra». Deitando os braços pelos ombros uns dos outros formavam um círculo, rodavam para a esquerda sempre para a esquerda, alegres e entusiásticos. Cantaram a comunicativa melodia da «hatikwah», a canção da «esperança».

Excitada, falei em casa da reunião. Tencionava voltar lá para aprender a falar em coro, dançar a «horra» e cantar a «hatikwah». Mas tanto o meu pai como a minha mãe acharam que não, que isso não me servia. Só me meteria na cabeça a emigração para a Palestina e eu, como boa alemã, não devia abandonar a pátria a que pertencia.

Quando falei ao sr. Heim, sorriu um tanto triste:

- Repara, Rose, o meu rapaz também anda com os sionistas e por isso há discórdia em casa. Ele e a mãe quase que não se falam

Excerto do livro de Ilse Losa, O mundo em que vivi (1949)


Ilse Lieblich Losa (nascida Ilse Lieblich, Melle-Buer, 20 de Março de 1913 — Porto, 6 de Janeiro de 2006) foi uma escritora portuguesa de origem judaica.




quarta-feira, 31 de outubro de 2012

No meio do caminho (Carlos Drummond de Andrade)



O poema "No meio do caminho" é lido, para além de em português, nas seguintes línguas: inglês, hebraico, dinamarquês, francês, holandês, italiano, húngaro, alemão, latim, espanhol e tupi.


NO MEIO DO CAMINHO

No meio do caminho tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
tinha uma pedra
no meio do caminho tinha uma pedra.

Nunca me esquecerei desse acontecimento
na vida de minhas retinas tão fatigadas.
Nunca me esquecerei que no meio do caminho
tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
no meio do caminho tinha uma pedra.

Carlos Drummond de Andrade, Revista de Antropofagia (1928)


O poema, publicado posteriormente no livro "Alguma Poesia" (1930), causou um verdadeiro escândalo na imprensa da época, provocando ataques ferrenhos ao autor por críticos que se negavam sequer a considerar poesia aquele texto ousadamente estruturado na repetição e numa construção lingüística simples, coloquial, que afirma a fala popular “tinha uma pedra” em detrimento da forma culta “havia uma pedra”.

Depois dos vários ataques da crítica, o próprio Drummond afirma “sou o autor confesso de certo poema, insignificante em si, mas que a partir de 1928 vem escandalizando meu tempo, e serve até hoje para dividir no Brasil as pessoas em duas categorias mentais". Apesar de Drummond nunca ter esclarecido quais seriam essas “duas categorias mentais”, fica claro o impacto do poema diante da opinião pública da época, que sentiu-se obrigada a parar diante daquela pedra no meio do caminho e expressar seu posicionamento com relação a ela - ou entusiasticamente favorável, como se mantiveram os modernistas e simpatizantes, ou radicalmente contra, como a maioria da crítica literária conservadora da época. Aliás, até hoje, a pedra drummondiana permanece impassível e desafiadora, na sua mudez de minério, a fomentar questões, estudos e paixões nos caminhos dos admiradores e estudiosos da obra do poeta.

Andrea Barros, em Carlos Drummond de Andrade: modernismo e a pedra no caminho


 

A página diaD 31.10


Estátua do poeta no calçadão de Copacabana, no Rio de Janeiro



segunda-feira, 29 de outubro de 2012

Uma citação de Padre António Vieira



Nascer pequeno e morrer grande, é chegar a ser homem. Por isso nos deu Deus tão pouca terra para o nascimento, e tantas para a sepultura. Para nascer, pouca terra; para morrer toda a terra: para nascer, Portugal: para morrer o mundo.

Sermão de Santo António, Roma, na Igreja de Santo António dos Portugueses, 1670, § IV

Padre António Vieira (1608-1697), religioso, filósofo, escritor e orador português da Companhia de Jesus.




segunda-feira, 22 de outubro de 2012

Esplanada (Manuel António Pina)


O jornalista e escritor portugês Manuel António Pina tinha nascido em 1943. Morreu na passada sexta-feira no Porto. Foi galardoado em 2011 com o Prémio Camões.  No ano 2007 leu os seus versos em Badajoz, na Aula de Poesia Enrique Díez-Canedo. Um reino maravilhoso despede-o enquanto poeta. Havemos de publicar alguma crónica jornalística dele.


ESPLANADA

Naquele tempo falavas muito de perfeição,
da prosa dos versos irregulares
onde cantam os sentimentos irregulares.
Envelhecemos todos, tu, eu e a discussão,

agora lês saramagos & coisas assim
e eu já não fico a ouvir-te como antigamente
olhando as tuas pernas que subiam lentamente
até um sítio escuro dentro de mim.

O café agora é um banco, tu professora de liceu;
Bob Dylan encheu-se de dinheiro, o Che morreu.
Agora as tuas pernas são coisas úteis, andantes,
e não caminhos por andar como dantes.



Carta para Manuel António Pina de Isabel Fonseca Santos




segunda-feira, 15 de outubro de 2012

Durante o sono (Jorge Sousa Braga)

Fotografia de César Augusto V. R.


DURANTE O SONO

Durante o sono retiraram-me uma costela
Ficou-me no peito um vazio que não consigo preencher
Custa-me a respirar
Eu quero de volta a minha costela
quero de volta todas as costelas
Quero de volta o paraíso
quero de volta o silêncio rumorejante
quero de volta as poluções noturnas
e diurnas
Quero uma mulher
feita de chuva
e vento
e fogo
e neve
e luz
e breu
e não de argila
como eu

Jorge Sousa Braga


Jorge Sousa Braga (1957)



terça-feira, 9 de outubro de 2012

A terceira margem do rio (José Guimarães Rosa)



A terceira margem do rio

Nosso pai era homem cumpridor, ordeiro, positivo; e sido assim desde mocinho e menino, pelo que testemunharam as diversas sensatas pessoas, quando indaguei a informação. Do que eu mesmo me alembro, ele não figurava mais estúrdio nem mais triste do que os outros, conhecidos nossos. Só quieto. Nossa mãe era quem regia, e que ralhava no diário com a gente — minha irmã, meu irmão e eu. Mas se deu que, certo dia, nosso pai mandou fazer para si uma canoa.

Era a sério. Encomendou a canoa especial, de pau de vinhático, pequena, mal com a tabuinha da popa, como para caber justo o remador. Mas teve de ser toda fabricada, escolhida forte e arqueada em rijo, própria para dever durar na água por uns vinte ou trinta anos. Nossa mãe jurou muito contra a idéia. Seria que, ele, que nessas artes não vadiava, se ia propor agora para pescarias e caçadas? Nosso pai nada não dizia. Nossa casa, no tempo, ainda era mais próxima do rio, obra de nem quarto de légua: o rio por aí se estendendo grande, fundo, calado que sempre. Largo, de não se poder ver a forma da outra beira. E esquecer não posso, do dia em que a canoa ficou pronta.

Sem alegria nem cuidado, nosso pai encalcou o chapéu e decidiu um adeus para a gente. Nem falou outras palavras, não pegou matula e trouxa, não fez a alguma recomendação. Nossa mãe, a gente achou que ela ia esbravejar, mas persistiu somente alva de pálida, mascou o beiço e bramou: — "Cê vai, ocê fique, você nunca volte!" Nosso pai suspendeu a resposta. Espiou manso para mim, me acenando de vir também, por uns passos. Temi a ira de nossa mãe, mas obedeci, de vez de jeito. O rumo daquilo me animava, chega que um propósito perguntei: — "Pai, o senhor me leva junto, nessa sua canoa?" Ele só retornou o olhar em mim, e me botou a bênção, com gesto me mandando para trás. Fiz que vim, mas ainda virei, na grota do mato, para saber. Nosso pai entrou na canoa e desamarrou, pelo remar. E a canoa saiu se indo — a sombra dela por igual, feito um jacaré, comprida longa.

Nosso pai não voltou. Ele não tinha ido a nenhuma parte. Só executava a invenção de se permanecer naqueles espaços do rio, de meio a meio, sempre dentro da canoa, para dela não saltar, nunca mais. A estranheza dessa verdade deu para. estarrecer de todo a gente. Aquilo que não havia, acontecia. Os parentes, vizinhos e conhecidos nossos, se reuniram, tomaram juntamente conselho.

Nossa mãe, vergonhosa, se portou com muita cordura; por isso, todos pensaram de nosso pai a razão em que não queriam falar: doideira. Só uns achavam o entanto de poder também ser pagamento de promessa; ou que, nosso pai, quem sabe, por escrúpulo de estar com alguma feia doença, que seja, a lepra, se desertava para outra sina de existir, perto e longe de sua família dele. As vozes das notícias se dando pelas certas pessoas — passadores, moradores das beiras, até do afastado da outra banda — descrevendo que nosso pai nunca se surgia a tomar terra, em ponto nem canto, de dia nem de noite, da forma como cursava no rio, solto solitariamente. Então, pois, nossa mãe e os aparentados nossos, assentaram: que o mantimento que tivesse, ocultado na canoa, se gastava; e, ele, ou desembarcava e viajava s'embora, para jamais, o que ao menos se condizia mais correto, ou se arrependia, por uma vez, para casa.

No que num engano. Eu mesmo cumpria de trazer para ele, cada dia, um tanto de comida furtada: a idéia que senti, logo na primeira noite, quando o pessoal nosso experimentou de acender fogueiras em beirada do rio, enquanto que, no alumiado delas, se rezava e se chamava. Depois, no seguinte, apareci, com rapadura, broa de pão, cacho de bananas. Enxerguei nosso pai, no enfim de uma hora, tão custosa para sobrevir: só assim, ele no ao-longe, sentado no fundo da canoa, suspendida no liso do rio. Me viu, não remou para cá, não fez sinal. Mostrei o de comer, depositei num oco de pedra do barranco, a salvo de bicho mexer e a seco de chuva e orvalho. Isso, que fiz, e refiz, sempre, tempos a fora. Surpresa que mais tarde tive: que nossa mãe sabia desse meu encargo, só se encobrindo de não saber; ela mesma deixava, facilitado, sobra de coisas, para o meu conseguir. Nossa mãe muito não se demonstrava.

Mandou vir o tio nosso, irmão dela, para auxiliar na fazenda e nos negócios. Mandou vir o mestre, para nós, os meninos. Incumbiu ao padre que um dia se revestisse, em praia de margem, para esconjurar e clamar a nosso pai o 'dever de desistir da tristonha teima. De outra, por arranjo dela, para medo, vieram os dois soldados. Tudo o que não valeu de nada. Nosso pai passava ao largo, avistado ou diluso, cruzando na canoa, sem deixar ninguém se chegar à pega ou à fala. Mesmo quando foi, não faz muito, dos homens do jornal, que trouxeram a lancha e tencionavam tirar retrato dele, não venceram: nosso pai se desaparecia para a outra banda, aproava a canoa no brejão, de léguas, que há, por entre juncos e mato, e só ele conhecesse, a palmos, a escuridão, daquele.

A gente teve de se acostumar com aquilo. Às penas, que, com aquilo, a gente mesmo nunca se acostumou, em si, na verdade. Tiro por mim, que, no que queria, e no que não queria, só com nosso pai me achava: assunto que jogava para trás meus pensamentos. O severo que era, de não se entender, de maneira nenhuma, como ele agüentava. De dia e de noite, com sol ou aguaceiros, calor, sereno, e nas friagens terríveis de meio-do-ano, sem arrumo, só com o chapéu velho na cabeça, por todas as semanas, e meses, e os anos — sem fazer conta do se-ir do viver. Não pojava em nenhuma das duas beiras, nem nas ilhas e croas do rio, não pisou mais em chão nem capim. Por certo, ao menos, que, para dormir seu tanto, ele fizesse amarração da canoa, em alguma ponta-de-ilha, no esconso. Mas não armava um foguinho em praia, nem dispunha de sua luz feita, nunca mais riscou um fósforo. O que consumia de comer, era só um quase; mesmo do que a gente depositava, no entre as raízes da gameleira, ou na lapinha de pedra do barranco, ele recolhia pouco, nem o bastável. Não adoecia? E a constante força dos braços, para ter tento na canoa, resistido, mesmo na demasia das enchentes, no subimento, aí quando no lanço da correnteza enorme do rio tudo rola o perigoso, aqueles corpos de bichos mortos e paus-de-árvore descendo — de espanto de esbarro. E nunca falou mais palavra, com pessoa alguma. Nós, também, não falávamos mais nele. Só se pensava. Não, de nosso pai não se podia ter esquecimento; e, se, por um pouco, a gente fazia que esquecia, era só para se despertar de novo, de repente, com a memória, no passo de outros sobressaltos.

Minha irmã se casou; nossa mãe não quis festa. A gente imaginava nele, quando se comia uma comida mais gostosa; assim como, no gasalhado da noite, no desamparo dessas noites de muita chuva, fria, forte, nosso pai só com a mão e uma cabaça para ir esvaziando a canoa da água do temporal. Às vezes, algum conhecido nosso achava que eu ia ficando mais parecido com nosso pai. Mas eu sabia que ele agora virara cabeludo, barbudo, de unhas grandes, mal e magro, ficado preto de sol e dos pêlos, com o aspecto de bicho, conforme quase nu, mesmo dispondo das peças de roupas que a gente de tempos em tempos fornecia.

Nem queria saber de nós; não tinha afeto? Mas, por afeto mesmo, de respeito, sempre que às vezes me louvavam, por causa de algum meu bom procedimento, eu falava: — "Foi pai que um dia me ensinou a fazer assim..."; o que não era o certo, exato; mas, que era mentira por verdade. Sendo que, se ele não se lembrava mais, nem queria saber da gente, por que, então, não subia ou descia o rio, para outras paragens, longe, no não-encontrável? Só ele soubesse. Mas minha irmã teve menino, ela mesma entestou que queria mostrar para ele o neto. Viemos, todos, no barranco, foi num dia bonito, minha irmã de vestido branco, que tinha sido o do casamento, ela erguia nos braços a criancinha, o marido dela segurou, para defender os dois, o guarda-sol. A gente chamou, esperou. Nosso pai não apareceu. Minha irmã chorou, nós todos aí choramos, abraçados.

Minha irmã se mudou, com o marido, para longe daqui. Meu irmão resolveu e se foi, para uma cidade. Os tempos mudavam, no devagar depressa dos tempos. Nossa mãe terminou indo também, de uma vez, residir com minha irmã, ela estava envelhecida. Eu fiquei aqui, de resto. Eu nunca podia querer me casar. Eu permaneci, com as bagagens da vida. Nosso pai carecia de mim, eu sei — na vagação, no rio no ermo — sem dar razão de seu feito. Seja que, quando eu quis mesmo saber, e firme indaguei, me diz-que-disseram: que constava que nosso pai, alguma vez, tivesse revelado a explicação, ao homem que para ele aprontara a canoa. Mas, agora, esse homem já tinha morrido, ninguém soubesse, fizesse recordação, de nada mais. Só as falsas conversas, sem senso, como por ocasião, no começo, na vinda das primeiras cheias do rio, com chuvas que não estiavam, todos temeram o fim-do-mundo, diziam: que nosso pai fosse o avisado que nem Noé, que, por tanto, a canoa ele tinha antecipado; pois agora me entrelembro. Meu pai, eu não podia malsinar. E apontavam já em mim uns primeiros cabelos brancos.

Sou homem de tristes palavras. De que era que eu tinha tanta, tanta culpa? Se o meu pai, sempre fazendo ausência: e o rio-rio-rio, o rio — pondo perpétuo. Eu sofria já o começo de velhice — esta vida era só o demoramento. Eu mesmo tinha achaques, ânsias, cá de baixo, cansaços, perrenguice de reumatismo. E ele? Por quê? Devia de padecer demais. De tão idoso, não ia, mais dia menos dia, fraquejar do vigor, deixar que a canoa emborcasse, ou que bubuiasse sem pulso, na levada do rio, para se despenhar horas abaixo, em tororoma e no tombo da cachoeira, brava, com o fervimento e morte. Apertava o coração. Ele estava lá, sem a minha tranqüilidade. Sou o culpado do que nem sei, de dor em aberto, no meu foro. Soubesse — se as coisas fossem outras. E fui tomando idéia.

Sem fazer véspera. Sou doido? Não. Na nossa casa, a palavra doido não se falava, nunca mais se falou, os anos todos, não se condenava ninguém de doido. Ninguém é doido. Ou, então, todos. Só fiz, que fui lá. Com um lenço, para o aceno ser mais. Eu estava muito no meu sentido. Esperei. Ao por fim, ele apareceu, aí e lá, o vulto. Estava ali, sentado à popa. Estava ali, de grito. Chamei, umas quantas vezes. E falei, o que me urgia, jurado e declarado, tive que reforçar a voz: — "Pai, o senhor está velho, já fez o seu tanto... Agora, o senhor vem, não carece mais... O senhor vem, e eu, agora mesmo, quando que seja, a ambas vontades, eu tomo o seu lugar, do senhor, na canoa!..." E, assim dizendo, meu coração bateu no compasso do mais certo.

Ele me escutou. Ficou em pé. Manejou remo n'água, proava para cá, concordado. E eu tremi, profundo, de repente: porque, antes, ele tinha levantado o braço e feito um saudar de gesto — o primeiro, depois de tamanhos anos decorridos! E eu não podia... Por pavor, arrepiados os cabelos, corri, fugi, me tirei de lá, num procedimento desatinado. Porquanto que ele me pareceu vir: da parte de além. E estou pedindo, pedindo, pedindo um perdão.

Sofri o grave frio dos medos, adoeci. Sei que ninguém soube mais dele. Sou homem, depois desse falimento? Sou o que não foi, o que vai ficar calado. Sei que agora é tarde, e temo abreviar com a vida, nos rasos do mundo. Mas, então, ao menos, que, no artigo da morte, peguem em mim, e me depositem também numa canoinha de nada, nessa água que não pára, de longas beiras: e, eu, rio abaixo, rio a fora, rio a dentro — o rio.

João Guimarães Rosa

Este conto faz parte do livro Primeiras estórias (1962). Há um filme de Nelson Pereira dos Santos (1994) baseado nele.





segunda-feira, 8 de outubro de 2012

De pernas para o ar



DE PERNAS PARA O AR

(...)


P.S.: reparai na imagem, é tudo de tal modo revelador que parece ter sido encenado. Custa acreditar na realidade quando a olhamos assim, com tanta clarividência. Um Presidente da República hasteia a bandeira do seu país, rodeado dos notáveis da nação, que com cara de parvos olham para uma bandeira do avesso. Na legenda, as comemorações do 5 de Outubro são acompanhadas das notícias que mais interessam ao melhor povo do mundo: Tottenham e Panathinaikos empatam a 1 Golo na Liga Europa. Isto é tão Portugal a entrar-nos pelos olhos adentro que apetece fechar os olhos e dormir uma eternidade.


Texto completo da mensagem De pernas para o ar, publicada no blogue antologia do esquecimento na passada sexta-feira, 5 de outubro.



segunda-feira, 1 de outubro de 2012

A literatura para Antero de Quental



A literatura, porque se dirige ao coração, à inteligência, à imaginação e até aos sentidos, toma o homem por todos os lados; toca por isso em todos os interesses, todas as ideias, todos os sentimentos; influi no indivíduo como na sociedade, na família como na praça pública; dispõe os espíritos; determina certas correntes de opinião; combate ou abre caminho a certas tendências; e não é muito dizer que é ela quem prepara o berço aonde se há de receber esse misterioso filho do tempo - o futuro.

Antero de Quental, em Prosas de Coimbra



Antero de Quental (Ponta Delgada, 1842 — Ponta Delgada, 1891) foi um escritor e poeta português que teve um papel importante no movimento da Geração de 70.



Citação lida em Ao longe os barcos de flores



segunda-feira, 24 de setembro de 2012

Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades (Luís de Camões)




Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,
Muda-se o ser, muda-se a confiança;
Todo o mundo é composto de mudança,
Tomando sempre novas qualidades.

Continuamente vemos novidades,
Diferentes em tudo da esperança;
Do mal ficam as mágoas na lembrança,
E do bem, se algum houve, as saudades.

O tempo cobre o chão de verde manto,
Que já coberto foi de neve fria,
E em mim converte em choro o doce canto.

E, afora este mudar-se cada dia,
Outra mudança faz de mor espanto:
Que não se muda já como soía.

Luís de Camões 


1524 ou 1525: Datas prováveis do nascimento de Luís Vaz de Camões, talvez em Lisboa - 1579 ou 1580: Morre de peste, em Lisboa.



Camões com outro sotaque, igualmente belo





quinta-feira, 20 de setembro de 2012

"Imaginemos, por absurdo, que os dicionários desapareciam." (Gonçalo M. Tavares)



Uma palavra que durante décadas não seja utilizada na rua ou nos livros e permaneça apenas no dicionário tem um destino à vista: ser palavra-defunta. O dicionário pode ser visto, assim, como uma antecâmara da morte. Como se algumas palavras estivessem ali paradinhas, quietas, mudas (no sentido literal e metafórico) porque não falam, nin...guém fala por elas e ninguém as fala – com se estivessem, então, ali em fila, em linha, à espera do seu próprio velório. Ou podemos então mudar radicalmente de ponto de vista: o dicionário com os seus milhares e milhares de palavras, pode ser entendido como um depósito contra o esquecimento, um enorme arquivo. Eis, pois, um outro nome possível para o dicionário: instrumento para evitar o esquecimento. Imaginemos, por absurdo, que os dicionários desapareciam. Que uma qualquer ordem política determinava a sua destruição. Pois bem, seria uma matança. Em poucas décadas morreriam palavras como tordos. E se, no limite, não existisse qualquer livro, e ficássemos apenas […] com a linguagem das conversas rápidas, então o vocabulário ficaria reduzido ao mais essencial e mínimo: sim, não, comida, bebida, etc. Poderíamos assim, com a linguagem, expressar as necessidades do organismo mas certamente não as do espírito. Abrir o dicionário, pois, como ato de resistência e salvação: não vou ficar só com as palavras que ouço ou leio nos livros comuns – eis o que se poderia dizer. Abrimos ao acaso na página 310, e depois na página 315, sempre com a firme determinação de salvar duas ou três palavras de cada página. Como aquele que salva quem se está a afogar. E não é por acaso, aliás, que muitas das mitologias remetem o esquecimento para a imagem do rio. Uma água onde as coisas se afundam, deixam de ser vistas à superfície, desaparecem da vista. A passagem do rio utilizada também como metáfora do tempo que passa e leva e afunda as coisas que ainda há momentos estavam à nossa frente, bem vivas. Salvar palavras da água que engole e faz esquecer as coisas, eis o que é, em parte, abrir um dicionário. Dotados, então, de um espírito de nadador-salvador, abrimos ao acaso o dicionário e trazemos palavras mais ou menos raras – umas que já nadam há muito debaixo de água, com dificuldades, outras, mais resistentes, mais visíveis, mas ainda estimulantes (e algumas bem conhecidas dos nossos clássicos). Passemos pela letra M. Ao acaso e rapidamente. Morato – adjetivo que significa bem organizado. Maçaruco – (regionalismo) indivíduo mal trajado. Manajeiro – aquele que dirige o trabalho das ceifas os outros. Metuendo – que mete medo; terrível; medonho. E tropeçamos depois em palavras de significado popular e óbvio, mas bem divertido: Mata-sãos: médico incompetente; curandeiro. Eis, pois, a partir daqui, uma frase possível que quase poderíamos introduzir numa conversa de café (uma frase em letra M): - O manajeiro metuendo, maçaruco, aproximou-se do morato espaço do mata-sãos e disse: por favor, aqui não, vá curar mais além.

 Gonçalo M Tavares

(Lido em Blog à portuguesa)