segunda-feira, 12 de julho de 2021

Mário de Sá-Carneiro - Feminina




FEMININA

Eu queria ser mulher para poder me estender
Ao lado dos meus amigos, nas banquettes dos cafés.
Eu queria ser mulher para poder estender
Pó-de-arroz pelo meu rosto, diante de todos, nos cafés.

Eu queria ser mulher para não ter que pensar na vida
E conhecer muitos velhos a quem pedisse dinheiro –
Eu queria ser mulher para passar o dia inteiro
A falar de modas e a fazer potins – muito entretida.

Eu queria ser mulher para mexer nos meus seios
E aguçá-los ao espelho, antes de me deitar –
Eu queria ser mulher para que me fossem bem estes enleios
Que num homem, francamente, não se podem desculpar.

Eu queria ser mulher para ter muitos amantes
E enganá-los a todos – mesmo ao predileto –
Como eu gostava de enganar o meu amante loiro, o mais esbelto,
Com um rapaz gordo e feio, de modos extravagantes...

Eu queria ser mulher para excitar que me olhasse,
Eu queria ser mulher para me poder recusar...

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Paris, fevereiro de 1916



"Este poema foi escrito cerca de dois meses antes de Mário de Sá-Carneiro se suicidar. Ficou, por muito tempo, esquecido na carta em que o enviou a Fernando Pessoa e onde perguntava: «Como você vê - isto promete, hein? Quando arranjar por completo o poema, enviar-lho-ei. Mas vá-me dizendo as suas impressões». O poema jamais foi concluído." por Cine Povero, canal de Youtube onde achámos este vídeopoema.