segunda-feira, 28 de novembro de 2022

Cláudio Manuel da Costa - Soneto V

Igreja em Ouro Preto, de Rodrigo Augusto Soares

 
SONETO V

Se sou pobre pastor, se não governo
Reinos, nações, províncias, mundo, e gentes;
Se em frio, calma, e chuvas inclementes
Passo o verão, outono, estio, inverno;

Nem por isso trocara o abrigo terno
Desta choça, em que vivo, coas enchentes
Dessa grande fortuna: assaz presentes
Tenho as paixões desse tormento eterno.

Adorar as traições, amar o engano,
Ouvir dos lastimosos o gemido,
Passar aflito o dia, o mês, e o ano;

Seja embora prazer; que a meu ouvido
Soa melhor a voz do desengano,
Que da torpe lisonja o infame ruído.

Cláudio Manuel da Costa

(1729 - 1789) 

Cláudio Manuel da Costa nasceu em Minas Gerais, na circunvizinhança da cidade de Mariana, em junho de 1729. Teve seus primeiros estudos com os jesuítas, logo depois, estudou humanidades no Rio de Janeiro e Direito na Universidade de Coimbra. Por volta de 1749, teve contato com as idéias iluministas e também com o arcadismo. Quando retornou ao Brasil, participou da Inconfidência Mineira ao lado de Tiradentes. O autor tinha um pseudônimo árcade: Glauceste Satúrnio, o qual era um pastor que se inspirava em sua musa Nise. Contudo, suas poesias ainda apresentavam indícios do Quinhentismo e do Barroco..

Continua em Brasil Escola



segunda-feira, 21 de novembro de 2022

Pepetela - Mandioca de Feitiço



MANDIOCA DE FEITIÇO

                                                                                                   Para Miguel Torga


FAUSTINO E FIRMO, personagens saídos dos «Contos da Montanha», foram por artes mágicas parar a Angola, na década de quarenta. Por artes de magia ou da literatura, o que vai dar tudo no mesmo, pois se sabe que a palavra leva consigo muitos feitiços.

Quanto a Firmo, andarilho compulsivo, não seria de admirar, embora o seu terreno de eleição fosse o Brasil, a Argentina e outras vizinhanças da América hispânica. Todos sabiam, sobretudo na sua aldeia de Vilarinho, que ele desconseguia de ficar parado muito tempo e o mundo o atraia como música de sereia. Por uma única vez trocou de lado no Atlântico e foi encalhar em Luanda. Anos depois de se ter deliciado com a terra e as gentes, reconheceu o patrício Faustino, acabadinho de chegar de Abaças, uma aldeia vizinha nas fragas de Trás-os-Montes. A principio manteve certas reservas, pois sobre Faustino corriam estórias não muito abonatórias de furtos menores praticados nas redondezas das suas aldeias. Já quanto a Faustino, poderia causar alguma estranheza tão comprido percurso para fugir ao destino. Mas nem tanto assim, se pensarmos na miséria em que vivia na montanha, condenado a roubar ninhos de passarinhos, pois pouco mais havia de que suas mãos ávidas e ágeis se pudessem locupletar. A decisão de Faustino veio depois da terrível aventura de, numa noite de tempestade, ter assaltado a desvalida capela da Senhora da Saúde, de onde só retirou uma broncopneumonia que o ia levando desta para melhor. Disse para a mulher quando estava mais recomposto, aqui não fico, é uma vergonha termos uma capela onde nada há para nosso orgulho, apenas uma caixa de esmolas permanentemente vazia e nem um cruci-fixo de prata ou um cálice, nada de jeito, assim também é demais, vou masé roubar para outras freguesias. Um parente afastado mandou-lhe uma providencial carta de chamada e lá embarcou para Luanda na terceira classe do paquete «S. Tomé».

Firmo e Faustino costumavam se encontrar na Pensão Flaviense, para beber um copo e matar saudades da terra. Sobretudo para compararem Vilarinho e Abaças, chegando sempre ao consenso de que se igualavam na miséria e na falta de perspectivas. No entanto, Firmo já morria de saudades e mostrava muita inquietação com a sua permanência parada em Luanda, embora tivesse um bom emprego, do qual ia amealhando uma razoável maquia. Na altura em que Faustino lhe confidenciou que tinha finalmente arranjado trabalho numa roça de café no Uíje, onde certamente ia enriquecer pois o café era o futuro, Firmo revelou que comprara passagem num barco zarpando daí a dias, voltando à terra por tempo incerto mas o suficiente para fazer mais um filho na mulher. Deixava em Luanda os dois mulatitos que entretanto gerara na Rosa, sua lavadeira. Estes dois filhos de Firmo cresceriam nas ruas, um pouco ao abandono, embora tivessem todo o carinho da mãe, que os criou sozinha e sem nunca mais rever o transmontano. Cresceram revoltados contra a sua condição de filhos de pai incógnito, como era de esperar, e foram um dia engrossar o exército que libertaria o pais.

Quanto a Faustino, a estória foi outra.

Partiu para o Uíje, terra de montanhas também, mas sendo as urzes substituídas por densas florestas, onde, na sombra das grandes árvores, crescia o arbusto do café, riqueza para uns poucos colonos, maldição escrava para muitos. Começou como capataz na roça, mas em breve ficou uma espécie de gerente, pois o anterior foi evacuado para Luanda por causa de um paludismo fulminante e o patrão não tinha mais ninguém em quem confiar. Confiar no Faustino? O problema foi mesmo esse. O homem não podia ver dinheiro à sua frente. Aprendeu rapidamente o que tinha a fazer e era suficientemente activo para contentar o patrão, também ele um pouco desleixado, mais preocupado emir jogar às cartas na cidade do que em permanecer na roça para controlar as coisas. E o Faustino acabou por ter acesso ao dinheiro das compras de comida para os trabalhadores ou para material urgente. E foi desviando umas migalhas. Temos de compreender, era demais para quem tinha sempre convivido com a fome mais absoluta e sem saber o que lhe iria acontecer no dia seguinte. Foi escondendo aqueles trocados na mala de folha que tinha trazido da Metrópole, era o seu seguro de vida, a sua pensão reforma.

Faustino ainda não tinha aprendido com os outros colonos que em Portugal se habituavam a só ter gente acima deles e, de repente, caídos em África, descobriam ter muita gente abaixo deles afinal. E exerciam até à exaustão sobre esses deserdados da vida o pequenino poder com que de repente se maravilhavam. Faustino só tivera tempo de aprender as tarefas exigidas no serviço e a guardar de lado alguma pequena fortuna para o que desse e viesse. Por isso ainda tratava os trabalhadores da roça como seres humanos. E arranjou uma relação mais chegada, senão amizade, com o ajudante do cozinheiro da casa grande, um jovem esperto que se chamava Ndozi.

Estava a sua vida correndo pelo melhor, apesar do calor a que não estava habituado e dos mosquitos que lhe furavam a pele. Mas num repente lhe desabou o mundo em cima da cabeça. Falta de habilidade nas contas, demasiada confiança, não sabemos ao certo qual o erro, mas o facto é que o patrão foi alertado pelo Costa, seu ajudante na contabilidade e secretaria, da provável existência de algum desvio nos dinheiros destinados à comida dos trabalhadores. Investigaram os dois, no segredo que deve envolver essas coisas, até chegarem ao Faustino. E daí até à mala de folha, onde estava uma quantia que ultrapassava os salários entretanto recebidos pelo capataz-quase-gerente. Patrão e Costa a revistarem a mala e o Ndozi a avisar o Faustino, é melhor fugir, ouvi tudo, o patrão vai chamar a polícia da cidade.

Faustino nem teve muito tempo para pensar, ainda por cima com Ndozi a pressionar, é melhor fugir, é melhor fugir. De facto, nunca se tinha confrontado com a polícia. Os peque-nos delitos em Portugal foram resolvidos entre as suas mãos e a sua consciência, com a excepção da tentativa na capela da Senhora da Saúde, que dessa vez se resolveu entre o seu corpo e os poderes da santa, que lhe pregaram aquela valente broncopneumonia para não mais esquecer. Mas tinha sempre ficado longe da polícia. Por isso o terror de Ndozi, que esse apesar da juventude sabia bem como era brutal a polícia colonial, encontrou terreno fértil no seu temor. E também devemos referir que Faustino tinha uma ponta de vergonha em relação ao patrão, que nele confiara. Mas fugir para onde? Para o mato, claro, onde havia de ser, lhe explicou Ndozi, todo nervoso, como se de liberdade própria se tratasse. Faustino se viu naquele mato do Uíje, florestas atrás de florestas, refúgio de todas as cobras, desde a terrível surucucu à pequena mas fulminante buta, cuja picada matava num minuto. Os trabalhadores do café já lhe tinham mostrado cotos decepados, pois quando na colheita a buta, escondida entre as folhas e parecendo um raminho seco vulgar, mordia a mão que procurava os bagos da fortuna, o homem só tinha tempo de cortar o braço com a catana mais próxima, antes que o veneno começasse a circular no sangue e paralisasse o coração. Hesitava no seu medo e Ndozi teve de o empurrar para o mato, o esconder numa casota abandonada ainda dentro dos limites da roça, fique aqui por um tempo, que eu vou à casa grande falar com o patrão, arranjar uma desculpa para ficar uns dias fora, depois levo-o para algum lado. Faustino nem teve acesso ao seu quarto, ficou assim sem o dinheiro, a mala e toda a roupa. Horas depois veio Ndozi explicar que o patrão lhe tinha concedido três dias para visitar os parentes. Para isso lhe contou que acabava de receber a notícia da morte de um tio e tinha de ir assistir ao óbito. Relatou ainda Ndozi que a polícia tinha chegado à roça para constatar o roubo mas sobretudo o desaparecimento do Faustino, prova mais do que suficiente da sua culpabilidade. Teria pois de ir para outra província, que certa¬mente as buscas se limitariam à cidade, não chegariam ao Kuanza-Norte ou ao Zaire, províncias vizinhas. Leva-me então até lá, não importa qual, olha, a que ficar mais perto de Luanda, a qual era o Kuanza-Norte mas Ndozi não o levaria até lá, apenas até uma estrada onde ele pudesse apanhar uma boleia de algum camião.

Assim combinados, meteram pelo mato e se afastaram da roça, evitando os caminhos e sobretudo as picadas. Levavam apenas uma cabaça cheia de água, que o rapaz trouxera da roça. Segundo este, bastaria dormirem uma noite na caminhada, pois no dia seguinte já Faustino poderia apanhar alguma boleia, quem ia negar levar um branco em estado de necessidade? E como mandava a tradição, até teria direito a ir na cabina, que a carroçaria e a poeira eram destinadas aos negros. Ndozi voltaria logo para a roça, que não lhe convinha ter três dias descontados no ordenado, se o pudesse evitar.

À tarde a fome apertava, porém. Tinham saído cedo da roça, só com algum café tomado. E Faustino não parava de se lamentar, agora que comia três refeições por dia, uma delas sempre de carne, do que nos seus tempos de Portugal nem o cheiro lhe chegava, é que tinha tido o azar de ser apanhado com a massa na mala. Gomo podia o desgraçado do Costa ter descoberto tudo, eram quantias insignificantes de cada vez, mas todos os dias, ou quase todos, é certo, esse Gosta era um coca-bichinhos, umas míseras diferenças lhe chamaram a atenção, estupor. E antes que fosse ele o acusado, tratou de o acusar, só podia ser isso. O Ndozi tinha razão, o patrão ia deixar o caso por ali, nem se ia queixar para Luanda, e ele podia ir viver para outra terra. O problema seria arranjar um emprego tão bom e num sitio tão bonito como é uma montanha de café, com os nevoeiros matinais que são afastados pelo Sol nascente, espalhando luz pelos verdes de todas as cores.

Andaram pelo mato até ao fim da tarde e nessa altura meteram por um caminho que os conduziu a umas lavras de mandioca. Havia aldeia por perto. Ndozi não queria arriscar, pois o branco ia embora, mas ele ficava. Podia acontecer por um azar que algum dos habitantes da aldeia mais tarde soubesse do desaparecimento do Faustino e ligasse os factos. Se fosse contar ao patrão que Ndozi servira de guia, ainda acabava por ser acusado de cúmplice, quando só fazia isto por pena de alguém que sempre o tratara bem, caso raro com os brancos. Tinha pois de evitar ser visto com Faustino. E só havia uma alternativa, dormir com fome.

Mas o outro reconheceu as lavras de mandioca e a barriga roncou mais alto. — Essa mandioca é da que se come?

De facto era a qualidade que não tem veneno e por isso não precisa de ficar em água durante uns dias. Podia ser imediata¬mente consumida e assim Ndozi explicou. Mas logo a seguir apontou para os fiapos de pano vermelho que estavam amarrados nalgumas hastes.

— Tem feitiço. Quem come morre.

E afastou Faustino da lavra, avançando de novo para o mato. Parou pouco depois para descansar.
— É melhor dormirmos aqui. De manhã lhe levo até à estrada, já não fica longe.

E sentou no chão, encostado a um tronco de árvore, descansando. Faustino, apesar de muito fatigado, permaneceu de pé, olhando para o caminho que tinham abandonado. Não conseguia despegar a vista dos troncos finos mas convidativos das mandioqueiras jovens. E a barriga roncava, roncava, mal habituada já àquelas fomes que noutros tempos eram a normalidade. Num repente pegou no facão que levava à cintura e investiu contra a lavra.

— Não faz isso, só Faustino, não faz isso.

Inútil gritar, inútil correr atrás dele, inútil demovê-lo. O português foi mesmo ao primeiro pé de mandioca, com o facão removeu o chão e desenterrou um tubérculo grosso como um braço. Desenterrou outro e voltou para onde estava Ndozi.

— Tens a certeza que esta mandioca não tem veneno?
— Não tem. Mas tem feitiço. E pior.
— Deixa-te disso.
— Esses panos vermelhos que se amarram em cima é para avisar. Essa lavra foi enfeitiçada. Só os donos podem tirar.
— Essas crenças são pagãs, nem devias dizer isso. É pecado.
Ndozi recusou o tubérculo que Faustino lhe estendeu. Este começou a descascar o seu, sentado agora junto de outra árvore.
— Não és católico, ó Ndozi? Não costumas ir à missa?
— Às vezes.
— Então como acreditas nestes feitiços? Disparate.
E meteu à boca um pedaço cortado da mandioca. Doce, suculento, uma delícia para a sua fome.
— Hum, maravilha.

Derrotou o tubérculo inteiro e descascou o outro. Ndozi só olhava, enquanto escurecia à volta deles. Para se entreter, o angolano juntou paus secos que havia à profusão ali perto e fez uma fogueira. Não estava frio, mas era mais aconchegante. E afastava os bichos. Faustino entretanto tinha comido a outra mandioca e bebido água da que Ndozi trouxera da casa grande. A fome tinha passado, se deitou perto da fogueira o mais comodamente que pôde.

A meio da noite, Ndozi foi acordado pelos gemidos do companheiro. Porra, porra, que dores. Faustino se agarrava à barriga, porra, que dores. Tinha vómitos, mas só ar saia. Bem que se torcia, e vomitava, nem saia nada, nem a dor passava.

— Faz alguma coisa, porra, pá.
— Fazer o quê? — disse Ndozi. — Não há nada a fazer. É o feitiço.
— Só a Senhora da Saúde me pode valer, ela é muito mais forte que qualquer feitiço — ainda disse Faustino no meio dos gemi¬dos. — Ai valei-me, Senhora da Saúde.

Não lhe valeu. Ndozi ficou ao lado dele, assistindo impotente e pesaroso à agonia. De manhã, usou o facão de Faustino para cavar uma sepultura no meio do mato. E lá ficou para sempre o ladrão de Abaças. No mais completo segredo.

Fevereiro de 2001

Pepetela


(in «Para Miguel Torga», Câmara Municipal de Sintra, 2001)


(Fonte: Blogue Contos de aula)


domingo, 13 de novembro de 2022

Manoel de Barros - O menino que ganhou um rio


 

O MENINO QUE GANHOU UM RIO

Minha mãe me deu um rio.
Era dia de meu aniversário e ela não sabia o que me presentear.
Fazia tempo que os mascates não passavam naquele lugar esquecido.
Se o mascate passasse a minha mãe compraria rapadura
Ou bolachinhas para me dar.
Mas como não passara o mascate, minha mãe me deu um rio.
Era o mesmo rio que passava atrás de casa.
Eu estimei o presente mais do que fosse uma rapadura do mascate.
Meu irmão ficou magoado porque ele gostava do rio igual aos outros.
A mãe prometeu que no aniversário do meu irmão
Ela iria dar uma árvore para ele.
Uma que fosse coberta de pássaros.
Eu bem ouvi a promessa que a mãe fizera ao meu irmão
E achei legal.
Os pássaros ficavam durante o dia nas margens do meu rio
E de noite eles iriam dormir na árvore do meu irmão.
Meu irmão me provocava assim: a minha árvore deu flores lindas em setembro.
E o seu rio não dá flores!
Eu respondia que a árvore dele não dava piraputanga.
Era verdade, mas o que nos unia demais eram os banhos nus no rio entre pássaros.
Nesse ponto nossa vida era um afago!

Manoel de Barros



https://m.youtube.com/watch?v=GTVGan927Z8


segunda-feira, 7 de novembro de 2022

Reinaldo Ferreira - Receita para fazer um herói




RECEITA PARA FAZER UM HERÓI

Tome-se um homem,
Feito de nada, como nós,
E em tamanho natural.
Embeba-se-lhe a carne,
Lentamente,
Duma certeza aguda, irracional,
Intensa como o ódio ou como a fome.
Depois, perto do fim,
Agite-se um pendão
E toque-se um clarim.

Serve-se morto.

Reinaldo Ferreira




(Fotografia de Léo Eloy)


terça-feira, 1 de novembro de 2022

Manuel António Pina - Os meus mortos

 



OS MEUS MORTOS

   Durante grande parte da nossa vida, a morte é uma coisa alheia e distante que só vaga e incertamente nos diz respeito. Até que, um dia, damos subitamente com ela à porta da nossa própria casa e descobrimos então que sempre ali esteve.
   Quando somos jovens e morrem os avós, ou os pais, ou os amigos dos pais, não é ainda a morte. Mesmo se um amigo morre, morre por acidente, morre por acaso, morre antes do tempo de morrer. A morte apenas começa a ter um rosto, o nosso rosto, quando, à volta, os amigos morrem tão-só de morrer e os motivos por que morrem são uma explicação, não uma razão. A mãe de minha mulher costumava dizer: «Os meus mortos...», e eu não compreendia. Hoje, porém, também eu tenho mortos. Quando o Chico morreu escrevi um poema a que pus o título de «O mundo sem o Chico», porque, descobri, a sua morte tinha levado o mundo consigo e o que me restava era um outro mundo, desconhecido e desabrigado, onde penosamente aprendia a viver outra vida, a minha vida. Depois disso, muitos mais mundos se foram desfazendo diante de mim e, de cada vez, fiquei mais só do lado de cá de qualquer coisa.
   Antes de morrer com 16 facadas, numa longínqua auto-estrada da Turquia, Sérgio escreveu-me uma última vez. Uma carta trivial, dizendo coisas triviais sobre coisas triviais, como se não tivesse ainda morrido. A notícia da sua morte chegara, no entanto, primeiro do que a carta. Que podia eu fazer com ela, com a carta, com tanto peso, com tanta desmesura? Também Fernando me escreveu antes de se enforcar. Mandou-me um cheque. Emprestara-lhe em tempos dinheiro e ele esquecera-se de que já mo havia pago e pagava-mo de novo. Que podia eu fazer com um dinheiro tão insustentável como aquele?
   E com os seus nomes, que poderei fazer agora com os seus nomes? E que outro nome terão agora o Fernando, o Sérgio, o Chico, o Assis, o Arnaldo, a Marcela, o Luís, o Manuel Hermínio e os outros? Abro a minha agenda telefónica e estão ainda todos paradamente lá, os nomes que um dia tiveram. Que poderei fazer com eles? Riscá-los? Apagá-los? São agora aparentemente inúteis, esses nomes e esses números. E, contudo, ali permanecem, alguns há vários anos. Porque se trata, cada um, de uma questão comigo mesmo, uma questão insolúvel, ainda não encerrada. Todos os anos copio outra vez os seus nomes. Porque ainda não me conformei. Há de facto na morte algo de injusto e de inaceitável, e as nossas lágrimas são, acho eu, tanto de revolta quanto de dor. Assisti outro dia ao enterro do Manuel Hermínio. Meteram-no num buraco fundo e imenso e, enquanto o Sol declinava lentamente atrás dos pinheiros, três homens despejaram sobre ele terra húmida e pedras. Como poderia conformar-me?
   Os meus mortos levaram consigo, de mim, palavras, memórias, dias, lugares, desígnios, incertezas; os seus olhos guardam para sempre o meu rosto, os seus ouvidos a minha voz. Também eu morri com eles, e também eu, o que fiquei, me perdi fora de mim. Onde quer que eles estejam agora, quem quer que sejam, estou, pois, junto deles. E pertencem-me, tanto quanto provavelmente eu lhes pertenço.


Manuel António Pina

Visão, 14/06/2001


(Fotografia de Moitas Moitas, Arronches, a paz do cemitério num fim de tarde de Verão)




Mario Quintana - Este quarto




ESTE QUARTO

Este quarto de enfermo, tão deserto
de tudo, pois nem livros eu já leio
e a própria vida eu a deixei no meio
como um romance que ficasse aberto…

Que me importa este quarto, em que desperto
como se despertasse em quarto alheio?
Eu olho é o céu! Imensamente perto,
o céu que me descansa como um seio.

Pois só o céu é que está perto, sim,
tão perto e tão amigo que parece
um grande olhar azul pousado em mim.

A morte deveria ser assim:
um céu que pouco a pouco anoitecesse
e a gente nem soubesse que era o fim…

Mario Quintana




(Fotografia de Sotiris Lamprou, 2022)