segunda-feira, 19 de dezembro de 2022

Inês Lourenço - "Disfarçar-se de relâmpago ou de outras coisas impossíveis..."



Disfarçar-se de relâmpago ou de outras coisas impossíveis, comer todos os chocolates, ter uma bicicleta igual à do estúpido do vizinho, fazer as coisas que os adultos escondem atrás da porta dos quartos, retribuir a bofetada aos nossos legítimos superiores, querer morder com justa causa tanta gente no mundo e só poder no escuro morder uma almofada.

Inês Lourenço

Coisas que nunca, Ed. & etc, Lisboa, 2010



(Fotografia de Eduard Valentin)




terça-feira, 13 de dezembro de 2022

Jorge de Sena - Aviso de porta de livraria

 



AVISO DE PORTA DE LIVRARIA

Não leiam delicados este livro,
sobretudo os heróis do palavrão doméstico,
as ninfas machas, as vestais do puro,
os que andam aos pulinhos num pé só,
com as duas castas mãos uma atrás e outra adiante,
enquanto com a terceira vão tapando a boca
dos que andam com dois pés sem medo das palavras.
E quem de amor não sabe fuja dele:
qualquer amor desde o da carne àquele
que só de si se move, não movido
de prémio vil, mas alto e quase eterno.
De amor e de poesia e de ter pátria
aqui se trata: que a ralé não passe
este limiar sagrado e não se atreva
a encher de ratos este espaço livre
onde se morre em dignidade humana
a dor de haver nascido em Portugal
sem mais remédio que trazê-lo n’alma.

Jorge de Sena


Primeiro poema do livro Exorcismos (1972)  


(Fotografia de Mário Novais)



sexta-feira, 9 de dezembro de 2022

Clarice Lispector - Era uma vez

O casarão onde Clarice Lispector morou,
na praça Maciel Pinheiro, em Recife



ERA UMA VEZ

Respondi que gostaria mesmo era de poder um dia afinal escrever uma história que começasse assim: "era uma vez...". Para crianças? perguntaram. Não, para adultos mesmo, respondi já distraída, ocupada em me lembrar de minhas primeiras histórias aos sete anos, todas começando com "era uma vez"; eu as enviava para a página infantil das quintas-feiras do jornal de Recife, e nenhuma, mas nenhuma, foi jamais publicada. E era fácil de ver porquê. Nenhuma contava propriamente uma história com os fatos necessários a uma história. Eu lia as que eles publicavam, e todas relatavam um acontecimento. Mas se eles eram teimosos, eu também. Mas desde então eu havia mudado tanto, quem sabe eu agora já estava pronta para o verdadeiro "era uma vez". Perguntei-me em seguida: e por que não começo? agora mesmo? Seria simples, senti eu.

E comecei. Ao ter escrito a primeira frase, vi imediatamente que ainda me era impossível. Eu havia escrito: "Era uma vez um pássaro, meu Deus".

Clarice Lispector

Para não esquecer, - 5ª ed. - Siciliano - São Paulo, 1992




segunda-feira, 5 de dezembro de 2022

Natália Correia - Cântico do País Emerso



Não sou daqui. Mamei em peitos oceânicos
Minha mãe era ninfa, meu pai chuva de lava
Mestiça de onda e de enxofres vulcânicos,
sou de mim mesma, pomba húmida e brava

De mim mesma e de vós, ó Capitães trigueiros,
barbeados pelo sol, penteados pela bruma!
Que extraístes do ar dessa coisa nenhuma
a genesis, a pluma do meu país natal.

Não sou daqui, das praias da tristeza,
do insone jardim dos glaciares
Levai minha nudez, minha beleza,
e colocai-a à sombra dos palmares.

Não sou daqui. A minha pátria não é esta
bússola quebrada dos impulsos.
Sou rápida, sou solta, talvez nuvem.
Nuvens, minhas irmãs, que me argolais os pulsos!
Tomai os meus cabelos. Levai-os para a floresta.

Natália Correia

Cântico do País Emerso (1961)




quinta-feira, 1 de dezembro de 2022

Luiza Neto Jorge - O poema ensina a cair




O POEMA ENSINA A CAIR

O poema ensina a cair
sobre os vários solos
desde perder o chão repentino sob os pés
como se perde os sentidos numa
queda de amor, ao encontro
do cabo onde a terra abate e
a fecunda ausência excede

até à queda vinda
da lenta volúpia de cair,
quando a face atinge o solo
numa curva delgada e subtil
uma vénia a ninguém de especial
ou especialmente a nós numa homenagem
póstuma.

Luiza Neto Jorge

O Seu a Seu Tempo (1966)



(Ilustração de Fernando de Castro Lopes)