sexta-feira, 21 de dezembro de 2012

Um trecho de Dalton Trevisan - Prémio Camões 2012



Dalton Trevisan (Curitiba, 14 de junho de 1925) é um escritor brasileiro, famoso por seus livros de contos, especialmente O Vampiro de Curitiba (1965), e por sua natureza reclusa.

Foi distinguido no passado mês de maio com o Prémio Camões deste ano. O autor curitibano já manifestou nesse mês a impossibilidade de viajar a Portugal para receber o Prémio por causa da idade.


Este é o início de um dos seus contos:

PENÉLOPE

Naquela rua mora um casal de velhos. A mulher espera o marido na varanda, tricoteia em sua cadeira de balanço. Quando ele chega ao portão, ela está de pé, agulhas cruzadas na cestinha. Ele atravessa o pequeno jardim e, no limiar da porta, beija-a de olho fechado.

Sempre juntos, a lidar no quintal, ele entre as couves, ela no canteiro de malvas. Pela janela da cozinha, os vizinhos podem ver que o marido enxuga a louça. No sábado, saem a passeio, ela, gorda, de olhos azuis e ele, magro, de preto. No verão, a mulher usa um vestido branco, fora de moda; ele ainda de preto. Mistério a sua vida; sabe-se vagamente, anos atrás, um desastre, os filhos mortos. Desertando casa, túmulo, bicho, os velhos mudam-se para Curitiba.

Só os dois, sem cachorro, gato, passarinhos. Por vezes, na ausência do marido, ela traz um osso ao cão vagabundo que cheira o portão. Engorda uma galinha, logo se enternece, incapaz de mata-la. O homem desmancha o galinheiro e, no lugar, ergue-se caco feroz. Arranca a única roseira no canto do jardim. Nem a uma rosa concede o seu resto de amor.

Além do sábado, não saem de casa, o velho fumando cachimbo, a velha trançando agulhas. Até o dia em que, abrindo a porta, de volta do passeio, acham a seus pés uma carta. Ninguém lhes escreve, parente ou amigo no mundo. O envelope azul, sem endereço. A mulher propõe queimá-lo, já sofridos demais. Pessoa alguma lhes pode fazer mal, ele responde.

Não queima a carta, esquecida na mesa. Sentam-se sob o abajur da sala, ela com o tricô, ele com o jornal. A dona baixa a cabeça, morde uma agulha, com a outra conta os pontos e, olhar perdido, reconta a linha. O homem, jornal dobrado no joelho, lê duas vezes cada frase. O cachimbo apaga, não o acende, ouvindo o seco bater das agulhas. Abre enfim a carta. Duas palavras, em letra recortada de jornal. Nada mais, data ou assinatura. Estende o papel à mulher que, depois de ler, olha-o . Ela se põe de pé, a carta na ponta dos dedos.

—Que vai fazer?

—Queimar.

Não, ele acode. Enfia o bilhete no envelope, guarda no bolso. Ergue a toalhinha caída no chão e prossegue a leitura do jornal.

A dona recolhe a cestinha, o fio e as agulhas.

—Não ligue, minha velha. Uma carta jogada em todas as portas.

O canto das sereias chega ao coração dos velhos? Esquece o papel no bolso, outra semana passa. No sábado, antes de abrir a porta, sabe da carta à espera. A mulher pisa-a, fingindo que não vê. Ele a apanha e mete no bolso.

Ombros curvados, contando a mesma linha, ela pergunta:

—Não vai ler?

Por cima do jornal admira a cabeça querida, sem cabelo branco, os olhos que, apesar dos anos, azuis como no primeiro dia.

—Já sei o que diz. —Por que não queima?


Sobre Dalton Trevisan:

" — Não vou responder às perguntas simplesmente porque não posso, é verdade; sou arredio, ai de mim! Incurávelmente tímido (um pouco menos com as loiras oxigenadas!)." Já se escreveu e se comprovou que os demais vampiros não podem encarar, sem pânico, um crucifixo. Ou réstias de alho, água corrente cristalina... Dalton não pode ver um jornalista. Vendo, foge, literalmente foge, apavorado. Suas raras fotos surgidas na imprensa foram feitas às escondidas (...).

(Ler mais em Releituras)


quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

Sonhei que era o Pai Natal (Francisco Sande e Castro)



Esta noite sonhei que era o Pai Natal. Tinha chegado o grande momento e, depois de doze meses de boa vida, regressava o dia de trabalho. Iria fazer uma direta ao volante do meu trenó. De manhã tinha estado a escovar as renas e, da parte da tarde, limpei e aparelhei a viatura. Bebi dois cafés ao jantar para não me dar o sono ao volante, e parti para a famosa noite. É difícil trabalhar um só dia por ano. É como quem bebe uma garrafa de vinho depois de um longo período de abstinência: pedrada certa.

Saí de casa pouco antes da meia-noite, ainda no meu estado normal. Não tinha ainda voado 500 metros quando uma das renas se estatelou no ar com gritinhos histéricos. Era uma cãibra. Tinha insistido para que fizessem ginástica ao longo do ano mas os pobres animais são preguiçosos e eu até os compreendo. Quando nos habituamos ao dolce far niente não queremos outra coisa. Depois de uma rápida massagem, seguimos viagem. Enquanto as «meninas» vão seguindo o caminho habitual, eu revelo a lista de presentes. Paramos à frente da primeira chaminé. É estreita, daquelas que eu odeio. Se pudesse dar nas vistas, deixava bilhetes a todos estes idiotas que mandam construir chaminés estreitas. Se o ano passado já tinha entrado com dificuldade, o álcool que me aquece as noites solitárias agravou o problema. A meio da chaminé, já com o fato todo chamuscado, ouvi vozes lá em baixo. A minha discrição tinha-me permitido nunca ter sido visto e deveria manter esse ar misterioso. Esperei calmamente a meio da chaminé que se fossem deitar enquanto rezava para que ninguém se lembrasse de acender a lareira. Cá fora uma das renas assobiava pelo topo da chaminé, lembrando-me o nosso atraso. Perdemos mais de meia hora com o problema e tivemos que nos esfalfar para tentar recuperar o tempo perdido. Comecei a andar depressa de mais para as possibilidades do trenó, que ia largando peças pelo caminho. Os livros das crianças que falam de nós estão longe da realidade, e preocupa-me que não haja ninguém a escrever uma opinião séria sobre a difícil tarefa do Pai Natal. A realidade é dura e triste. Eu passo a noite de Natal com o fato sujo e roto. As renas suam que nem cavalos depois de uma dura corrida, e o trenó fica feito num oito. Foi construído para escorregar na neve com pouco peso e aguenta mal as cargas que lhe ponho em cima. Ainda por cima tem de voar a velocidades para as quais não está concebido. Chegamos à segunda casa. As crianças daqui escolheram uns presentes horríveis, mas gostos não se discutem e eu tenho que os aceitar a todos. Continua a estafadeira e, pelas três da manhã, as renas já estão de rastos. Há uma mais desastrada, que todos os anos fica com as pernas cheias de nódoas negras porque não há poste ou chaminé em que ela não tropece. Eu já escorrego pelas chaminés sem me segurar. Nestas coisas emagreço entre três a quatro quilos.

São quatro da manhã e ainda temos centenas de lares para visitar. Engano-me na chaminé da casa dos Rebelos e entro pela da cozinha. Caio em cima de duas panelas e o estrondo é enorme. A senhora Rebelo acorda assustada e vem à cozinha com medo de encontrar um assaltante.

«Quem está aíl» pergunta a voz trémula. Distraído e nervoso respondo — «é o Pai Natal». A senhora desata a fugir pelas escadas acima aos gritos pelo marido e eu deixo os presentes na cozinha e volto a sair rapidamente por onde entrei. Quando a noite me começa a correr mal fico nervoso e só faço asneiras. Cá fora as renas estão deitadas em cima de um telhado, já demasiado cansadas para se preocuparem. Os aquecimentos solares são coisa que não existia quando me inventaram e têm provocado inúmeros problemas. As renas têm o vício de se deitarem em cima deles para se aquecerem e, gordas como estão, rebentam sempre com os frágeis sistemas. Não há noite de Natal em que não provoquem meia dúzia de inundações e temos sempre que fugir à pressa antes que os donos deem pela desgraça. O que vale é que nunca desconfiam de nós.

Já está a amanhecer e ainda não acabámos o serviço. Com a pressa, bato com o trenó numa chaminé que cai aos bocados. Um guarda-nocurno olha para cima e reconhece-nos. «Olha o Pai Natal!...».

 Antes que consiga acabar a frase atiro-lhe um presente à cabeça provocando-lhe um desmaio e consequente amnésia. São condicionalismos desta difícil profissão. Nem sempre podemos ser bonzinhos.

Regressamos a casa todos de rastos para encontrar meia dúzia de presentes esquecidos.

Enfureço-me: «quem é se esqueceu de pôr estes presentes no trenó?». Todas as renas disfarçam. É sempre a mesma coisa. Agora não foi ninguém. Verifico os nomes na etiqueta. Pertencem todos à família Florença. Volto a subir para o trenó e parto em direcção à sua casa o mais discretamente possível. Quando vou a entrar pela chaminé, oiço vozes. As crianças choram e os pais tentam consolá-las:

 - «O Pai Natal deve ter-se esquecido, mas nós amanhã compramos-vos outros presentes.»

- «Qual Pai Natal, qual carapuça», responde o Zezinho. «Nós sabemos muito bem que isso não existe. O pai não quis foi dar-nos presentes.»

Sinto-me ofendido com esta falta de fé e hesito em deixar os presentes; mas a aflição daquele pai faz-me pena. Atiro os embrulhos pela chaminé e ainda volto a ouvir a voz do Zezinho antes de me ir embora:

«O pai fez de propósito para partir o presente.»


Francisco Sande e Castro



(Revista K, anos 90)



segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

Há uma pedra feroz (Luís Miguel Nava)



HÁ UMA PEDRA FEROZ

Há uma pedra feroz,
um rapaz,
há o olhar do rapaz atado à pedra,
o olhar do rapaz, a minha casa,
o olhar do rapaz às vezes é a pedra.

Luís Miguel Nava


Películas. Lisboa: Livraria Moraes Editores (1979) (Prémio de Revelação da Associação Portuguesa de Escritores, 1978)


Luís Miguel Nava (1957-1995)




O poeta em Estúdio Raposa (áudio)

 


terça-feira, 11 de dezembro de 2012

Dois textos sobre a crise (José Pacheco Pereira)



ESCREVER SOBRE A CRISE

Estamos todos fartos de escrever sobre a crise, e eu em particular. Mas existe uma certa obrigação ética e “crítica” em fazê-lo, até porque isso é uma obrigação de comunhão e testemunho com os nossos concidadãos e com a nossa comunidade. Repare-se na abundância do prefixo “co”, com. É isso mesmo. Esta é uma obrigação que não é apenas racional, não emana da verificação de haver boas ou más políticas, e da sua identificação crítica, mas emana de um domínio afectivo de se querer “estar com”. Se o nosso catolicismo não estivesse tão impregnado de hipocrisia, e a palavra não estivesse adulterada pelas piores práticas, é isso que significa “caridade”, o “agape” dos gregos, a que se soma o “testemunho”. Esta última palavra tem uma origem que pode surpreender muita gente, - vem de “testículos”, - e num certo sentido agora é que se vai ver quem os tem ou não tem. Esta combinação serve-me e obriga-me a continuar a escrever sobre a crise.

 (Continua.) 

Blogue Abrupto


 PONTO DE NÃO RETORNO

 Há um aspecto desta crise que está longe de ser enunciado e analisado: é que ela é para milhões de portugueses um ponto sem retorno. Ou seja, nunca mais vão deixar o nível de pobreza em que estão a ser mergulhados. Mesmo que possa haver a prazo médio ou longo alguma recuperação económica e do emprego, não será para eles, nem no seu tempo, nem nas suas oportunidades. Para estes é que, em primeiro lugar, a crise é mais trágica, definitiva, cruel. E não há nem uma palavra, nem uma acção que os possa salvar.

 Estou a falar das pessoas e das famílias que o desemprego, os impostos, os salários e o custo de vida vão atirar para a linha abaixo da pobreza. Como é que a vão ultrapassar de novo na sua vida útil? Sim, na sua vida útil, que é o que conta. Vai haver emprego para os actuais desempregados? Nunca, jamais, em tempo algum, podem esperar voltar a ter emprego. Se alguma recuperação existir no emprego, será muito pequena e favorecerá os mais novos, e novos aqui é na casa dos vinte anos. Vão conhecer uma vida mais barata, preços mais baixos da renda, da luz, gaz, água, transportes? Nunca, jamais, em tempo algum, tal é previsível nas próximas décadas. Vão poder por milagre pagara as suas prestações e dívidas? Com que dinheiro? Vai diminuir a carga fiscal? Talvez daqui a cinco, dez anos, na melhor das hipóteses, mas sempre pouco. Os impostos têm a característica de se instalarem para a eternidade. Os estragos feitos em 2013, 2014, são para já suficientes para destruírem milhares de pequenas empresas e lançarem na insolvência milhares de família. Como é que se volta atrás? O governo não sabe como, nem quer saber. É o “ajustamento”.

Blogue Abrupto


Autor: José Pacheco Pereira



segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

Uns versos de Sá de Miranda




A António Pereira, Senhor de Basto,
quando se partiu para a Corte co’a casa toda

(...)

Não me temo de Castela,
Donde inda guerra não soa,
Mas temo-me de Lisboa
Que, ao cheiro desta canela,
o reino nos despovoa.
(...)

Sá de Miranda


Francisco de Sá de Miranda (1481-1558)


segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

Naturalidade (Rui Knopfli)

 Micaias em Moçambique


NATURALIDADE

Europeu, me dizem.
Eivam-me de literatura e doutrina
européias
e europeu me chamam.

Não sei se o que escrevo tem raiz a raiz de algum
pensamento europeu.
É provável ... Não. É certo,
mas africano sou.
Pulsa-me o coração ao ritmo dolente
desta luz e deste quebranto.
Trago no sangue uma amplidão
de coordenadas geográficas e mar Índico.
Rosas não me dizem nada,
caso-me mais à agrura das micaias
e ao silêncio longo e roxo das tardes
com gritos de aves estranhas.
Chamais-me europeu? Pronto, calo-me.
Mas dentro de mim há savanas de aridez
e planuras sem fim
com longos rios langues e sinuosos, uma fita de fumo vertical,
um negro e uma viola estalando.

Rui Knopfli 


"Rui Manuel Correia Knopfli (Inhambane, Moçambique, 10 de agosto de 1932 - Lisboa, 25 de dezembro de 1997) foi um poeta, jornalista e crítico literário e de cinema português" diz-nos a Wikipédia, mas parece que ele não se considerava português, mas moçambicano.

A Infopédia acrescenta, por sua vez: "Poeta moçambicano (...) Desde finais dos anos 50, desenvolveu uma sólida obra poética que não é facilmente incluída nas correntes literárias moçambicanas, assumindo-se antes como continuadora da tradição lírica do Ocidente. Camões, Carlos Drummond de Andrade, Fernando Pessoa ou T. S. Eliot poderiam servir de referência para analisar a poética de Knopfli. Isto apesar de, por ter nascido em plena savana de Moçambique, muita da sua imagética remeter para paragens africanas. A concisão e o cuidado formal de que se revestem os seus poemas refletem um sentir contido e desencantado, perante uma realidade muitas vezes altamente agressiva.Rui Knopfli viveu em Moçambique até aos 43 anos (...)"