quarta-feira, 31 de outubro de 2018

Procura da poesia (Carlos Drummond de Andrade)

Museu da Língua Portuguesa, S. Paulo (Fotografia de André Gardenberg)


PROCURA DA POESIA

Não faças versos sobre acontecimentos.
Não há criação nem morte perante a poesia.
Diante dela, a vida é um sol estático,
não aquece nem ilumina.
As afinidades, os aniversários, os incidentes pessoais não contam.
Não faças poesia com o corpo,
esse excelente, completo e confortável corpo, tão infenso à efusão lírica.

Tua gota de bile, tua careta de gozo ou dor no escuro
são indiferentes.
Não me reveles teus sentimentos,
que se prevalecem de equívoco e tentam a longa viagem.
O que pensas e sentes, isso ainda não é poesia.

Não cantes tua cidade, deixa-a em paz.
O canto não é o movimento das máquinas nem o segredo das casas.
Não é música ouvida de passagem, rumor do mar nas ruas junto à linha de espuma.

O canto não é a natureza
nem os homens em sociedade.
Para ele, chuva e noite, fadiga e esperança nada significam.
A poesia (não tires poesia das coisas)
elide sujeito e objeto.

Não dramatizes, não invoques,
não indagues. Não percas tempo em mentir.
Não te aborreças.
Teu iate de marfim, teu sapato de diamante,
vossas mazurcas e abusões, vossos esqueletos de família
desaparecem na curva do tempo, é algo imprestável.

Não recomponhas
tua sepultada e merencória infância.
Não osciles entre o espelho e a
memória em dissipação.
Que se dissipou, não era poesia.
Que se partiu, cristal não era.

Penetra surdamente no reino das palavras.
Lá estão os poemas que esperam ser escritos.
Estão paralisados, mas não há desespero,
há calma e frescura na superfície intata.
Ei-los sós e mudos, em estado de dicionário.

Convive com teus poemas, antes de escrevê-los.
Tem paciência, se obscuros. Calma, se te provocam.
Espera que cada um se realize e consume
com seu poder de palavra
e seu poder de silêncio.
Não forces o poema a desprender-se do limbo.
Não colhas no chão o poema que se perdeu.
Não adules o poema. Aceita-o
como ele aceitará sua forma definitiva e concentrada
no espaço.

Chega mais perto e contempla as palavras.
Cada uma
tem mil faces secretas sob a face neutra
e te pergunta, sem interesse pela resposta,
pobre ou terrível que lhe deres:
Trouxeste a chave?

Repara:
ermas de melodia e conceito
elas se refugiaram na noite, as palavras.
Ainda úmidas e impregnadas de sono,
rolam num rio difícil e se transformam em desprezo.

Carlos Drummond de Andrade


segunda-feira, 29 de outubro de 2018

"Adeus, futuro": um clássico (Maria do Rosário Pedreira)



"Adeus, futuro": um clássico

Ao dobrar a esquina de uma rua da infância, havia uma papelaria que desempenhava também as funções de livraria e loja de brinquedos. Era ali que, quando eu estava doente, a minha mãe me comprava umas bonecas de papel com guarda-roupa para recortar (Barbies a duas dimensões) e uns livros com desenhos que ganhavam cores quando se passava um pincel molhado pelas respectivas páginas.

As duas pessoas que atendiam ao balcão estavam tão familiarizadas com a cola Cisne, os guaches Pelikan, o papel Cavalinho e umas borrachas muito ásperas a milhas de cheirarem a morango como com o Ford Anglia em miniatura que faltava na colecção de Dinky Toys do meu irmão ou o escafandro do Action Man que acabara de chegar; e, quando a minha avó, na vizinhança de um aniversário, lhes perguntava por um livro que fosse bom para um rapazinho de 9 anos, também não tinham hesitações em aconselhar um dos volumes daquela colecção de biografias com capa dura que incluía Lincoln, Pasteur, Marie Curie e muitas outras personalidades. Mesmo não se tratando de gente de letras, as pessoas que então vendiam livros sabiam, regra geral, o que estavam a vender.

Já eu era estudante universitária, e de letras, quando tive de responder a um apertado inquérito sobre as minhas leituras numa livraria-galeria das Avenidas Novas para conseguir trazer para casa Comunidade, de Luiz Pacheco. Ao que parece, era o último exemplar que existia na loja, e o livreiro decidira que só o venderia a quem o merecesse (ufa!). Mas essa atenção informada deteriorou-se muito com a industrialização da edição e a substituição das livrarias independentes por hipermercados e cadeias de lojas despersonalizadas. Hoje em dia, não é assim tão raro termos de soletrar o nome de um autor (mesmo conhecido) para o funcionário da livraria o introduzir no computador e nos dizer se, afinal, tem ou não o livro que procuramos. E a ignorância grassa: um dia destes, mandaram-me procurar Octavio Paz na estante dos autores portugueses (lá soar soa) e há uns tempos, numa livraria do centro da capital, um senhor ao meu lado perguntou à funcionária se tinha alguma coisa de Charles Dickens e a reacção imediata dela foi: "Isso é o quê?"

Ainda apalermado com a pergunta, o cliente lá replicou: "Ó minha senhora, é um clássico." E, diante daquela explicação, a rapariga apontou então uma mesa próxima e disse-lhe: "Procure ali." Não resisti a ver o que havia na mesa: Sófocles, Ovídio, Lucrécio, Platão... Adeus, futuro.

Maria do Rosário Pedreira

Editora e escritora, escreve de acordo com a antiga ortografia.


Publicada no Diário de Notícias no dia 21 de outubro de 2018



quinta-feira, 25 de outubro de 2018

Sobre a fidelidade (Manuel António Pina)

Uma crónica de Manuel António Pina, excerto de "Um sítio onde pousar a cabeça" rtp2 2012


SOBRE A FIDELIDADE

Sempre que vejo nos noticiários da política e dos negócios alguns daqueles com quem tive 20 anos, pergunto-me se os nossos 20 anos terão sido um sonho ou se, como temo, é a mesquinha, quando não sórdida, actualidade que é um pesadelo dos nossos 20 anos.

Olhando agora alguns deles ninguém diria que tiveram um dia 20 anos. Mas tiveram. Eu vi. Eu estava lá. Cantei com eles as mesmas canções. Jurei com eles pelas mesmas palavras desmesuradas, acreditei com eles nas mesmas coisas essenciais. Que aconteceu para que alguns de nós tivessem desertado tão facilmente e por um preço tão baixo, transformando-se naquilo contra que tiveram 20 anos e falando agora cinicamente de si mesmos como se falassem de estranhos?

Dante colocá-los-ia, como aos anjos que não foram rebeldes nem fiéis a Deus e pensaram só em si próprios, à porta do Inferno. Eu não sou, porém, tão severo. Personagens (como todos, de um modo ou de outro, somos) de uma tragédia medíocre, a da «vidinha», às vezes dói-me vê-los a tanta falta de escrúpulos à venda sem haver quem a compre. E pergunto-me: não serão eles, no fim de contas, os mais sólidos e mais fiéis, não terão sido, afinal, os únicos que compreenderam e aceitaram?”

Manuel António Pina

(JN, 01/10/2007)


Crónica, Saudade da Literatura (Manuel António Pina), Assírio & Alvim, Lisboa, 2013.



quarta-feira, 24 de outubro de 2018

Jornadas sobre Manuel António Pina

Fotografia de Adriana Miranda


Luís Miguel Queirós escreveu o seguinte artigo sobre Manuel António Pina no diário Público na passada segunda-feira, dia 22.


Desimaginar o mundo com Manuel António Pina

Assinalando os 75 anos do seu nascimento, um extenso programa de homenagem evocará, em São Paulo, no Brasil e no Porto e Lisboa, a figura humana e a obra literária de Manuel António Pina (1943-2012).

Chamam-se Jornadas Desimaginar o Mundo. Manuel António Pina. 2018 e são uma extensa e diversificada homenagem ao autor de Todas as Palavras, que passará por São Paulo, no Brasil, e pelo Porto e Lisboa, e que terá um dos seus momentos mais simbólicos no próximo dia 18 de Novembro, data em que o poeta faria 75 anos, com a abertura, na Biblioteca Municipal Almeida Garrett, no Porto, de um programa que incluirá uma mesa-redonda com Pedro Mexia, Inês Fonseca Santos e João Paulo Cotrim, uma conversa entre amigos do autor, com Álvaro Magalhães, Germano Silva, João Luiz e Arnaldo Saraiva, a exposição Os Livros e, já no dia 19, um encontro com ilustradores e professores.

Esta homenagem portuense abrirá logo no dia 16, na estação de metro da Trindade, com a apresentação de um conjunto de fotografias que se relacionam com poemas de Manuel António Pina, aperitivo para a grande exposição colectiva de fotografia “… desimaginar o mundo, descriá-lo…”, que no dia seguinte se inaugura no Mira Fórum. E após os dois dias de jornadas na Biblioteca Almeida Garrett, o programa muda-se ainda para o palacete dos Viscondes de Balsemão, onde decorrerá um colóquio dedicado à obra de Pina, com convidados como Maria João Reynaud, Osvaldo Silvestre, Gustavo Rubim, Paola Poma, Pedro Eiras, Rui Lage ou Arnaldo Saraiva.

Artigo completo em Público (22-10-2018)



segunda-feira, 22 de outubro de 2018

Entrevista com Manuel António Pina (26-4-2009)



Entrevista a Manuel António Pina, por Anabela Mota Ribeiro, publicada originalmente na revista Pública, 26/04/2009.


Manuel António Pina vive entre livros, papéis e gatos. Lembranças, palavras e um cão. Nasceu no Sabugal, há 65 anos. É poeta, escreve livros infantis (embora não goste da designação), é cronista. A sua obra está traduzida, foi premiada.

Pina é o tipo de homem que diz ao mesmo tempo coisas como: "Somos matérias de estrelas. Tenho um poema chamado Matéria de Estrelas; e oferece um doce: 'Não quer tomar nada? Um bolo da minha sogra, bolo da mamã."

Cita T.S. Eliot e mostra fotografias antigas. Aponta para o casaquinho à grilo que usou num Carnaval e explica que religião e religare vêm do mesmo. Para Manuel António Pina, isto anda mesmo tudo ligado. A comida que se come, a morte que se inflige às bactérias com o antibiótico, o tauismo do Winnie The Pooh, a empregada de língua afiada que faz parte da família há 20 anos. "Ler, como diz o Borges, é uma forma de felicidade." Quando era pequeno, os outros miúdos faziam música, cantavam. Ele lia e escrevia versos. 


Tem uma fixação no Winnie The Pooh...

É um dos meus livros de referência. Nós somos o que lemos, e eu, não sei se sou alguma coisa ao Winnie The Pooh, mas gostava de ser... Ao [ Jorge Luís] Borges, perguntaram assim: "Quem é afinal Borges?"; ele começou a responder como os futebolistas, na terceira pessoa, "Borges não existe" [risos]; depois passou para a primeira pessoa do singular: "Sou todos os livros que li, todas as pessoas que conheci, todos os lugares que visitei, todas as pessoas que amei." É verdade - agora digo eu.

Como se deu o encontro com o Winnie The Pooh, de Milne?

Descobri-o tarde, era um jovem adulto. Em casa dos meus pais havia poucos livros. O primeiro que li, tinha uns oito ou nove anos, emocionou-me imenso. Foi A Vida Sexual, do Egas Moniz.

Comecei a ler livros por causa das bibliotecas da Gulbenkian que apareciam lá na terra.

Como o apresentaria? É improvável que um encontro com uma figura da infância se dê na idade adulta...

E de uma forma muito forte. É um ursinho com muito pouco miolo, que tem uma relação com o mundo e consigo dominada por uma nonchalance e pela bondade - que é a grande qualidade humana. É muito medroso, mas tem aventuras de grande coragem. Há uma nonchalance que há, ou que gostaria que houvesse em mim, ou que procuro que haja em mim, [um desejo de] deixar-me atravessar pelas coisas. O ursinho é uma imagem de um universo perdido, de um mito, de um passado dourado - que nunca existiu. É uma espécie de reencontro com a infância. E esse reencontro é uma necessidade natural em sociedades urbanas como as nossas, muito agressivas, competitivas e pouco espontâneas. É natural que em silêncio, na solidão, sintamos essa melancolia da infância.

Era à voz da infância que eu queria chegar, cruzando o Pooh com o título Um Sítio onde Pousar a Cabeça (1991). O Pooh simboliza o espaço mitificado da infância? Onde tudo era puro e onde podemos, pelo menos na memória, pousar a cabeça.

O ursinho não é propriamente puro, é espontâneo; tem uma relação directa e imediata com as coisas e com a palavra. Seduz-me a sua relação com as palavras, que é simultaneamente de inocência e de malícia. E seduz-me a capacidade formidável que têm as palavras de fazer sentido e de produzir sentido. A palavra "criar", pelo menos em termos fonéticos, tem muito que ver com a criança; criança também é aquele que está em criação. No Pooh tudo é feito através do discurso.

E que tem isto a ver com os seus livros?

Escrevo o livro comigo mesmo, com o meu sangue, com a minha vida, com a minha memória. A minha escrita tem muitas alusões, frases. Tenho a cabeça cheia de frases!, do Eliot, do Rilke, do Alexandre O'Neil, do Ruy Belo e do Winnie The Pooh; para além de outras que não reconheço, e que se calhar são as mais importantes ou significativas. Quando falo na minha poesia do que está atrás dos cortinados, o que está debaixo da cama, esses medos infantis, tenho no horizonte relações com esses poemas do Milne.

O primeiro espaço da sua infância foi o Sabugal.

No dia 4 de Abril, vão-me fazer uma homenagem [entrevista realizada dias antes]. Vão pôr uma placa na casa onde nasci, e pediram-me um verso para lá pôr. Andei à procura. Uma das ideias centrais da minha poesia é a morte, o sítio onde pousar a cabeça. O regresso a casa é a melancolia da infância e é também a morte. Do mesmo modo que nascemos do ventre da mãe, há um regresso, uma espécie de percurso circular, ao ventre da terra. Por algum motivo dizemos "a terra natal".

E muita gente quer ser enterrada na terra onde nasceu, por mais voltas que tenha dado.

[afasta-se] Deixe ver se encontro aqui esse livro..., onde é que está isso agora? Deixei-o no carro. Aqui é onde tenho as coisas relativas aos meus livros, este armário todo... Vou dizer-lhe um poema: "Os homens temem as longas viagens, os ladrões da estrada, as hospedarias e temem morrer em frios leitos e ter sepultura em terra estranha." Começa assim. "Por isso os seus passos os levam de regresso a casa, às veredas da infância, ao velho portão em ruínas, à poeira das primeiras, das únicas lágrimas." Continua por aí abaixo.

Vamos até à casa onde nasceu?

Nasci em casa. Era a casa dos meus avós. Tenho tantos poemas sobre aquilo... E, no entanto, saí de lá com seis anos. O meu pai era funcionário das Finanças. Só podia estar dois anos em cada terra para não fazer amigos. Isso foi horrível para mim, porque não fazendo ele amigos, eu também não fiz. Sair do Sabugal foi muito penoso.

Quando saiu do Sabugal, iniciou a sua viagem. Gosta de viajar?

Há uns anos, uma miúda perguntou-me: "Como é jornalista, viaja muito?" "Não gosto nada de viajar!" E ela: "Se calhar foi por viajar tanto quando era pequeno..." Tinha uns dez ou 11 anos, e chamou-me a atenção para isso. Fui uma espécie de Sísifo: sempre a fazer amigos e a perdê-los. Quando os amigos estavam feitos ou a fazer-se, perdia-os de novo, e ia para outra localidade, e recomeçava a fazer, tudo do princípio, sabendo que os ia perder daí a três ou quatro anos, e que tinha de recomeçar de novo. Passei a infância nisto.

Mas não desistia?

Não. Estamos condenados a isso. Os meus amigos mais antigos são dos 18 anos, aqui do Porto.

Não tenho amigos da instrução primária, mas tenho nomes: o Américo, o Pedro Matos Neves (esse sei que morreu na guerra colonial).Tenho a cabeça cheia desses nomes, mas os rostos já se perderam. Eu tinha um pesadelo quando era miúdo, recorrente, que tinha que ver com o regresso a casa.

Como era?

Eu vivia numa casa e atravessava a rua para ir à escola; entretanto, começava a passar um comboio eterno, passava, passava, e não podia regressar a casa. Era horrível! É o problema do regresso a casa.

Há um poema seu que diz assim: "A alegria da viagem é o regresso a casa."

A minha vida, na infância e juventude, foi uma permanente, uma eterna partida. É natural que tivesse a melancolia do regresso.

Era um menino triste?

Não. Essas coisas são profundas demais para terem expressão à superfície, na tristeza ou na alegria. São vivenciais; na altura não nos apercebemos delas, e são as que nos marcam mais.

Não desistia de fazer amigos, que era um modo de construir casa, mesmo sabendo que o desmoronamento era inevitável. Não criou um muro entre si e o mundo. Não o fez menos loquaz.

Se calhar até aumentou a minha loquacidade. A minha infância foi uma longa queda, com a minha existência a desmoronar-se permanentemente, a ter de ser recriada. Agarrar-me é uma forma de criar raízes.

Olhando à volta, percebe-se que acumula coisas.

Tenho muita dificuldade em deitar coisas fora.

Podia pensar, em função do seu passado, que o desprendimento lhe fosse mais fácil.

Foi exactamente isso que me fez ser mais agarrado às coisas.

Sabe o que é isto aqui?

São coisas importantes para tratar.

Tem uma pilha de um metro de coisas importantes para tratar!

Descobri que as coisas importantes, se as pusermos num monte, passados uns meses deixam de ser importantes [risos]. É tudo inútil!, são urgências que entretanto deixaram de ser urgentes. Mas nem calcula as coisas que tenho da infância. Tenho até um casaquinho preto que a minha mãe e a minha tia Céu me vestiram numa festa de Carnaval. [Afasta o cinzeiro da secretária apilhada de coisas] Eu quase não fumo. Sou muito inseguro. O cigarro também é uma forma de insegurança. Eu é que estou pendurado no cigarro, não é o cigarro pendurado em mim. As minhas amigas psicanalistas dizem que se eu não escrevesse poesia era um grande cliente delas.

Nunca foi cliente de psicanalista?

Não, e não gosto de psicanalistas.

Porquê?

Desconfio. São polícias das almas. Não gosto nada que me espreitem cá para dentro. [Mostra fotografias] Isto era a minha avó, o meu avô, a minha mãe e a minha tia Fernanda. Isto são as minhas filhas. Este é o Mário Cesariny. Isto sou eu e o meu irmão.

Sem o bigode, nem o reconheço. Deixe-me tentar perceber se é o mesmo.

Sou, sou. Sou o mesmo e outro. Estava a ver se encontrava as tais fotografias... Isto é a minha mulher. O meu avô. Tenho um poema, O casaquinho preto. Tenho esse casaquinho aí, vou buscar, tem de ser, está bem?

Está.

"Como é que eu podia saber na altura que eu era só uma memória do que sou hoje, de alguém que eu na altura desconhecia?" Estava a falar da infância: tenho uma memória muito vaga daquela casa, tenho só sombras. A memória mais antiga que tenho é concreta, mas as outras não. "Ao fundo da escada havia uma floreira branca e lilás, com uma flor descolorida, talvez tenha sido um sonho a preto e branco e isto faça algum sentido, a avó morria de cancro no quarto de baixo, vomitando um líquido branco, andava por ali a morte, falando baixo, subindo e descendo as escadas. Vi-a muitas vezes hesitando, como se estivesse perdida também ela, ou como se estivesse viva..."

Vai insistentemente aos poemas... A poesia, como o cigarro, é um biombo que interpõe para evitar ou adiar o encontro com os outros?

Não. Quando começo a escrever um poema nunca sei o que vou dizer. O Eliot fala de um ser informe que se pergunta a si mesmo: "O que virei eu a ser?" O Paul Claudel diz que sente qualquer coisa nele que se quer transformar em palavras. A poesia é uma busca da identidade, ou seja, de coincidência. Na busca dessa coincidência, é natural que cada um de nós construa uma narrativa, construa um passado. Os poemas sobre a infância são uma tentativa desesperada de construir um passado onde possa regressar, onde possa encostar a cabeça. Mas isso é comum a todos os seres humanos, quer tenham uma existência nómada, como foi a minha, quer tenham uma existência sedentária - a tentativa desesperada de se encontrar a si mesmos, de coincidir com o rosto que vêem diante do espelho. Não sei como é que hei-de explicar isto...

Como foi o seu encontro com as palavras?

Aprendi a ler muito cedo. Os meus pais viviam com muitas dificuldades económicas. Tanto que fiz o curso todo sem assistir a uma aula de Direito. Fui para Direito porque era o único curso que se podia fazer sem ir às aulas. Tinha um primo numa república e às vezes conseguia estar um mês em Coimbra. Mas ia assistir às aulas de Literatura, do Paulo Quintela! Isto vinha a propósito de quê? Ah, não havia livros, mas o meu pai todos os dias, quando vinha da repartição, levava o jornal para casa. Aprendi a ler nos jornais. E sabe como são as mães...

Tem filhos?

Não.

Mas tem mãe. As mães são os seres mais admiráveis que há. A minha mãe é que guardava essas coisinhas todas que eu escrevia. Desde que me conheço, escrevia todos os meus sentimentos, a minha relação com o mundo e com as coisas. Escrevia em verso.

Como é que um miúdo de seis anos escreve versos?

Os versos eram dísticos, o verso mais simples. Alguém me contou a história do milagre das rosas e eu pu-la em verso. "Nasceu um dia em lua-de-mel, uma princesa chamada Isabel." O "que queres ser quando fores grande?", fazia sempre em verso. Queria ser detective, aquelas coisas que os rapazes querem ser.

Os rapazes querem ser detectives? Essa nunca tinha ouvido.

Queria ser detective por causa dos livros de banda desenhada. O Cavaleiro Andante vinha aos sábados, chegava na camioneta e eu andava com o meu irmão à pancada para ver quem lia primeiro. Queria ser padre.

Padre? Porquê?

Eu queria ser santo. Imaginava este mundo como sendo a barriga, o interior de um ser a quem chamamos Deus, que por sua vez era um habitante de outra terra, que vivia na barriga (que é o sítio onde está a alma) de outro ser que era o seu Deus, e assim até ao infinito. E para mim era a mesma coisa: na minha barriga viviam muitos pequenos seres que me designavam a mim, não sabendo quem eu era, por Deus.

Era um elo numa cadeia.

Uma cadeia para o infinitamente grande e para o infinitamente pequeno. Não está longe da verdade. De vez em quando, dava um soco na barriga, "ai, provoquei um terramoto nos universos inferiores todos"; imaginava os seres dentro da minha barriga atirados ao chão, a pedir piedade, piedade! [risos].

Donde veio a ideia de querer ser santo?

Queria ser bom até ao limite, ao extremo. Na Sertã, vivia num extremo da vila e a escola era noutro extremo; vinha a pé para a escola e aproveitava para rezar todo o caminho. Era investir na minha santidade.

Era também um desejo de agradar à sua mãe? A sua mãe era religiosa?

Era. O meu pai era anticlerical primário. Quando fi z o 7.º ano do liceu, a alternativa para as pessoas com poucos meios era ir para a academia militar ou para o seminário. Para o seminário, nem pensar! O meu avô materno tinha todos os defeitos: era judeu, anarquista, republicano e anticlerical. Na minha família, eram todos judeus de origem; ele era Ismael, a minha mãe Sara.

Onde é que pára o judaísmo e o desejo de ser santo?

Eu, que já fui agnóstico, agora sou mesmo ateu. Mas tenho muita sedução por religiões e por livros religiosos. Sou um grande leitor da Bíblia, embora leia aquilo como um romance.

A prosa nunca foi a sua forma?

Nunca. Ainda hoje leio pouca ficção, e leio sempre os mesmos: o Malcolm Lowry, o Conrad, o Melville, o Jack London, o Mark Twain. Li o Eça de Queirós porque tive um prémio literário no liceu de Aveiro. Era no valor de 500 escudos em livros, e comprei as obras completas do Eça. Passava o tempo metido na biblioteca; não era para me cultivar, era por prazer.

Porque aquilo era uma casa.

Talvez. Está a psicanalisar-me! [risos].

Fale-me da sua mãe, por falar em psicanálise.

A minha mãe também fazia versos. A minha mãe ficou muito magoada quando morreu o meu avô, pai dela, e eu não escrevi nenhuns versos. Tentou fazer uma fraude. "Sabes, escreveste uns versos tão bonitos sobre a morte do teu avô...", "Não escrevi nada", "Escreveste, escreveste, encontrei-os ali". Queria convencer-me de que era eu que os tinha escrito! E mostrá-los ao meu pai e às amigas. "Não escrevi nada, é mentira, foste tu." Esses versos terminavam assim: "Estás no Céu avozinho, junto de Nosso Senhor"! [gargalhada] Fiquei furioso. Ficou furioso porque lhe queria atribuir uns versos que não eram seus? Sim. E fazia versos que queria que eu recitasse para as visitas: "Quero ser alferes, e de um lindo regimento de mulheres." Um dia, o tesoureiro da Fazenda Pública e a mulher foram visitar-nos e a minha mãe esteve a ensinar-me uns poemas que fez. Eu tinha vergonha de os ler. Finalmente, acabei por fazê-lo escondido atrás da porta. Nunca contei isto a ninguém. Agora que me está a fazer a psicanálise, lembro-me destas coisas engraçadas. A minha mãe morreu há dez anos.

E escreveu versos?

Não. Não escrevo poemas sobre nada.

A sua poesia escreve-se com memória, não com sentimentos.

Toda a poesia se escreve com memória de sentimentos, mas não com sentimentos. O Oscar Wilde dizia que "a má poesia normalmente é sincera". Os sentimentos são maus conselheiros. Outro dia recebi um original do João Luís Barreto Guimarães sobre a morte do pai; peguei no livro com a maior das desconfianças, mas é admirável.

Na infância escrevia em versos. Sobre quê?

Sobre sentimentos.

Escreveu versos sobre a morte da cadela Coquita e não escreveu sobre a morte do seu avô. Porquê?

Sabe-se lá porquê? Nunca me forcei a escrever. Não queria ser dramático, porque estas coisas são simples: mas é como se os poemas é que quisessem escrever-se em mim. Os sentimentos sentem-se, a poesia não tem nada que ver com isso.

Como naquele seu verso: "A palavra sangue não sangra"?

Se me dói uma coisa, dá-me para chorar, para gritar, e não para escrever. Agora já não choro há muito tempo, mas houve uma altura em que chorava imenso. Sem motivo. Já com 30 anos, 40 anos, fechava-me sozinho no quarto, agarrava-me à almofada e chorava. Saía dali com um conforto... A minha poesia, quando era miúdo, tinha que ver com efabulações, sonhos, desejos. Os temas de toda a arte reduzem-se à morte e ao amor.

Eros e Tanatos.

Eros e Tanatos, e o Tempo também. As questões fundamentais de todos nós, do Homem enquanto tal, são aquelas que os nossos filhos nos põem quando têm três anos. "De onde é que nasci? Onde é que eu estava antes de ter nascido? Para onde se vai quando se morre?" Os sistemas filosóficos, as religiões tentam responder a essas perguntas. E no meio tempo: "Quem somos" ou "o que somos". É natural que à beira do abismo o Homem se interrogue ou fique ansioso. Essa interrogação é o motor da arte, da filosofia, da poesia, da música.

Quis ser escritor?

Nunca. Os miúdos, nas escolas, perguntam-me se quando era pequeno queria ser escritor. Até costumo responder-lhes com um jogo de palavras: "Que o escritor é que quis ser eu." E é verdade.

Não quis ser escritor, mas quis ser santo. Influências bíblicas abundam na sua poesia.

Quando era jovem, gostava do Cântico dos Cânticos. Tinha aquele conteúdo carnal... Eu tinha uma namorada e uma Bíblia; Salomão fala dos seios de Sulamita: "Os teus seios são como duas pombas, para não falar do que está dentro." E na minha Bíblia tinha uma nota de rodapé: "Entenda-se os dois seios da Igreja, a Moral e a Doutrina." Eu dizia à minha namorada: "Hoje tens mais Doutrina que Moral" [gargalhadas]. Depois também me interessei pelo Apocalipse. Mais velho, pelos livros do Antigo Testamento.

O meu evangelho era o de São Mateus. O Pasolini é que fez um grande filme, Il vangelo secondo Matteo.

Além de ser belo, é um filme muito carnal.

Também. Agora, que já sou sexagenário, tenho uma certa preferência pelo Génesis e pelo Evangelho de São João, que acho que é o mais poético. Tenho a cabeça cheia de versículos da Bíblia. "Podes ter o dom das línguas, mas se não tiveres o amor..." Conhece esse? Vou ler, desculpe lá, é comovente e tudo. É do São Paulo, e não gosto nada do São Paulo: é misógino.

Não gosta do São Paulo porque ele é misógino?

E por outras coisas. Mas esta é lindíssima. "Ainda que eu tivesse o dom da profecia, o conhecimento de todos os mistérios e de toda a ciência e de toda a fé, a ponto de transformar as montanhas, se não tivesse o amor, eu nada seria."

O que seria da sua vida sem o amor?

Costumo dizer uma coisa: o amor é a bondade que se aplica a tudo. É a bondade, é a beleza. O amor é um conceito só. Sou um céptico, mas conheço duas ou três ou quatro pessoas bondosas.

A minha sogra é uma pessoa bondosa, a minha mulher também é. O amor é o principal veículo de comunicação. [Aproxima-se uma gata] (É a minha gatita, deve ter tropeçado.) De maneira que o amor ou a bondade é tudo o que temos. Memória é tudo o que temos, palavra é tudo o que temos, e as palavras são a forma de podermos, eventualmente, tocar a fímbria do amor e da memória. Veja lá há que tempos estou com este cigarro sem o acender..., isto é insegurança.

Por que é que é inseguro?

Sei lá. Vou contar-lhe um segredo, mas não me importo que fique: eu escrevia com régua, à mão. Se eram coisas que podiam ser vistas por outra pessoa, escrevia com régua, e com hipocrisia. Ainda hoje faço as dedicatórias dos livros assim: uso o Bilhete de Identidade, [a fazer de régua].

Para quê?

Para ficar mais certinho, para não me mostrar em cuecas, para não mostrar a minha intimidade, a irregularidade.

Isso é irregularidade?

Tenho essa mania. O que é que quer?, é o mesmo motivo que nos leva a pentear ou a ajeitar a gravata - não uso gravata. Quando estamos em público não nos apresentarmos da mesma maneira que em privado. Gosto muito de um título do Alexandre O'Neil, que é um bocado a minha relação com as palavras: O Abandono Vigiado. Liberdade condicional. Senão as palavras começam a falar sozinhas. [A gata mia.] O que é que ela está a fazer?

Está a meter-se dentro da minha carteira.

Ela é muito brincalhona. Vai à tua vidinha. É muito gorda.

Enxotei-a. É como se fosse uma pessoa a mexer nas minhas coisas.

Fez bem. É intromissão. As minhas amigas psicanalistas - são duas ou três - diziam que escrever com a régua era expressão de insegurança. Se sou inseguro, por que é que não mostro que sou inseguro?

Já disse pelo menos duas vezes que é inseguro.

Sou. Antes tinha vergonha, mas agora não - são os tais privilégios da idade. Lá está você a contar as vezes..., a psicanalisar! Os psicanalistas contam? Você repara. É perigosa. Porque é observadora.

Se sou isso, vou dizer que reparei que citou várias vezes o Borges e nenhuma o Mallarmé, que, segundo os escritos sobre a sua poesia, lhe é essencial. Nem a Odisseia.

Não é tanto a Odisseia, é mais a Ilíada.

O tema do regresso a casa e da memória, e mesmo do mito de Sísifo, estão na Odisseia. Por isso falo dela.

A Odisseia foi muito marcante. Até onde tenho consciência, os autores essenciais são todos aqueles gregos a quem chamamos Homero, o Eliot, o Rilke e o Borges. A ficção do Borges. Não gosto muito da poesia do Borges, curiosamente.

Estranho, porque Borges é um dos maiores poetas, e porque você é um poeta que quase não lê ficção.

Sinto-me mais consanguíneo com a ficção dele. E há Ruy Belo, Pessoa, Cesário Verde, Cesariny, e há muitas mulheres. Surpreende-me, em versos meus, reconhecer ecos da Sylvia Plath ou da Anna Akhmatova.

E a vidinha?

A vidinha, convivo bem com ela.

Estudou Direito porque era o que era possível. Quis ser santo e detective, entre outras coisas. Parece uma vida efabulada. E depois há uma vida que se impõe, com os pés na terra.

São vidas paralelas, convivem perfeitamente uma com a outra.

Como é que aprendeu a fazê-las conviver?

À própria custa!, é a única maneira. Isto é humano, demasiadamente humano. É natural que queiramos evadir-nos quando nos sentimos agarrados pela vida corriqueira. (Hoje estou com uma dor de dentes. Não posso tomar coisas, que tenho medo, estou a caminho da diálise, dá-me cabo dos rins. O dentista radiografou tudo e não tenho lá nada, mas dói-me!, não sou maluco completamente.) Continuando: somos muitos ao mesmo tempo, somos aqueles que sonhamos, somos sobretudo aquilo que tememos e que desejamos.

Ainda não explicou como é que embrulha as várias camadas. A do poeta, a do que vive a vidinha, a do escritor de livros infantis que vai às escolas falar com miúdos e dizer-lhes que nunca quis ser escritor.

Acho que é fácil compatibilizar todos aqueles que nós somos ou vamos sendo. Vivo a tal vida corriqueira sem me comprometer. Consigo ser muito "forex", como dizem os putos, mas ao mesmo tempo sou muito prático - é o tal espírito jurídico. Ainda agora tive uma guerra com a TMN por causa de umas facturas e acabaram por me indemnizar. Eu gosto de guerras perdidas, tenho mesmo vocação para santo! [gargalhada].

Essa com a TMN, pelos vistos, não foi perdida. E já agora, algum santo em particular?

Não. Queria ser santo, queria ser bom.

Santo Pina.

Há uns versinhos de um miúdo do Centro de Recuperação de Crianças Anormais um nome horrível o Manuel Ferraz, de 12 anos: "Eu quero ser bom, mas não bom de todo o meu coração." Eu queria ser totalmente bom. Embora hoje já só queira ser bom mas não de todo o meu coração como o Manuel Ferraz.

Pelo meio, exerceu advocacia durante nove anos, que abandonou para ser jornalista.

[De novo a gata] Anda cá Bezinha! Ela é muito simpática, é muito cordial.

Era um advogado de causas perdidas?

Também. As pessoas confiam no advogado a sua liberdade ou a sua fazenda. O mínimo exigível era uma entrega total. Tinha de poder dormir comigo mesmo todas as noites. Podemos dormir com A ou com B, mas connosco temos sempre de dormir. É bom a pessoa dormir tranquilamente, poder não dizer: "Sou um sacana." Somos o nosso pior juiz. Em relação a amigos que tive na juventude, o Alberto Martins, o Jorge Strecht, digo-lhes muitas vezes: o que é que pensariam das pessoas que são hoje as pessoas que vocês eram quando tinham 20 anos? Andou metido na política? Pouco. No outro dia encontrei no Alfa o Januário Torgal Ferreira, o bispo, "olha o padre Januário!".

Continua a dizer hoje o que dizia quando tinha 20 anos. As pessoas mudam, mas fundamentalmente os valores são os mesmos. E no seu caso?

Acho que continuo a dizer o mesmo. Mudei muitas coisas. Para ser fiel aos valores fui obrigado a mudar. Por exemplo, a seguir ao 25 de Abril, cheguei a ser candidato a deputado pelo MES e pela UEDS. Fiz sempre questão de não ser militante de coisas nenhuma; como se costuma dizer em linguagem popular, eu mijo fora do penico. Esse militante foi o homem que nunca quis ser. Vamos sendo outros; alguns por imperatividade da vida biológica (não quer tomar nada?), outros por imperatividade afectiva, outros moral, e nesse grande painel de identidades, o militante é perfeitamente dispensável.

Aproximou-se da política numa altura em que em Portugal toda a gente fazia política.

Foi a seguir ao 25 de Abril. Acreditei e envolvi-me mesmo. Eu não sou muito hipócrita, sou o suficiente para conseguir viver em sociedade. Acreditei que vinha aí o socialismo, que podia ser uma forma de felicidade colectiva. Eu andava à procura de casa, estava para nascer a minha filha mais nova, a Sara. O obstetra dela, que era um famoso professor da Faculdade de Medicina, nas consultas só falava nos comunistas, estava preocupado que lhe levassem as pratas. As pessoas fugiram em debandada final como se fossem umas baratas, e abandonavam coisas que vendiam por tuta e meia. Estava à venda uma casa que eu cobiçava imenso, por 600 contos, que era muitíssimo barato. Sabe por que é que não a comprei?

Porquê?

Estava sinceramente convencido de que vinha aí o socialismo e que não precisava de comprar casa! A militância não foi só por causa de l'air du temps. Eu acreditava mesmo no poder popular. Tentei ser candidato duas vezes. A proximidade com a militância e com a política partidária revelou-me aspectos da natureza humana e das próprias organizações partidárias revoltantes. De maneira que me afastei completamente. Hoje tenho até uma hostilidade em relação à política.

Foi em 74 que editou o seu primeiro livro. O título é: Ainda não É o Princípio nem o Fim do Mundo, Calma, É apenas Um Pouco Tarde.

Foi nas vésperas da revolução, acho que o livro saiu mesmo em Abril.

É um título profético, de certa maneira.

Tinha editado um livro infantil em Dezembro de 73, chamava-se O País de Pessoas de Pernas para o Ar.

Sei que não gosta da designação, mas é um dos autores mais conceituados de literatura infantil.

Não faço distinção entre a literatura e a poesia infantil. Tenho exactamente a mesma atitude. O Paul Valéry diz que o primeiro verso nos é dado e os outros têm de ser conquistados. Aquele que me é dado nunca me é dado como um verso infantil para crianças ou um poema para os adultos; é-me simplesmente dado. Depois, os versos seguintes, conquistados, têm alguma penosidade. O próprio texto é que se vai escrevendo como texto, eventualmente legível ou publicável como livro para crianças ou como poesia para adultos.

Lembra-se muitas vezes da criança que era?

Recordo-me. Mas de uma forma engraçada: como se essa criança nunca tivesse existido, a não ser fora da minha lembrança.

Por fim, os gatos. Por que é importante ter esta gataria perto de si?

Dou-me bem com os gatos porque eles, os animais em geral, estão muito próximos do Ser. Como estão alguns personagens literários. Relaciono-me com eles com alguma melancolia, porque "quem me dera ter a tua inconsciência, e a consciência dela" - como escreve Pessoa.

(Não quer tomar nada, um doce? Um bolo da minha sogra, bolo da mamã.)

Anabela Mota Ribeiro

Publicado a 26 Abril de 2009, na revista Pública



Mais uma entrevista:

Entrevista de vida realizada por Pedro Dias de Almeida (editor de cultura da VISÃO), em 2009, para a revista Praça Velha (Câmara Municipal da Guarda, e publicada na revista Visão a 19 de outubro de 2012, data da morte de Manuel António Pina.




sexta-feira, 19 de outubro de 2018

Manuel António Pina e a poesia

Fotografia de Fred Matos


A poesia é feita e desfeita da volúvel matéria das palavras, dos seus murmúrios, dos seus sentidos, dos seus tantas vezes misteriosos propósitos. E das raízes das palavras no mundo onde desgarradamente se prende a solidão no mundo, do formidável poder das palavras não apenas de nomear mas de fazer o mundo.

(...)

Acho que a minha relação com a poesia (com a arte em geral) não é uma busca de qualquer coisa de novo. É uma busca de qualquer coisa que eu já sabia mas que não sabia que sabia. O poema é essa revelação. Nesse aspecto de revelação também tem alguma coisa de mistério e de sagrado.

Manuel António Pina



A POESIA VAI ACABAR

A poesia vai acabar, os poetas
vão ser colocados em lugares mais úteis.
Por exemplo, observadores de pássaros
(enquanto os pássaros não
acabarem). Esta certeza tive-a hoje ao
entrar numa repartição pública.
Um senhor míope atendia devagar
ao balcão; eu perguntei: – Que fez algum
poeta por este senhor? – E a pergunta
afligiu-me tanto por dentro e por
fora da cabeça que tive que voltar a ler
toda a poesia desde o princípio do mundo.
Uma pergunta numa cabeça.
– Como uma coroa de espinhos:
estão todos a ver onde o autor quer chegar?



Manuel António Pina foi-se deste mundo a 19 de outubro de 2012.




quinta-feira, 18 de outubro de 2018

Em louvor de uma infância (Alberto Soares)

Fotografia de André Sousa


Em louvor de uma infância

Hoje, tudo tem embalagens evasivas: em blister, tetrapack e quejandos. Aformoseadas até ao limite do disfarce ou dissimulação, onde os produtos jazem muito pouco substantivos, menos ainda se lhes descobre a filiação ou origem que permita às novas gerações conhecer-lhes a história em toda a sua simplicidade.

Quando criança, eu estava muito pouco acostumado à técnica, mas sabia, por exemplo, o que era um contador de água. E o seu verdete, quando já envelhecido. Desde cedo, sabia mudar fusíveis, ensinado que fora pela minha Mãe. Conhecia a cor do chumbo e do mercúrio. E os dejectos das cabras vicinais, como também os figos equestres que, por vezes, sinalizavam os animais de passagem pelos caminhos de terra batida, poeirentos. Sabia de como os ninhos eram feitos e conseguia facilmente distinguir um ovo de pata de outro, de galinha. Pasmava da galinha choca - ainda não havia os aviários -, na obscuridade da loja, sobre o enorme cesto vindimeiro, protegendo os pintaínhos recém-nascidos. Surpreendia-me com a agilidade das sardaniscas, fugindo por entre as pedras, nas manhãs de Sol. Tudo isto, apesar de viver numa cidade, embora de província, onde ainda não havia embalagens.


Alberto Soares no blogue Arpose  (20-10-2015)



segunda-feira, 15 de outubro de 2018

Os Amigos Nunca São para as Ocasiões (Miguel Esteves Cardoso)

Fotografia de César


OS AMIGOS NUNCA SÃO PARA AS OCASIÕES 

Os amigos nunca são para as ocasiões. São para sempre. A ideia utilitária da amizade, como entreajuda, pronto-socorro mútuo, troca de favores, depósito de confiança, sociedade de desabafos, mete nojo. A amizade é puro prazer. Não se pode contaminar com favores e ajudas, leia-se dívidas. Pede-se, dá-se, recebe-se, esquece-se e não se fala mais nisso.

A decadência da amizade entre nós deve-se à instrumentalização que tem vindo a sofrer. Transformou-se numa espécie de maçonaria, uma central de cunhas, palavrinhas, cumplicidades e compadrios. É por isso que as amizades se fazem e desfazem como se fossem laços políticos ou comerciais. Se alguém «falta» ou «não corresponde», se não cumpre as obrigações contratuais, é logo condenado como «mau» amigo e sumariamente proscrito. Está tudo doido. Só uma miséria destas obriga a dizer o óbvio: os amigos são as pessoas de que nós gostamos e com quem estamos de vez em quando. Podemos nem sequer darmo-nos muito, ou bem, com elas. Ou gostar mais delas do que elas de nós. Não interessa. A amizade é um gosto egoísta, ou inevitabilidade, o caminho de um coração em roda-livre.

Os amigos têm de ser inúteis. Isto é, bastarem só por existir e, maravilhosamente, sobrarem-nos na alma só por quem e como são. O porquê, o onde e o quando não interessam. A amizade não tem ponto de partida, nem percurso, nem objectivo. É impossível lembrarmo-nos de como é que nos tornámos amigos de alguém ou pensarmos no futuro que vamos ter.

A glória da amizade é ser apenas presente. É por isso que dura para sempre; porque não contém expectativas nem planos nem ansiedade.

Miguel Esteves Cardoso

Do seu livro Explicações de Português (2001)




quinta-feira, 11 de outubro de 2018

O Brasil enfrenta o anti-Brasil (José Eduardo Agualusa)

Fotografia de Amanda Vivan


O Brasil enfrenta o anti-Brasil

Nas redes sociais vem circulando um vídeo do ator inglês Stephen Fry, alertando os brasileiros para o perigo que representa o crescimento da extrema direita. No essencial, Stephen Fry considera a multiplicação de declarações racistas, homofóbicas e machistas uma escolha equivocada para um país que tem na diversidade o seu principal traço de caráter. Seria, sugere o ator inglês, como se o Brasil estivesse escolhendo o anti-Brasil para o representar.

A diversidade do material humano com que se constituiu o ser brasileiro é, sem dúvida, extraordinária; basta percorrer as ruas de qualquer cidade do país para perceber isso. Contudo, passeando por Londres, Cape Town ou Nova York iremos deparar-nos com idêntica ou ainda maior diversidade. O que torna o Brasil original, o que explica a alegre vitalidade da sua cultura popular, não é tanto a diversidade: é a voracidade com que assimila o outro, isso a que chamamos mestiçagem.

Vivi dois anos entre Olinda e o Rio de Janeiro. Recordo desse meu breve exílio brasileiro a experiência do não exílio. Nunca me senti ostracizado. Nunca me senti estrangeiro. Nunca me senti colocado à margem. Pelo contrário, tinha de lutar todos os dias contra a tentação de me esquecer de mim, me refundando brasileiro.

Guardo desse tempo a ilusão de que é fácil virar brasileiro. Difícil é ser alemão, por exemplo, para citar um país onde até hoje a ascendência (o sangue) tem mais importância do que o lugar onde alguém nasce e cresce. Isto é, os filhos de imigrantes turcos nascidos na Alemanha não são automaticamente alemães (apenas se os pais estiverem legalmente no país há mais de oito anos), e continuam a ser tratados como turcos por uma boa parte dos seus concidadãos. Já os russos ou poloneses pertencentes a minorias de etnia alemã têm direito a passaporte germânico, ainda que nunca tenham visitado o país.

A propósito da Alemanha, onde também morei, lembro de uma ocasião em que vi, em Berlim, uma “japonesa” sambando. No momento em que a vi eu soube que ela não era japonesa. Era brasileira. Só podia ser brasileira. Esta capacidade de transformar um japonês, um alemão ou um angolano em brasileiro — num brasileiro inteiro, sem arestas —, é que me parece verdadeiramente singular.

E é este Brasil que está sob ameaça: o Brasil.

O anti-Brasil que vem crescendo e envenenando o Brasil me lembra certas doenças autoimunes. É como se o organismo — no caso, a sociedade brasileira — não fosse capaz de se reconhecer a si mesmo, os seus próprios órgãos e células, começando a se autodestruir.

O crescimento do anti-Brasil será apenas responsabilidade de políticos com um venenoso e persistente discurso de ódio? Creio que não. Provavelmente esses políticos apenas dão corpo a uma insanidade latente, que terminaria se manifestando, mais cedo ou mais tarde, com eles ou sem eles. Para a combater é preciso determinar primeiro de onde vem.

Sinto muito, não tenho respostas. Stephen Fry também não. Fry apenas está assustado, como eu, como milhões de outras pessoas no mundo inteiro, que amam o Brasil e a sua alegre e maravilhosa máquina de engolir e misturar culturas.

Infelizmente, no meio do ruído que se instalou no Brasil, fica difícil escutar as vozes lúcidas interessadas em discutir a questão e em encontrar respostas.

José Eduardo Agualusa

"O Brasil enfrenta o Brasil". In: O Globo, Segundo Caderno, 29/09/2018.


(Lido no blogue Acontecimentos, de Antonio Cícero)



terça-feira, 9 de outubro de 2018

"Um dia, na aula de Mecânica, parti um ponteiro..." (José Saramago)



Um dia, na aula de Mecânica, parti um ponteiro. O professor ainda não tinha chegado e nós aproveitávamos o tempo para armar o arraial do costume, uns a contar anedotas, outros a atirar aviões ou bolas de papel, outros a jogar às palmadas (magnífico exercício para estimular os reflexos, porquanto o jogador que tem as palmas das mãos para baixo terá de tentar escapar à palmada que o jogador que tem as palmas das mãos para cima vai tentar dar-lhe), e eu, para exemplificar o uso da lança, já não sei a que propósito, talvez por causa de algum filme que tivesse visto, empunhei o ponteiro como se lança fosse e corri para o quadro negro, supostamente o inimigo que teria de ser deitado do cavalo abaixo. Calculei mal a distância e o choque foi tal que o ponteiro se partiu em três pedaços na minha mão. O feito foi celebrado com aplausos por alguns, outros calaram-se e olharam-me com aquela expressão única que significa, em todas as línguas do mundo, «Estás bem arranjado», enquanto eu, como se acreditasse na possibilidade de um milagre, procurava ajustar um ao outro os pontos de fractura de dois dos bocados de pau. Como o milagre não se produziu, fui depor os destroços em cima do estrado e nesta operação estava quando o professor entrou. «Que aconteceu?», perguntou. Dei uma explicação atabalhoada («O ponteiro estava no chão e pus-lhe, sem querer, um pé em cima, senhor engenheiro») que ele fez de conta que aceitava. «Já sabes, terás de trazer outro», disse. Assim era e assim teve de ser. O pior é que em casa ninguém pensou em ir a uma loja de artigos escolares e perguntar quanto custava um ponteiro. Partiu-se logo do princípio de que seria demasiado caro e que a melhor solução seria comprar numa serração de madeiras um pau redondo, do mesmo tamanho, em bruto, e trabalhar eu em torná-lo o mais parecido possível com um ponteiro autêntico. E assim foi. Para bem ou para mal, nem meu pai nem minha mãe se meteram no assunto. Durante talvez duas semanas, tardes de sábado e domingos incluídos, de navalha em punho, como um condenado, desbastei, raspei, afilei, lixei e encerei o maldito pau. Valeu-me a experiência ganha na Azinhaga no manejo da ferramenta. A obra não ficou o que se chama uma perfeição, mas foi tomar dignamente o lugar do ponteiro partido, com aprovação administrativa e um sorriso compreensivo do professor. Havia que tomar em consideração que a minha especialidade profissional era a serralharia mecânica, e não a carpintaria ...

José Saramago

As Pequenas Memórias (2006)


segunda-feira, 8 de outubro de 2018

Biografia de José Saramago

O escritor português José Saramago retratado pelo fotógrafo brasileiro Sebastião Salgado (Globo)


Biografia do Prémio Nobel português, retirada da página da Fundação José Saramago.

Filho e neto de camponeses, José Saramago nasceu na aldeia de Azinhaga, província do Ribatejo, no dia 16 de Novembro de 1922, se bem que o registo oficial mencione como data de nascimento o dia 18. Os seus pais emigraram para Lisboa quando ele não havia ainda completado dois anos. A maior parte da sua vida decorreu, portanto, na capital, embora até aos primeiros anos da idade adulta fossem numerosas, e por vezes prolongadas, as suas estadas na aldeia natal.

Fez estudos secundários (liceais e técnicos) que, por dificuldades económicas, não pôde prosseguir. O seu primeiro emprego foi como serralheiro mecânico, tendo exercido depois diversas profissões: desenhador, funcionário da saúde e da previdência social, tradutor, editor, jornalista. Publicou o seu primeiro livro, um romance, Terra do Pecado, em 1947, tendo estado depois largo tempo sem publicar (até 1966). Trabalhou durante doze anos numa editora, onde exerceu funções de direcção literária e de produção. Colaborou como crítico literário na revista Seara Nova. Em 1972 e 1973 fez parte da redacção do jornal Diário de Lisboa, onde foi comentador político, tendo também coordenado, durante cerca de um ano, o suplemento cultural daquele vespertino.

Pertenceu à primeira Direcção da Associação Portuguesa de Escritores e foi, de 1985 a 1994, presidente da Assembleia Geral da Sociedade Portuguesa de Autores. Entre Abril e Novembro de 1975 foi director-adjunto do jornal Diário de Notícias. A partir de 1976 passou a viver exclusivamente do seu trabalho literário, primeiro como tradutor, depois como autor. Casou com Pilar del Río em 1988 e em Fevereiro de 1993 decidiu repartir o seu tempo entre a sua residência habitual em Lisboa e a ilha de Lanzarote, no arquipélago das Canárias (Espanha). Em 1998 foi-lhe atribuído o Prémio Nobel de Literatura.

José Saramago faleceu a 18 de Junho de 2010.


* * * * * * * * * * *







Foi há vinte anos: o Nobel da Literatura, para José Saramago


A Academia Nobel anuncia a atribuição do Prémio Nobel da Literatura de 1998 a José Saramago (8 de outubro de 1998)


Academia Sueca

O Secretário permanente

Communicado à imprensa

8 de Outubro de 1998

Prémio Nobel da Literatura 1998


“que, com parábolas portadoras de imaginação, compaixão e ironia torna constantemente compreensível uma realidade fugidia”

O português José Saramago faz 76 anos de idade em Novembro. É um prosador oriundo da classe trabalhadora que só atingiu a celebridade quando cumpriu os 60 anos. Desde então alcançou a notoriedade e tem visto a sua obra ser frequentemente traduzida. Vive presentemente nas ilhas Canárias.

“Manual de Pintura e Caligrafia: um romance”, que saiu em 1977, ajuda-nos a entender o que viria a acontecer mais tarde. No fundo, trata-se do nascimento de um artista, tanto o do pintor como o do escritor. O livro pode, em grande parte, ser lido como uma autobiografia mas, na sua intensidade, encerra também o tema do amor, assuntos de natureza ética, impressões de viagens e reflexões sobre a relação entre o indivíduo e a sociedade. A libertação alcançada com a queda do regime salazarista transforma-se numa imagem final portadora de abertura.

“Memorial do Convento”, de 1982, é o romance que o vai tornar célebre. É um texto multifacetado e plurissignificativo que tem, ao mesmo tempo, uma perspectiva histórica, social e individual. A inteligência e a riqueza de imaginação aqui expressadas caracterizam, de uma maneira geral, a obra saramaguiana. A ópera “Blimunda”, do compositor italiano Corghi, baseia-se neste romance.

“O Ano da Morte de Ricardo Reis”, publicado em 1984, é um dos pontos altos da sua produção literária. A acção passa-se formalmente em Lisboa no ano de 1936, em plena ditadura, mas possui um ambiente de irrealidade superiormente evocado. Este ambiente de irrealidade é acentuado pelas repetidas visitas do falecido poeta Fernando Pessoa a casa da personagem principal (que é extraída da produção pessoana) e das suas conversas sobre os condicionalismos da existência humana. Juntos deixam o Mundo após o seu último encontro.

Em “A Jangada de Pedra”, publicada em 1986, o escritor recorre a um estratagema típico. Uma série de acontecimentos sobrenaturais culmina na separação da Península Ibérica que começa a vogar no Atlântico, inicialmente em direcção aos Açores. A situação criada por Saramago dá-lhe um sem-número de oportunidades para, no seu estilo muito pessoal, tecer comentários sobre as grandezas e pequenezas da vida, ironizar sobre as autoridades e os políticos e, talvez muito especialmente, com os actores dos jogos de poder na alta política. O engenho de Saramago está ao serviço da sabedoria.

Existem todas as razões para também mencionar “História do Cerco de Lisboa”, de 1989, um romance sobre um romance. A história nasce da obstinação de um revisor ao acrescentar um não, um estratagema que dá ao acontecimento histórico um percurso diferente e, ao mesmo tempo, oferece ao autor um campo livre à sua grande imaginação e alegria narrativa, sem o impedir de ir ao fundo das questões.

“O Evangelho segundo Jesus Cristo”, de 1991, romance sobre a vida de Jesus encerra, na sua franqueza, reflexões merecedoras de atenção sobre grandes questões. Deus e o Diabo negoceiam sobre o Mal. Jesus contesta o seu papel e desafia Deus.

Um dos romances destes últimos anos aumenta consideravelmente a estatura literária de Saramago. É publicado em 1995 e tem como título “Ensaio sobre a Cegueira”. O autor omnisciente leva-nos numa horrenda viagem através da interface que é formada pelas percepções do ser humano e pelas camadas espirituais da civilização. A riqueza efabulatória, excentricidades e agudeza de espírito encontram a sua expressão máxima, de uma forma absurda, nesta obra cativante. “Queres que te diga o que penso, Diz, Penso que não cegámos, penso que estamos cegos, Cegos que vêem, cegos que, vendo, não vêem.”

O último dos seus romances, “Todos os Nomes”, sairá este Outono, em tradução sueca.Trata-se de uma história sobre um pequeno funcionário público da Conservatória dos Registos Centrais de dimensões quase metafísicas. Ele fica obcecado por um dos nomes e segue a sua pista até ao seu trágico final.

A arte romanesca multifacetada e obstinadamente criada por Saramago, confere-lhe um alto estatuto. Em toda a sua independência Saramago invoca a tradição que, de algum modo, no contexto actual, pode ser classificada de radical. A sua obra literária apresenta-se como uma série de projectos onde um, mais ou menos, desaprova o outro mas onde todos representam novas tentativas de se aproximarem da realidade fugidia.

The Swedish Academy 

(Fonte: The Nobel Prize)




segunda-feira, 1 de outubro de 2018

Um homem armado (Blogue enfado)

"Timor-Leste, entre a cruz e a espada" (Atauro)



Último texto publicado no blogue enfado (18.11.2013):


Um homem armado

Do lado de fora da cerca, está um homem armado. Calções, t-shirt, chinelos, cigarro no canto da boca e uma AK-47 ao ombro agarrada com as duas mãos.

Estamos em Maio de 2006 e em Timor-Leste a crise política precipitou o país para o limiar da guerra civil. Díli é uma cidade evacuada, onde grupos rivais se confrontam e pegam fogo às casas uns dos outros. Eu e um grupo de amigos estamos há dois dias fechados em casa cercados de tiros e colunas de fumo.

O Lino, que vive connosco, diz-me que não há perigo, que o homem armado é uma pessoa do bairro a fazer segurança, mas no meu estado de animal encurralado, não saber se este homem é amigo ou inimigo irrita-me para lá do suportável.

Sem pensar, abro a porta e começo a andar em direção à cerca, devagar, mas decidido. Ao terceiro passo ele vê-me e endireita-se. Eu apercebo-me do que estou a fazer e tenho medo.

Há três anos que estou em Timor-Leste e desde que cheguei que a minha grande motivação para aqui viver é a esperança do povo timorense no futuro. Uma espécie de radiação coletiva, sentida todos os dias na rua, nas conversas e no trabalho. Agora, com o país à beira da guerra civil, é difícil encontrá-la.

Continuo a andar e olho para ele. Estou quase junto à cerca. De rosto fechado e mãos na espingarda ele parece indeciso.

Sorrio, aceno com a mão e digo-lhe em tétum “Bô tardi!”. Ele relaxa, sorri e responde “Bô tardi!”. Pergunto-lhe se é do bairro. Diz-me que sim, que mora para os lados da ribeira. Se está a fazer segurança. Que sim, que com mais uns homens estão a defender o bairro, que tem muito malandro por aí. Ofereço-lhe um cigarro e ficamos ali os dois junto à cerca a fumar.

Penso em compor rapidamente um apelo à paz, questioná-lo sobre a necessidade de andar armado. Se sabe usar a espingarda ou se os malandros que andam por aí também têm uma. Não me sai nada. Não é fácil meter conversa com um homem armado. Por fim, pergunto-lhe se vai ficar ali muito tempo. Diz-me que não, que tem de se juntar aos outros. Desejo-lhe boa tarde e bom trabalho. Ele despede-se e vamos cada um à sua vida.

Foi só depois de lhe virar as costas, enquanto caminhava lentamente na direção da porta, satisfeito por ter resolvido a ambiguidade daquela presença e questionando a sensatez de desejar bom trabalho a um homem armado, que as pernas me começaram a tremer como se fossem de gelatina.


Blogue enfado, de Guilherme Cartaxo